Há 35 anos a Argentina iniciou a
ocupação manu militari das Ilhas Falklands, um minúsculo arquipélago
no Atlântico Sul – os mapas argentinos deliberadamente aumentam o tamanho das
ilhas para uma proporção surreal. As Falklands têm clima inóspito. É um
território tão hostil ao ser humano que lá a agricultura é praticamente
inexistente e apenas ovinos são criados. O frio intenso é reforçado por ventos
de magnitude tão intensa que inviabiliza o tráfego aéreo repetidas vezes – e
faz a sensação térmica assumir contornos polares. Apesar de, ao menos em 1982,
não haver indícios de riquezas naturais ou população em perigo de extermínio
que justificassem uma defesa do território firme como a que os britânicos
tiveram, um olhar mais aprofundado identifica as razões de os súditos da Rainha
Elizabeth II brigarem pela manutenção dos arquipélagos de Falklands, Geórgia do
Sul e Sanduíche do Sul, locais que os argentinos tomaram dos ingleses por um
breve período naquela época – trata-se de uma espinha dorsal britânica no
Atlântico Sul, com seis valiosíssimas reminiscências do Império Britânico, a
saber: Falklands, Santa Helena, Ascenção, Tristão da Cunha, Geórgia do Sul e
Sanduíche do Sul. São seis enclaves do Reino Unido (e, por extensão, da OTAN)
entre a América do Sul e a África. A Junta Militar que comandava a ditadura da
Argentina na época só poderia completamente embriagada para não saber que um
tesouro geopolítico desses jamais seria abandonado de mão beijada por qualquer
hóspede de Downing Street, 10 – nenhum premier aceitaria a pecha de entrar para
a história como o responsável por perder territórios pelos quais seus
antecessores brigaram. Muito menos Margareth Thatcher. Ela viu, veio e venceu –
e mudou a história inglesa. Agora que o Brexit mudou a história
inglesa mais uma vez, a América do Sul e o Reino Unido têm uma oportunidade
excelente de virar a página das Falklands e ter uma solução elegante, eficiente
e factível.
Margareth Thatcher foi uma das
mais importantes mulheres na política mundial. Com disposição para enfrentar
resistências arraigadas, acabou com a apropriação do Reino Unido pelos
sindicatos e foi fundamental para o colapso do Império Soviético. Make
Britain Great Again poderia ter sido facilmente seu slogan, pois foi o que
ela fez: trouxe o Reino Unido de volta ao centro da política mundial em plena
Guerra Fria. Reformou a economia do país, enfrentando uma surreal estatização
que tomou de assalto o berço do liberalismo após a queda de Churchill. Aliou-se
a Ronald Reagan e a Karol Wojtyla para sufocar o Império Soviético e libertar
centenas de milhões dos grilhões do comunismo. Combateu o terrorismo católico
do IRA e avançou nas negociações de pacificação da Irlanda do Norte, e não
esmoreceu mesmo quando foi vítima de atentado terrorista. Pois a Junta Militar
resolveu simplesmente afrontar a essa mulher há exatos 35 anos, quando tomou
Falklands, Geórgia do Sul e Sanduíche do Sul. Não tinha como dar certo – e não
deu. Foi uma das mais desastrosas decisões políticas de toda a história. Um mês
depois, os britânicos já haviam se deslocado por 12 mil quilômetros e estavam
na região com seus moderníssimos armamentos para aplicar a sova da vida dos
argentinos: como sói ser, a espinha dorsal insular dos britânicos no Atlântico
Sul foi mantida intacta, como estava desde o Século XIX. Afinal, é um trunfo
geopolítico único na região: uma base avançada dos britânicos (e, por
metonímia, da OTAN) para operações militares na América do Sul e na África.
A espinha dorsal britânica no
Atlântico Sul é um ativo e tanto. Em 1833, após várias ocupações, os britânicos
tomam posse definitivamente das Ilhas Falklands. As ilhas britânicas na região
são postos avançados que, em caso de guerra, podem ser utilizadas como bases
militares relativamente perto dos continentes sul-americano e africano. Ali, os
britânicos podem formar bases de suprimento para operações de assalto deles ou
de alianças militares das quais façam parte, como a OTAN. Esse é um fator que
Leopoldo Galtieri, chefe de facto da Junta, não ponderou entre suas
muitas doses de whisky: os americanos não veriam vantagem em perder bases de
uso certo da OTAN sob comando britânico para a Argentina. Além, principalmente,
de um detalhe que mudaria tudo: a Casa Branca tinha pactos de defesa coletiva
com a Casa Rosada e com Downing Street; assim, a Junta pensou que ambos os
pactos (Pacto do Rio de 1947 e Pacto de Washington de 1949) se anulariam
mutuamente e, portanto, o Tio Sam permaneceria neutro. Erraram feio – e nem
falamos de desconsiderar a aliança especial entre os dois países forjada em
duas Guerras Mundiais e inúmeros conflitos menores ou mesmo de menosprezar a
relação umbilical entre Reagan e Thatcher – ao desconsiderar o adjunto
adnominal: pacto de defesa. Ou seja, a rigor o Reino Unido poderia fazer chover
toda a OTAN sobre a Argentina se assim quisesse, nos termos do Artigo 5º do
Tratado de Washington. Para a sorte dos argentinos, não foi necessário. A
guerra foi rápida e o status quo ante foi restabelecido – e seria
confirmado há poucos anos em um plebiscito no qual a quase totalidade dos pouco
mais de três mil habitantes (97% dos kelpers como eles são chamados)
optou por permanecer sob o guarda-chuva britânico. Autodeterminação dos povos
obedecida, restou uma bandeira de lamentos para líderes populistas argentinos
e, na prática, o assunto está encerrado até aonde a vista alcança – mas não
enterrado. Até que surgiu o Brexit.
Com o Brexit, temos a melhor
oportunidade de garantir que a espinha dorsal britânica no Atlântico Sul não
seja uma base avançada da OTAN na região. Uma chance de ouro: como a
incompetência de David Cameron levou os britânicos a ter de buscar novos
mercados após decidirem sair da maior zona de livre-comércio, a América do Sul
surge como uma excelente alternativa. As vantagens econômicas são mútuas e
amplas. Para a América do Sul, diversificação tanto de mercados quanto de
produtos de exportação – sem mencionar o acesso a todos os mercados da Commonwealth
of Nations. Além disso, há uma relação histórica entre os países do
subcontinente e os britânicos, que foram fundamentais para impedir uma vitória
napoleônica que significaria uma Reconquista, ou mesmo para inviabilizar
intervenções da Santa Aliança com esse mesmo intuito – sem falar o papel de
investidor pioneiro na infraestrutura e na industrialização regional. Eis a
ideia: com a chance aberta pelo Brexit, o Mercosul poderia buscar um
tratado que selaria o livre-comércio e a amizade com o Reino Unido, tendo como
bases o abandono permanente do pleito sul-americano de soberania argentina
sobre as Falklands e a garantia britânica de que jamais utilizaria suas
possessões no Atlântico para atacar os países da América do Sul. Uma solução
elegante, eficiente e factível para questões respectivamente históricas,
econômicas e geopolíticas. Seria lamentável perder essa chance de ouro.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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