Estilicídio é uma lendária
tortura muito lenta seguida de morte, ora atribuída a torturadores chineses, de
onde ficaria conhecida como tortura chinesa, ora atribuída a torturadores
medievais: por meio do constante gotejar de algum líquido (conotação original
do termo) nos olhos da pessoa torturada, leva-se alguém à insanidade pela tanto
repetição regular de gotas caindo no mesmo local e, de acordo com o mito, à
morte pelo ferimento provocado pela goteira, que chegaria ao cérebro e
literalmente o perfuraria e despedaçaria lentamente, com a vítima vivenciando
tudo até o fim – água para os chineses, prata derretida para os europeus.
Independentemente da veracidade dos parcos relatos históricos sobre o uso da
prática, estilicídio é o primeiro pensamento quando se analisa o que aconteceu
no Batalhão de São Gonçalo (7º Batalhão, na numeração oficial da Polícia
Militar do Rio de Janeiro): quando 96 policiais militares de um único batalhão
são presos por corrupção, temos certeza de que somos vítimas de uma tortura
lenta e cruel que resultará em nossa morte. Estamos sofrendo 96 estilicídios
simultâneos.
A relação promíscua entre a
chamada banda podre da polícia e toda sorte de crimes é tão antiga
que os maus policiais são conhecidos entre os bandidos sem farda como Comando
Azul, uma nada sutil forma de dizer que são bandidos – o que, efetivamente,
são. Todavia, até a espetacular ação da semana passada, as relações íntimas
entre policiais e bandidos era mais ou menos como a matéria escura: conquanto
esteja em todo lugar, ninguém consegue provar sua existência. Nos altos
escalões políticos e policiais, comenta-se abertamente quanto cada batalhão ou
delegacia precisa arrecadar para quem indica o responsável pelo batalhão ou
delegacia em tela. Não é exatamente um segredo de polichinelo porque nem
segredo é. Evidentemente, uma vez que batalhões e delegacias não vendem frutas
ao público como as quitandas, a única forma de arrecadar é por meio de negócios
escusos. E oportunidades para negócios escusos é tudo o que não falta em uma
metrópole com população maior do que a da Suíça e desorganização maior do que a
da Somália. O assombroso caso do 7º Batalhão (São Gonçalo) é didático e expõe
com crueza atroz a máquina de corrupção movida a sangue de inocentes que se
tornou a polícia do Rio de Janeiro – tanto militar quanto civil. Aos fatos.
Foram expedidos no total 96
mandados de prisão contra policiais militares do batalhão em tela. 96 policiais
– e nenhum deles jamais foi responsável pelo 7º Batalhão ou qualquer outro por
uma razão bem simples: todos são praças ou, no máximo, sargentos. Nenhum
oficial está na lista. Ainda assim, as investigações indicam que esse esquema
deveras pedestre movimentava em torno de um milhão de reais mensais em propinas
obtidas de traficantes. A pobreza, territorializada em favelas nas quais a lei
não entra, é um excelente negócio para quem tem meios e ausência de moral para
explorar – aparentemente, para ao menos 96 praças as condições estavam dadas. E
engana-se quem imagina que isso diz respeito apenas aos pobres nas favelas.
Muito pelo contrário, aliás. Quando um grupo é indicado para assumir um
batalhão ou uma delegacia, chega-se ao final da negociação e ao início da
operação. Em bom português: ou se arrecada o combinado ou se perde a indicação.
Então, entram em cena os chamados “arregos” – para arrecadar o combinado, a
polícia cobra para não ser polícia. Todavia, até então muita gente imaginava
que isso significava não coibir o bicheiro, fingir que não viu o restaurante
exceder o horário de funcionamento, não reprimir o flanelinha. Crimes, por
certo, mas crimes sem sangue. Como crime também sem sangue (ao menos
diretamente) é a prática de deixar as bocas de fumo funcionarem sem interrupção
em troca de uma participação na venda. As investigações, todavia, provaram que
pode ser pior. Por meio da análise de mais de 200 mil ligações e outro
sem-número de mensagens, chegou-se à mesmerizante constatação de que há uma
simbiose entre polícia e ladrão no Rio de Janeiro. Como em um estilicídio em
que o líquido vai lentamente penetrando no corpo da vítima e misturando-se, a
ponto de não se saber mais aonde começa um e aonde termina o outro, chegamos ao
ponto de policiais literalmente sequestrarem parentes de bandidos para
forçá-los bandidos a irem assaltar para arrecadar a propina dos policiais. Sim,
isso mesmo: policiais obrigavam bandidos a assaltar – e, certamente, em casos
como esses, os bandidos não se preocupavam em atirar primeiro e perguntar
depois; afinal, se estavam cumprindo ordens da polícia, obviamente a polícia não
iria investigar eventuais corpos deixados pelo caminho. E, assim, pessoas de
bem morreram para que policiais recebessem propina tanto para uso próprio
quanto para cumprir com suas cotas de arrecadação combinadas. Nos matando
lentamente, esses 96 policiais conseguiram fazer ser verdade o que até então se
julgava uma hipérbole: foram piores do que os bandidos.
Quando um de cada sete policiais
em um batalhão é preso por corrupção e uma miríade de crimes (formação de
quadrilha, tráfico de entorpecentes, sequestro, assalto, tráfico de armas
etc.), é natural nos questionarmos sobre como tal situação veio a ocorrer.
Nesse momento, uma digressão é mister em tempo: há seis anos, escrevemos sobre
o assassinato da juíza Patrícia Acioli e falamos que era resultado de uma
perversa combinação de populismo e inoperância da justiça. Pelo lado do
populismo, lembramos como a cidade de São Gonçalo foi transformada em uma terra
sem lei durante as gestões do Casal Garotinho e como milícias e máfias
dominavam tudo, dando como exemplo o assassinato de Mota da COPASA, chefe de um
desses grupos e bastante ligado aos Matheus; pelo lado da inoperância da
justiça, lembramos que Luiz Szveiter, então presidente do Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro e também intimamente ligado a Anthony e Rosinha Matheus (há
investigações sobre o direcionamento de ações advocatícias de empresas com
participação do governo estadual para o escritório de Zsveiter), retirou a
escolta da juíza, que àquela altura já havia condenado cinco dúzias de policiais
do mesmo 7º Batalhão. Crônica de uma morte anunciada: Patrícia Acioli foi
executada na porta de sua casa com 21 tiros na porta de sua casa há seis anos.
Investigações comprovaram que policiais militares do Batalhão de São Gonçalo
foram responsáveis pelo crime vil. Foram 11 condenados, inclusive o então
comandante do 7º Batalhão, tenente-coronel Claudio Luiz Oliveira. Digressão
encerrada, é fácil constatar que, de lá para cá, aparentemente tudo piorou.
Fora algumas situações que beiram o ridículo (por exemplo, policiais fardados
estouram uma boca de fumo que não havia pagado e vendem aos usuários as drogas
com desconto para poder fazer caixa rápido), o que se tem é algo de uma
gravidade incomensurável. Ficamos sabendo que policiais fornecem apoio logístico
e operacional a traficantes para tomar pontos de vendas de drogas em favelas
que são controlados por traficantes que não lhes pagam propina e, assim, lucrar
– e, se inocentes forem mortos no processo, paciência. Apreendiam armas e
drogas dos traficantes e depois as revendiam aos próprios traficantes. Parece
ficção barata, mas é a realidade barata da segurança no Rio de Janeiro,
devidamente documentada: a corrupção policial é um estilicídio contante sobre a
sociedade. No caso do 7º Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro, ao
menos 96 goteiras de nosso estilicídio geral foram fechadas. Já é um começo.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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