Por
Pedro Nascimento Araujo
Na semana passada, negociadores
do chamado P5+1 (formado pela Alemanha e pelos P5, como são conhecidos os
membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas – China, Estados
Unidos, França, Reino Unido e Rússia) chagaram a um acordo preliminar com o Irã
acerca de seu programa militar nuclear clandestino. À primeira vista, nenhum
dos dois lados poderia farolar vitória: nem os ocidentais, que entraram na
negociação condicionando o fim das sanções ao fim do programa nuclear, nem os
iranianos, que buscavam a suspensão incondicional das sanções. Porém, um
observador mais atento talvez ouvisse uns balidos ao fundo. Para ser mais
preciso, eram balidos em farsi, o único registro de um bode persa sendo
retirado da sala de negociações pelos representantes dos aiatolás.
A metáfora do bode na sala é tão
antiga quanto eficiente: ciente de que sua família não estava satisfeita com a
sala da casa caindo aos pedaços; o chefe da família leva um bode para o cômodo;
o cheiro insuportável do caprino rapidamente domina o ambiente e vira o ponto
nevrálgico da insatisfação da família com a sala; quando decide retirar o bode
da sala, o chefe da família é elogiado por todos; a sala continua caindo aos
pedaços de antes, mas sem o bode; nada melhorou, mas tudo parece melhor. O caso
do Irã é exatamente esse. Os persas não são franco-atiradores ingênuos. Muito
pelo contrário, diga-se. O discurso radical é meticulosamente calibrado tanto
para garantir legitimidade interna a uma ditadura teocrática que caminha para
sua quarta década de vida quanto para gerar fatos externos. Os líderes locais
vivem em luxuosas mansões em condomínios exclusivos nas aprazíveis colinas da
capital, aonde o ar da poluída Teerã é respirável, com todos os confortos que a
tecnologia do Grande Satã pode oferecer. Os casos de corrupção nos contratos
são notórios, particularmente aqueles envolvendo a Guarda Republicana. Enfim, é
uma ditadura que não deixa nada a dever às suas congêneres no mundo. Como toda
ditadura, a persa tem como objetivo primaz a própria sobrevivência, mantida
pelo trinômio formado por prosperidade econômica, repressão política e projeção
de poder regional. Assim, o regime dos aiatolás precisa, concomitantemente,
livrar-se das sanções econômicas (que estão acabando com sua legitimidade
interna), fomentar escaramuças com países mais fortes, como Israel e Estados
Unidos (isso permite intensificar a repressão interna) e projetar-se como
potência regional (tornando inviáveis alianças de outros países para trocar o
regime). O programa nuclear foi o bode proverbial perfeito para atender a esses
três objetivos.
O Irã não vai desenvolver um
arsenal nuclear. Essa afirmação pode ser feita sem medo, ao menos até aonde a
vista alcança. E não o vai por uma razão bem simples: os aiatolás são radicais,
não loucos. Não há como o país chegar perto de fazer o primeiro teste nuclear
sem que isso desencadeie reações em série dos seus vizinhos sunitas,
capitaneados pela Arábia Saudita, em uma não improvável coalizão contra ele da
qual participariam as potências regionais sunitas (Turquia, Egito, Jordânia
etc.). Pior, teria de enfrentar bombardeios maciços de Israel, a maior potência
da região (o país que, sozinho, venceu as coalizões árabes que o atacaram em
1948, 1967 e 1973 – e que possui um arsenal nuclear não declarado estimado em
pelo menos 200 ogivas) sem o apoio de ninguém. Na verdade, já há uma aliança
não escrita entre as potências regionais sunitas e o país judeu contra a
obtenção de armas nucleares por Teerã: ninguém saiu em defesa dos persas quando
o premier israelense Benjamin Netanyahu disse que Israel não iria “permitir”
que o Irã tivesse armas nucleares – uma nada sutil menção às ações anteriores
na qual o país destruiu programas nucleares militares clandestinos em países
como Iraque (bombardeou o complexo de Osirak em 1981, dando início à chamada
Doutrina Begin, na qual o então premier Menachem Begin determinou que ataques
preventivos para impedir que vizinhos desenvolvessem armas de destruição em
massa que pudessem ser usadas contra Israel seriam parte da doutrina de
segurança nacional israelense) e Síria (bombardeou o complexo de al-Kibar
2007). Quando e se Israel considerar que há riscos reais de o Irã obter
armamento nuclear, a mais eficiente máquina de guerra do mundo vai agir. Teerã
sabe perfeitamente bem disso. Sabe, também, que, independentemente de Israel,
seus vizinhos sunitas agiriam. Sabe ainda da possibilidade de a OTAN agir
(afinal, a Turquia é membro do Tratado de Washington) por meio de uma resolução
do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aonde não conta com um apoio sequer
entre os P5. Sabe, por fim, que a ascensão de uma liderança menos
condescendente na Casa Branca no futuro poderia significar ação unilateral
americana sem objeções convincentes de ninguém. É simples assim: em qualquer
cenário que se olhe, obter enriquecimento de urânio ou de plutônio no grau de
armamento nuclear é um péssimo negócio para os aiatolás. Aplicando-se lógica
simples, juntamos a premissa um (os aiatolás querem manter seu regime) com a
premissa dois (obter armamentos nucleares significará o fim do regime dos
aiatolás) e temos a única solução possível: os aiatolás não obterão armamentos
nucleares. O que nos leva à inevitável conclusão do bode balindo em farsi.
Sendo o interesse aos aiatolás
manter-se no poder, a aventura nuclear iraniana nada mais foi do colocar um
proverbial bode na sala para que suas ações de desestabilização regional
(interferências em países como Síria, Líbano, Israel, Iraque e Iêmen) passassem
despercebidas diante do temor do surgimento de um arsenal atômico persa. Além
disso, seria um assunto que fatalmente levaria a atritos diplomáticos com os
Estados Unidos, com Israel e com os vizinhos sunitas – tudo o que os aiatolás
precisam para justificar tanto sua existência como defensores de um país
prestes a ser tragado por inimigos mais fortes. De fato, para os aiatolás é
interessante manter a tensão elevada contra os Estados Unidos, Israel e os
países sunitas, transformados em uma espécie de Snowball – assim como o porco
de Revolução dos Bichos (George Orwell), cujo nome é sempre evocado
como pretexto perfeito para os maiores abusos, a rivalidade da teocracia com
americano, israelenses e sunitas é usada para justificar a brutal repressão
interna; porém, a coisa saiu de controle quando as sanções começaram a ser
aplicadas: a legitimação da repressão simplesmente não pode ser feita a
expensas da legitimidade da prosperidade econômica. Os aiatolás erraram na dose
de bravata – não previram que as sanções fossem de fato ser implementadas. Com
as sanções, o rial, a moeda local iraniana, derreteu, o país deixou de exportar
mais de um milhão de barris de petróleo por dia (e os barris não exportados em
um dia não podem simplesmente ser acumulados para serem exportados no dia
seguinte), surgiram escassez, inflação e desempregos, em um ambiente de
incerteza e de pessimismo no qual os aiatolás começaram a ser questionados. Na
verdade, o enriquecimento de urânio já se havia transformado em um mau negócio:
piorava a legitimação econômica, já havia cumprido seu papel na repressão
política e estava atrapalhando a legitimação por meio da projeção de poder
regional. Por isso, os aiatolás chegaram à conclusão de que era chegado o
momento de tirar o bode da sala: eles simplesmente necessitam do fim das
sanções o mais rapidamente possível, como um bode necessita do capim. Abrir mão
de um programa nuclear que eles nunca intencionaram levar ao fim é como
parabolicamente retirar da sala o bode que o chefe de família nunca intencionou
deixar lá para sempre: custa pouco, soa como vitória e não altera um iota do status
quo ante. O Irã continuará sendo uma teocracia brutal que projeta seu poder
regional por meio de joguetes como o Hezbollah no Líbano, o Hamas nos
Territórios Palestinos, a Frente de Mobilização Popular no Iraque e o Ansar
Allah no Iêmen, entre outros grupos menores, principalmente na Síria. Ao
renunciar publicamente à posse de armas nucleares, o país persa se defende, já
que não haverá justificativas plausíveis para ser atacado por ninguém. E, mais
do que isso, com o fim das sanções, a prosperidade econômica retornará, ainda
que isso enfureça os demais exportadores de petróleo: a volta ao mercado do
Irã, um dos maiores produtores mundiais de petróleo em um momento no qual o
preço da commodity está em queda, certamente pressionará ainda mais
as cotações para baixo – estima-se que os superpetroleiros iranianos, uma das
maiores frotas do mundo (eles circulam com bandeira de Malta), estejam
carregados com mais de 30 milhões de barris nos portos do país aguardando o fim
do embargo comercial. Os iranianos estão tão certos de terem feito um bom
negócio ao retirar o bode da sala que nem se deram ao trabalho de fingir consternação
por ter cedido naqueles pontos pelos quais batiam os pés pouco antes, para
exasperação de suas contrapartes ocidentais na mesa de negociações.
Decididamente, os persas são mestres na arte de negociar: ensinaram ao Ocidente
o que se pode obter usando-se apenas um mero bode. Por muito tempo, o mundo o
mundo conviverá com os efeitos e com a lembrança dos balidos em farsi.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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