Pedro
Nascimento Araujo
Bruxelas é uma cidade única.
Enclave francófono cercado de falantes de neerlandês, a cidade é o coração
político da mais espetacular experiência de paz surgida de todos os tempos: A
União Europeia. O epicentro da União Europeia ser na cosmopolita metrópole da
Bélgica é mais do que uma coincidência. A própria existência do Reino da
Bélgica decorre de uma tentativa de paz: antes de Guilherme II, Hitler e os
bolcheviques tentarem emular Carlos Magno e criar um Império Mundial no Século
XX por meio da anexação da Europa, Napoleão Bonaparte tentara o mesmo no Século
XIX. E, como seus sucessores, ele também cometeu atrocidades indescritíveis
para subjugar os povos livres em seu caminho – e, também como eles, o corso
fracassou: depois de fracassar na Rússia, Napoleão tombou de vez na Bélgica, em
Waterloo. Guilherme I desrespeitou a “neutralidade eterna” que o Tratado de
Londres havia determinado para o recém-criado estado-tampão (surgido como uma
secessão da Holanda, ironicamente, o objetivo de se criar a Bélgica no Século
XIX era exatamente conter futuras aventuras expansionistas da França) e
arrastou o Reino Unido (que, pelo mesmo tratado, se comprometeu a defender a
Bélgica caso o novo reino fosse atacado) para a Grande Guerra e o resto é
história – inclusive o fracasso da Linha Maginot na continuação da Grande
Guerra, quando Hitler, fazendo o mesmo movimento de Guilherme II, mais uma vez
invadiu a Bélgica para atacar a França. Um século após o início das Guerras Mundiais
(a maioria dos historiadores entende o período de 1914 a 1945 como um conflito
único, malgrado a trégua de duas décadas na Europa entre 1919 e 1939) e um
século após a derrota de Napoleão, a mesma Bélgica que foi palco de eventos
cruciais para a história da humanidade volta timidamente ao noticiário:
Bruxelas fechou completamente seu Centro para a circulação de veículos
automotores. É bom nos acostumarmos com isso: Bruxelas é testemunho de algo que
está no começo, mas que deverá ser corriqueiro no mundo nas próximas décadas.
A foto da Família Real da Bélgica
(Rei Philippe, Rainha Matilde e os Príncipes Emmanuel e Gabriel) pedalando
pelas ruas de Bruxelas não teve destaque algum na imprensa brasileira, mas
deveria. Talvez porque as pedaladas da Família Real da Bélgica nos evoquem as
malfadadas pedaladas fiscais que nos acostumamos a ver no Brasil de Dilma
Rousseff. Deveríamos levar as pedaladas a sério, não no sentido fiscal (são uma
das maiores sandices cometidas na área econômica por Dilma Rousseff – e a
concorrência é bastante forte), mas no sentido de locomoção. No Brasil, estão
duas das dez cidades mais engarrafadas do mundo (Rio de Janeiro em terceiro e
São Paulo em sétimo – Moscow lidera o ranking, seguida por Istanbul) de
acordo com estudo da holandesa TomTom, uma das maiores empresas de GPS do
mundo. Ao criar 500 mil metros quadrados de área livre de automóveis em
Bruxelas, os belgas forçam as pessoas a utilizar ou o transporte público ou
transportes alternativos, como as bicicletas e mesmo caminhadas. Obviamente,
tal ação não foi feita da noite para o dia. Em Bruxelas, o acesso ao Centro
será permitido para moradores com vagas de garagem – as vagas de rua foram
simplesmente abolidas. Qualquer circulação terá velocidade limitada a 30
quilômetros horários e foi criada uma espécie de anel viário para que as
pessoas possam estacionar em vagas nas franjas do território sem automóveis.
Táxis entrarão apenas para deixar ou buscar passageiros, não podendo mais
aguardar clientes parados ou circulando a esmo na região. As entregas para
abastecimento do comércio serão feitas em horários diferenciados da madrugada e
do início da manhã. Além disso, mais de mil novas placas de sinalização estão
disponíveis. Todo esse cuidado tem razão de ser. Embora quase todas as pessoas
se digam favoráveis à restrição do tráfego no centro de qualquer cidade na
teoria, na prática há resistências – é a velha lógica egoísta de preferir que
todos os vizinhos deixem os carros nas garagens para que sobre mais espaço. Mas
Bruxelas não busca melhorar o apenas o trânsito, mas também a qualidade do ar
que se respira, o que faz com que sua iniciativa leve ao paroxismo a guerra aos
automóveis nos centros urbanos.
Que os automóveis são um avanço
da humanidade é inegável. Seria impensável haver cidades grandes se, por
exemplo, ainda usássemos cavalos – apenas imaginar a pilha de excrementos e
carcaças nas ruas ao final de cada dia em uma cidade como Rio de Janeiro ou São
Paulo é mais do que suficiente para fazer até o mais empertigado dos ecologistas
desistir de cogitar a hipótese. O motor a explosão polui muito menos, mas,
ainda assim, polui. Mesmo seguindo os rígidos padrões de emissão de poluentes
da União Europeia (sempre ao menos uma geração adiante dos nossos), o Centro de
Bruxelas tem partículas em suspensão acima dos proverbiais 20 microgramas por
metro cúbico de ar, o máximo tolerável segundo a Organização Mundial de Saúde.
A conclusão é simples: sem retirar os automóveis, a cidade não conseguirá
melhorar a qualidade do ar em sua região central. Além disso, a região sofre
bastante com os engarrafamentos. Bruxelas resolveu, então, resolver dois
problemas com uma única ação. A iniciativa belga junta-se a outras em vigor no
mundo. Cidades escandinavas já têm restrições bastante sérias à circulação de
automóveis, mas a concorrência é desleal: são muito pequenas. Dentre as cidades
grandes (e não vamos nos esquecer de que Bruxelas é a capital da União
Europeia, da OTAN e da Benelux, congregação de Bélgica, Holanda e Luxemburgo –
os três países que fundaram, juntamente com Alemanha Ocidental, França e
Itália, a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, embrião da União Europeia),
as iniciativas mais ousadas escolhem um dos dois caminhos: ou se melhora a
qualidade do ar, ou se melhora o trânsito. Para melhorar o trânsito, Londres
tem um pedágio urbano, que reduziu sensivelmente o fluxo de automóveis na sua
região central, mas isso ainda está muito longe de um banimento completo. Para
melhorar a qualidade do ar, Tokyo simplesmente baniu o uso de óleo diesel, mas
automóveis continuam circulando no maior conglomerado urbano do mundo. Ao
juntar ambas as iniciativas, Bruxelas tornou-se pioneira em um processo que
será uma das sínteses do Século XXI: o fim do automóvel como meio de locomoção
urbana.
Falamos na Grande Guerra começada
há um século e no final das Guerras Napoleônicas há dois séculos, mas
poderíamos ter escolhido outra efeméride que completa um século nessa primeira
década do Século XXI: a produção em série de Henry Ford, que popularizou o automóvel
e inaugurou o consumo de massa. Seu reinado durou um século. A ideia ainda está
anos-luz da realidade brasileira. Conquanto muito maiores do que Bruxelas posta
em prática em Bruxelas, cidades como Rio de Janeiro e São Paulo não possuem
sistemas de transporte urbano de massa capazes de levar suas populações em
segurança e com conforto e pontualidade. Andar de bicicleta é arriscado e
particularmente difícil em um país tropical, com verões como o carioca – isso
para não falar nos assaltos. Tudo isso é verdade. Porém, é também verdade que
as obras viárias para facilitar o acesso de automóveis são cada vez menos
bem-vindas pela população, que tenderá paulatinamente a cobrar iniciativas como
a de Bruxelas. A imagem da Família Real da Bélgica passeando de bicicleta no
centro de uma Bruxelas sem automóveis seria impensável há poucas décadas. E
será cada vez mais comum nas cidades nas próximas décadas, assim como o ar
limpo em regiões urbanas. O automóvel continuará existindo, mas teremos uma
relação mais saudável com ele, usando-o para deslocamentos distantes, não para
ir ao trabalho. É uma boa notícia para todos. Para o Brasil, o que acontece nos
domínios do Rei Philippe apenas evidencia o lamentável estado atraso em que
nossa mobilidade urbana se encontra: para podermos pensar em chegar ao estágio
de Bruxelas e abolir os automóveis dos centros das nossas grandes cidades,
ainda temos um longo caminho a percorrer. Que o façamos o mais breve possível.
E sem usar o carro.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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