Por
Pedro Nascimento Araujo
Roberto Mangabeira Unger é o atual
ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Em
tese, deve ajudar Dilma Rousseff por meio de análises estratégicas das grandes
questões do estado brasileiro que perpassam o mandato dela e definem o ambiente
no qual as gerações vindouras viverão. Especificamente, sem o menor tato
diplomático, como lhe sói ser, Mangabeira Unger falou sobre a política externa
do governo Dilma Rousseff com uma agressividade cortante até mesmo para um
oposicionista. Embora ele confunda conceitos (é particularmente estranho a
interpretação dele para a ideia de Diplomacia Presidencial) e lance mão de
frases de efeito demais, sua fala tem uma qualidade: aponta a nudez real;
todavia, suas posições podem ser francamente contraditórias. Por isso, convém
ir um pouco mais a fundo no que ele falou acerca de Mercosul, relações com
Estados Unidos da América e China e Itamaraty – nem que seja para discordar
integralmente dele. Comecemos pelo Mercosul, sobre o qual Mangabeira Unger
disse que é “um corpo sem alma”, uma das mais criativas definições para a união
aduaneira imperfeita surgida em 1991. A definição acadêmica de união aduaneira
imperfeita é absolutamente precisa: surgido no seio da Área Latino-Americana de
Desenvolvimento e Integração (ALADI), o Mercosul (tecnicamente, o Acordo de
Complementação Econômica Número 18) criou uma união aduaneira (estágio inferior
ao livre mercado) que não consegue ter a Tarifa Externa Comum (TEC) funcional,
tamanha a quantidade de “perfurações” que tem – o que permite que listas de
exceções a ela ultrapassem as centenas de produtos – e com incidência de
bitributação, algo que será surrealisticamente eliminado apenas em 2019. Uma
obra união aduaneira imperfeita é uma obra inacabada, muito longe de ser
mercado comum como a União Europeia, mas mais avançado do que uma área de livre
comércio, caso do NAFTA – EUA, Canadá e México. O Mercosul deveria estar
tentando acabar com suas imperfeições (“perfurações” e bitributação) para
tornar-se ao menos uma união aduaneira plena, mas Mangabeira Unger propõe
exatamente o contrário: que o Mercosul deixe de ser união aduaneira imperfeita
para regredir à condição de livre mercado. O problema que Mangabeira Unger não
enxerga diz respeito a tudo o que o Brasil já investiu no Mercosul. O Mercosul
deveria ter, para Brasil e Argentina, a força que a Comunidade Europeia do
Carvão e do Aço teve para França e Alemanha: a capacidade de integrar as
maiores potências regionais de modo a estimular a cooperação em detrimento da
competição. Brasil e Argentina são herdeiros diretos da rivalidade ibérica
entre portugueses e espanhóis – basta lembrar que D Pedro I fez questão de ser
coroado Imperador do Brasil em 1822 no mesmo primeiro de dezembro em que os
portugueses comemoram a Restauração, marcando o fim da União das Coroas
Ibéricas (1580-1640). Celso Lafer, quando chanceler de Fernando Henrique
Cardoso, definia o Mercosul como “destino” e qualquer outro arranjo comercial
como “possibilidade”. Após o Efeito Samba (quebra do real em 1999), a Argentina
sofreu com a desvalorização da moeda do Brasil e entrou em crise severa – a
partir de 2002, o Brasil vem adotando a chamada “paciência estratégica” com os
desesperados equívocos cometidos pelo vizinho platino no Mercosul: há mais de
uma década, o Brasil assumiu no Mercosul o papel que a Alemanha tem na União
Europeia – a maior economia é fiadora (paymaster) das demais para que se
expanda e se aprofunde a união regional. Agora, quando a Argentina apronta mais
uma das suas (a oferta de vantagens especiais para a China, algo completamente
ao arrepio do ACE-18), Mangabeira Unger sugere que o Mercosul deixe de ser uma
união aduaneira para que o Brasil possa negociar acordos bilaterais livremente.
Ideia ruim, hora péssima: hoje, o Brasil simplesmente não pode permitir que o
Mercosul vire letra morta – o bloco é o destino por excelência dos produtos de
nossa claudicante indústria e seu fim significa escancarar o mercado argentino
para os produtos chineses. Ruim com o Mercosul, muito pior sem ele. O desafio
do Brasil é fortalecê-lo apesar dos desmandos argentinos, sem, com isso, deixar
de buscar outras inserções comerciais no mundo. Querer que o Mercosul acabe
apenas porque não está do jeito que gostaríamos que estivesse não é estratégia:
é birra.
Sobre EUA e China, Mangabeira
Unger mistura paixões, tendências e preconceitos em um estranho guisado. O
ministro, que no artigo “Por que o Brasil não tem política exterior?” [www.law.harvard.edu/unger/portuguese/docs/artigos42.pdf]
falava que os diplomatas brasileiros “ficaram paralisados e confundidos pelo
medo dos Estados Unidos”, agora fala deles como “nossa república irmã”.
Curiosamente, para o Brasil poder lidar “com o fato do poderio americano”,
Mangabeira Unger sugeria que “refizéssemos nossa atuação América do Sul através
dos empreendimentos comuns e instituições comuns” – nada comparável com a atual
exortação a fazer “acordos sobre vários aspectos, como o clima, o
desenvolvimento do potencial energético sustentável e no compartilhamento de
tecnologias avançadas” com os americanos. Como os Estados Unidos da América
passaram de “ameaça” a “grande prioridade” da política externa brasileira em
tão pouco tempo e sem que um fato novo se tenha apresentado é um grande
mistério que pode ser explicado pelos quatro fatores supracitados. Primeiro, as
paixões: Mangabeira Unger tem uma relação de amor e ódio com os americanos que
é folclórica; segundo, as tendências: diante de um comércio internacional
brasileiro com a Argentina caminhando para um déficit (o superávit comercial
brasileiro com o vizinho do sul foi de parcos 100 milhões de dólares no ano
passado e deve ser deficitário neste ano, quando foi de mais de seis bilhões de
dólares sob Dilma Rousseff), ele resolveu culpar o Mercosul como se o Brasil
não tivesse responsabilidades e interesses na união aduaneira imperfeita; e,
terceiro, os preconceitos: como um professor colegial doutrinador de
adolescentes, ele afirmou que Brasil e EUA são “muito parecidos: tamanhos
idênticos, fundados na mesma base de povoamento europeu, escravidão africana e
extremamente desiguais”, em um trôpego reducionismo, corroborado pela mais
preconceituosa ainda afirmação de que “a religião faz com que a maioria das pessoas
acredite que tudo é possível”, como se ambos os países fossem formados apenas
por simplistas supersticiosos – e o mesmo se aplica à análise dele acerca da
China: o ministro sugere que a aproximação com Washington seria facilitada por
uma “defesa comum” contra a “ascensão econômica e militar” da China, tratando o
maior parceiro comercial brasileiro como uma ameaça. Um desastre diplomático
ambulante comprovado para as relações do Brasil com o Mercosul, os EUA e a
China, Mangabeira Unger ainda conseguiu a proeza de se indispor com o próprio
Itamaraty na mesma fala, conforme veremos a seguir.
Antes de prosseguir, é mister uma
digressão acerca do conceito de Diplomacia Presidencial. O termo surgiu durante
a presidência de Fernando Henrique Cardoso e significa “a condução pessoal de
assuntos de política externa, fora da mera rotina ou das atribuições de ofício,
pelo presidente da República”, segundo Sérgio Danese, seu formulador. Ela é
caracterizada pela tomada de iniciativa por parte do presidente, que comanda
pessoalmente a política externa de acordo com “sua própria sensibilidade e
senso de oportunidade, orientando a diplomacia e assumindo politicamente a
responsabilidade por ações e resultados dela decorrentes” segundo Danese.
Baseando-se em absolutamente nada, Mangabeira Unger diz que “encobertos pelo
nevoeiro retórico da ‘diplomacia presidencial’ e sem balizamento numa discussão
nacional da nossa posição no mundo, nossos diplomatas tomaram conta da política
externa”, exatamente o oposto do que diz Danese, para quem a Diplomacia
Presidencial é um afastamento da diplomacia burocrática profissional: “exercer
Diplomacia Presidencial é o presidente da República exceder o que corresponde
ao protocolar”, ou seja, sobrepujar o Itamaraty. Podemos encerrar a digressão e
prosseguir, embora seja forçoso reconhecer que já seria suficientemente
embaraçoso o ministro confundir dessa maneira um conceito caro ao Itamaraty –
portanto, é ainda pior conhecer o que mais Mangabeira Unger disse acerca da
diplomacia pátria: que “chanceleres diplomatas de carreira são uma anomalia no
mundo”, não por conta de serem pouco comuns, mas por ele achar que são
incapacitados. É um caso quase patológico de arrogância: ele fala que “não se
pode confundir política externa com ação diplomática”, como se ambas não fossem
complementares – o próprio conceito de Diplomacia Presidencial (o de Danese,
não o de Mangabeira Unger) pressupõe um presidente da República capaz de “agir
de modo independente dessa ação protocolar de política externa”; no entanto,
para Mangabeira Unger, o Itamaraty, pelo fato de vir sendo comandado por
diplomatas de carreira (“uma anomalia”), sequestrou a política externa e é
necessário “que a nação tome de volta sua política exterior”. Evidentemente, o
cargo de chanceler é de escolha direta e irrestrita da Presidência da
República: se ultimamente há mais presidentes optando por diplomatas de
carreira, é porque lhes pareceram pessoas capazes de comandar a chancelaria
brasileira. Mais do que isso, pessoas que primam por não falar demais.
Exatamente o oposto de Roberto Mangabeira Unger, que já pode contabilizar mais
uma chance de ficar calado espetacularmente desperdiçada.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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