Oxigênio
na Arábia Saudita
As críticas ao fundamentalismo
religioso muçulmano costumam se concentradas em países como Afeganistão,
Paquistão e Irã. São merecidas, diga-se. No Afeganistão, o Taleban criou um
regime de terror que apedrejava (eufemisticamente, o termo usado era “lapidar”)
pessoas consideradas daninhas ao regime. No Paquistão, há imensas áreas sob o
domínio de terroristas e, mais recentemente, a minoria cristã do país virou
alvo preferencial de atentados que, não obstante serem direcionados a ela,
acabam invariavelmente vitimando mais muçulmanos do que cristãos. E, no Irã, a
ditadura dos aiatolás continua sendo uma das que mais matam no mundo por
motivos políticos e religiosos. Isso dito, há um grande sujeito oculto. Há um
enorme violador de direitos humanos que, por sua parceria militar com o
Ocidente, acaba sendo relegado a segundo plano: a Arábia Saudita. O reino da
Casa de Saud é um dos campeões de práticas bárbaras como crucificação,
lapidação e chibatadas. Lá, menores de idade podem ser condenados a penas
capitais e mulheres podem ser castigadas fisicamente nas ruas pela temida
Polícia Religiosa. Ou melhor: podiam – de acordo com um projeto aprovado na
última semana, a atuação ostensiva da Polícia Religiosa, associada a abusos do
quilate de estupros, torturas e mortes, pode estar com os dias contados.
A Arábia Saudita é uma monarquia
absolutista, daquele tipo que o Ocidente começou a extinguir há sete séculos,
com a Carta Magna dos nobres ingleses contra o rei João Sem Terra. Todavia, ao
contrário dos sucessores do rei que primeiro teve seus direitos temporais
reduzidos por uma lei secular, os descendentes de Saud governam por vontade
divina. A fundamentação é o wahabismo, uma corrente para lá de fundamentalista.
A simbiose entre e Muhammad ibn Saud e Muhammad ibn Abd-al-Wahhab remonta a
1744, quando eles se aliaram e fundaram o então Emirado de Diriyah – origem da
atual Arábia Saudita. Ou seja, a Casa de Saud tem no wahabismo sua sustentação
divina, ao passo que o wahabismo tem na Casa de Saud sua sustentação terrena. A
existência independente de cada um deles é incerta. Juntos, todavia, controlam
a maior potência muçulmana do mundo e financiam a expansão do wahabismo por
meio de madraças em diversos países, como Paquistão, Egito, Afeganistão etc.
Nesses lugares, oficialmente escolas de estudos islâmicos, a radicalização é a
tônica. Com a parceria, o wahabismo se tornou a base de movimentos radicais
sunitas, que vão da Irmandade Muçulmana ao Hamas. E, dentro da Arábia Saudita,
têm sua face mais visível na temida Polícia dos Costumes. É ela quem está
sofrendo a mais notável mudança desde que Muhammad ibn Saud e Muhammad ibn
Abd-al-Wahhab se deram as mãos há quase três séculos.
Mohammed bin Salman tem apenas 30
anos e é vice-príncipe herdeiro, um cargo que não espanta tanto dada a
numerosíssima prole dos reis sauditas. Tido como a eminência parda do reino e
considerado pelos analistas políticos o favorito do rei Salman bin Abdulaziz,
Mohammed bin Salman vem assumindo a missão de adaptar a Arábia Saudita aos
novos e possivelmente irreversíveis tempos de petróleo em decadência. Os
sauditas trabalham com cenários prevendo o barril de petróleo cotado a menos de
10 dólares. A tal valor, virtualmente todos os demais produtores mundiais
quebrariam, pois o custo de produção é superior a isso. Na verdade, apenas
países com enormes reservas conhecidas e de baixíssimo custo de extração
poderiam continuar no jogo: fora a Arábia Saudita como um todo, talvez alguns
poços em locais como Kuwait, Iraque e Irã seriam viáveis. A grande vantagem dos
sauditas é uma estrutura gigantesca já montada em campos mais gigantescos
ainda. De fato, analistas estimam que somente a Casa de Saud poderia ter lucro
mesmo com o barril cotado a ridículos cinco dólares. Em Ryiadh, já se tem como
certo que o uso do petróleo como combustível é inexorável – e que a paulatina
limitação de seu uso a uma indústria petroquímica que também tenderá a buscar
insumos renováveis levará a quedas ainda maiores nas cotações no longo prazo.
Em outras palavras, os sauditas sabem que precisam extrair o máximo dos
estimados três séculos de óleo que ainda possui abaixo de suas areias o mais
breve possível sob pena de terem de abandoná-los lá por absoluta falta de
demanda. Por isso, as reformas econômicas são cruciais. A legitimidade da
monarquia saudita reside tanto no wahabismo quanto nas benesses decorrentes do
bombeamento de petróleo distribuídas a toda a sociedade, ainda que a parte do
leão fique para o Palácio Real: gasolina quase de graça, educação e saúde
gratuitas, moradias e transportes subsidiados, impostos baixíssimos etc. Porém,
com os tempos de barril a 150 dólares cada vez mais no retrovisor, ou a Casa de
Saud acha novas formas de manter a lealdade de seus súditos ou arrisca-se a
perder o pescoço. Simples assim. Escalado para essa tarefa, o príncipe Mohammed
bin Salman foi além. Está tentando modernizar o próprio wahabismo, um tabu em
sua família. E está começando pela Polícia Religiosa.
A Polícia Religiosa é o braço
operacional do wahabismo. A mera existência uma força policial dedicada apenas
a garantir observância de costumes religiosos na vida cotidiana dos cidadãos é
algo surreal aos olhos ocidentais. A visão de uma polícia de costumes é algo
tão medieval à nossa própria compreensão que o significado da Polícia Religiosa
saudita está além do imaginável. Talvez a literatura possa nos dar ideias, como
a sociedade totalitária comunista distópica que George Orwell descreveu em
“1984” possa ser comparada à Arábia Saudita porque, na prática, a Polícia
Religiosa age como um a versão wahabista do Big Brother orwelliano. Ou, mais
apropriadamente, caso a reforma do príncipe Mohammed Bin Salman seja realmente
implementada, a Polícia Religiosa não mais poderá deter e reprimir pessoas que
eles discricionariamente considerarem violadoras do wahabismo em espaços
públicos. Assim, os agentes da Polícia Religiosa (oficialmente chamada pelo
pomposo nome “Comitê de Promoção da Virtude e Prevenção do Vício”, popularmente
conhecida como Mutawa) continuarão com suas presenças ameaçadoras nas ruas, mas
mais não poderão aplicar punições in loco: serão obrigados a reportar suas
observações a autoridades policiais civis que as investigarão. Sim, continua
sendo crime abrir estabelecimentos nas horas de oração determinadas pelo
muezim, mulher andar em público desacompanhada de um homem “responsável” por
ela ou sem o longo véu preto (“abaya”) etc. Todavia, Mohammed bin Salman não é
um liberal, ao menos na acepção ocidental do termo. O que ele busca é
garantir-se à frente do trono saudita no futuro, posando de modernizador. Além
da reforma da Polícia Política, que certamente melhorará a imagem do reino no
exterior ao garantir que estrangeiros não serão constrangidos em público ao
mesmo tempo em que garante que os preceitos do wahabismo serão seguidos pelos
sauditas, o vice-príncipe deve ficar à frente da cada vez mais provável
privatização da Saudi Aramco, possivelmente a criação da maior empresa da
história, com valor de mercado estimado em mais de um trilhão de dólares – um
negócio que só tem a ganhar com o fim da Polícia Política ostensiva. Se
conseguir submeter os cinco mil homens da Polícia Religiosa às novas regras, o
vice-príncipe Mohammed bin Salman não apenas turbinará suas chances de reinar,
mas a própria Casa de Saud e, por extensão, a Arábia Saudita. Evidentemente,
ainda é muito pouco diante da colossal quantidade de obscurantismo, sectarismo
e violações sistemáticas de direitos humanos que grassam na Arábia Saudita e
nos locais nos quais o wahabismo que a Casa de Saud financia atua, mas pode ser
o passo mais difícil da caminhada de mil milhas do povo saudita: o proverbial
primeiro passo.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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