Por Pedro Nascimento Araujo
O Salto do Guaíra (Saltos del Guairá, em espanhol) é um
ponto que divide Brasil e Paraguai. Aqui, é mais conhecido como 7 Quedas do
Guaíra – a maior cachoeira do mundo até seu alagamento. Era um ponto de redação
confusa do armistício que pôs fim à Guerra do Paraguai (que eles chamam Guerra
da Tríplice Aliança), a fronteira entre os dois países, naquele trecho do Rio
Paraná, não estava totalmente delimitada – na prática, não se sabia com certeza
se o Paraguai começava além de ou exatamente no Salto do Guaíra, o que foi
resolvido somente em 1966 e possibilitou a construção posterior de Itaipu
Binacional, que cobriu, com o reservatório da usina hidrelétrica, o próprio
Salto do Guaíra. Não é exagero dizer que, desde 1966, Brasil e Paraguai, seu
vizinho além do hoje submerso Salto do Guaíra, têm vivido uma relação
harmônica, tanto nos tempos ditatoriais quanto, mais recentemente, nos regimes
democráticos. Por isso, causa consternação a reação do Brasil frente ao
impeachment do ex-presidente Fernando Lugo.
Criticar Lugo não é exatamente difícil. Com 2 filhos
reconhecidos e mais 2 em análise judicial, é patente que o bispo (embora Lugo
esteja afastado da Igreja, títulos religiosos são unções e, portanto, não
revogáveis) esconde um lado sombrio: não cumprir o celibato, um compromisso
voluntário, que ele firmou diante de Deus e dos homens, decididamente atesta
contra sua idoneidade moral. Para os paraguaios, há mais motivos. O país deve
encolher 1,5% este ano. Há áreas do Paraguai sob controle de uma narcoguerrilha
esquerdista nos moldes das FARC colombianas. Há conflitos fundiários sérios,
estimulados pela atitude irresponsável de Lugo, como o que resultou em 17
mortes e foi estopim do impeachment dele. Os brasileiros, grupo significativo
que na década de 1970 acorreram para o país a convite do governo local, e
criaram um agronegócio competitivo nas regiões de fronteira, estavam sofrendo
assédios e violências, por parte de militantes apoiados por Lugo, também não
estavam satisfeitos. Então, com um clima político deteriorado, o Congresso do
Paraguai acolhe, vota e aprova, de forma virtualmente unânime, o impeachment de
Lugo. E o Brasil começa a gritar para o outro lado de Saltos del Guairá.
O impeachment de Lugo não foi um golpe de Estado. Há uma
análise por parte do judiciário acerca de cerceamento de defesa por parte de
Lugo. Caso a Justiça entenda que houve, o resultado da votação do impeachment
de Lugo será anulado e nova votação será marcada. Isso não tem nada de
golpista, ao menos por ora: a Justiça continua funcionando e suas decisões, ao
menos em tese, são acatadas pelos demais poderes. Os poderes permanecem
independentes e livres. No Paraguai, até agora, apenas cumpriu-se o que já
estava previsto. Um processo de impeachment somente ocorre quando a situação
política de um presidente está insustentável. Foi o caso de Collor de Mello em
1992. Foi o caso de Lugo em 2012. Para que um processo como esses descritos
seja aprovado, é necessário que o presidente esteja sem apoio nenhum. É
necessário que seu governo já esteja morto. É necessário que a sociedade assim
o deseje. Por definição, nenhum Congresso aprova a deposição de um presidente
com maioria de dois terços. Não houve nenhuma mudança na Constituição do
Paraguai que justifique a definição que a chancelaria Argentina quer dar ao
processo legal – e que o Brasil apoia – ao chama-lo “ruptura da ordem
democrática”. O bullying fica caracterizado quando Brasil e Argentina resolvem
ignorar a ação do Congresso do Paraguai, como se fosse um órgão ilegítimo, ou
como se tivesse aprovado uma alteração legal que permitisse a deposição do
presidente overnight. Pior fica quando nos lembramos que nenhum dos países
criticou de forma tão voluntariosa os desmandos antidemocráticos, como
violações à liberdade de expressão e mitigação de direitos constitucionais
promovidos por Chavez na Venezuela, por Correa no Equador. Por Kirchner na
Argentina e por Morales na Bolívia.
O que o Brasil está fazendo com o Paraguai é covardia.
Querer usar o peso que tem no Mercosul para aplicar o Protocolo de Ushuaia de
1998 sumariamente sobre o Paraguai, um sócio mais fraco, é tentar intimidar um
vice-presidente que foi legalmente eleito e assume a presidência em um momento
conturbado. Ao que consta, não houve tais reações quando Collor de Mello sofreu
um impeachment – a rigor, ilegal, já que ele havia renunciado à presidência
antes do julgamento. Nenhum sócio do Mercosul, que já existia, disse que o
Congresso Nacional do Brasil estava promovendo uma “ruptura da ordem
democrática” ao prosseguir com o julgamento do impeachment mesmo após a
renúncia presidencial, porque não estava – estava, assim como o Paraguai acabou
de fazer, aplicando politicamente um preceito constitucional forte e raro,
possível apenas quando não há mais condições politicas de um presidente se
manter no cargo. Isso é muito diferente de um golpe, que altera leis e suprime
direitos. Tratar o novo governo do Paraguai com truculência é arrogância
inútil. Ameaçar com o Mercosul e chamar o embaixador são atitudes
grosseiras e erradas. Sejamos duros com aqueles usam o poder para corroer a
democracia. Em bom português: Kirchner, Correa, Morales e Chávez – não por
acaso, os que tentam qualificar o impeachment de Lugo como golpe. É triste ver
que, junto com essa turma, o Brasil pratica bullying além de Saltos
del Guairá, contra o novo governo do Paraguai.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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