Por Pedro Nascimento Araujo
Seul é uma das cidades mais dinâmicas do mundo. Coração da República da Coreia, mais conhecida como Coreia do Sul, um dos países que mais cresceram nas últimas décadas, a cidade conta com aproximadamente 11 milhões de pessoas - se levarmos em conta sua região metropolitana, chega a 25 milhões, mais que os 19 milhões da de São Paulo e abaixo apenas dos 30 milhões da de Tóquio. Em Seul há um distrito nobre chamado Gangnam, às margens do rio Han. E, próximo aos apartamentos de milhões de dólares nas melhores áreas de Gangnam, como o complexo residencial Samsung Tower Palace, um cartão-postal de Seul com suntuosas 7 torres de 42 a 72 andares, há uma favela chamada Guryong, um enclave de 70 acres em um dos locais mais valorizados do mundo.
A questão habitacional é um problema mundial. Um de seus maiores estimuladores é a hipossuficiência de mobilidade urbana de massa. Sem trens, metrôs, barcas, trams e ônibus eficientes, a favelização acaba sendo tolerada pelas autoridades - inclusive as coreanas, que não costumam ser coniventes com ocupações de terrenos de terceiros. Especificamente em Guryong, trata-se de pessoas de diversas origens, em sua maioria deslocadas devido às obras de reforma urbana para os Jogos Olímpicos de Seul 1988. Em meio à profusão de intervenções urbanas no coração da capital, a ocupação de Guryong, então um local remoto (sita ao sopé de uma colina, o local no qual a favela cresceu fazia parte de um "cinturão verde" projetado para delimitar a expansão de Seul), foi negligenciada. Com o passar do tempo, a cidade cresceu e deparou-se com a favela, até hoje em área oficialmente rural. E seus invasores, após tantos anos esquecidos, não aceitaram pacificamente os pedidos de reiteração de posse (no Brasil, tais pedidos nem são cogitados pelas autoridades) e houve conflitos. Ao contrário do que ocorre aqui, todavia, na República da Coreia as autoridades nem fingem que o problema não existe nem tentam minimizá-lo para justificar suas incompetências, como na tristemente célebre declaração do sociólogo Darcy Ribeiro, então vice-governador do Rio de Janeiro: para ele, "favela não é problema; [favela] é solução."
Exceto pelo inverno rigoroso e por estar na Península da Coreia, além de não ser cidadela do crime organizado, Guryong tem elementos de uma favela carioca típica: ligações improvisadas de eletricidade, esgoto a céu aberto, ausência de urbanismo, casas geminadas, deficiência de áreas de lazer etc. Alagamentos e incêndios são comuns. Em suma, Guryong é o perfeito retrato da mais completa ausência de atuação do poder público - que começa na omissão que permitiu seu surgimento. Guryong é pequena: são apenas 2,5 mil habitantes em 1,2 mil residências. A diferença é a atitude das autoridades coreanas quando defrontadas com Guryong: em Seul, os coreanos estão gestando uma solução híbrida, que envolve participações tanto do governo quanto da iniciativa privada e que vale a pena ser conhecida pelos brasileiros.
Quando Guryong expandiu-se sobre diversas propriedades privadas na área rural de Seul, os donos dos terrenos começaram a pedir reintegrações de posses. Como não logravam efeito, particularmente devido à resistência feroz de moradores, com apoio de grupos políticos, muitos proprietários de direito começaram a vender seus terrenos para um incorporador. Quando conseguiu, apresentou seu plano à administração de Seul: derrubar Guryong e construir construir 2,7 mil apartamentos na região e, destes, reservar 1,2 mil para ser alugados aos atuais residentes na área por um preço simbólico e dar-lhes a opção de compra por um preço também abaixo do mercado. É uma solução engenhosa: o poder público não gastaria nada; os invasores - os quais, embora ilegais, adquiriram certa legitimidade devido à inoperância estatal ao longo das décadas - teriam um alívio temporário e a possibilidade de, caso consigam juntar recursos, comprar, a preços subsidiados, uma residência no local; e o incorporador teria lucro suficiente com a venda de 1,5 mil residências em uma área que ficaria ainda mais valorizada sem a favela para financiar todo o projeto.
Para a realidade das favelas do Brasil em geral e do Rio de Janeiro em particular, cuja escala é muito maior em tudo, mas assemelhada no fato de muitas estarem incrustadas nas regiões mais valorizadas da cidade, a solução coreana pode funcionar. Evidentemente, dado o tempo do processo histórico de favelização no Rio de Janeiro (a favela pioneira, o Morro da Favella, atual Morro da Providência, remonta ao final da Guerra de Canudos, e favelas como a Rocinha à década de 1920), não há por aqui antigos proprietários, como aqueles coreanos que, há pouco mais de 2 décadas, eram donos daquilo que hojé é Guryong e venderam seus terrenos a preços aviltantes por conta da incompetência da administração de Seul, mesmo porque, aqui, muitas favelas foram erigidas sobre terrenos públicos. Especificamente na Zona Sul, a parte mais valorizada da cidade, há favelas como o Vidigal, com aproximadamente 160 hectares e 12 mil pessoas em 4 mil domicílios, localizadas em área de grande valor. Há também favelas localizadas em áreas que não devem ser ocupadas, quer seja por estarem em locais de preservação, quer seja por estarem em locais de risco. Se a prefeitura do Rio de Janeiro, em seu planejamento, com base em estudos técnicos, optasse por um grande planejamento, que remodelasse favelas como o Vidigal, criando em seu lugar bairros com ocupação delimitada pelos ditames legais da cidade, e removesse favelas em locais de preservação e de risco, contemplando como contrapartida obrigatória a construção de unidades residenciais na própria região a ser inicialmente alugadas e posteriormente vendidas, sempre a valor subsidiado, aos atuais moradores, exatamente como em Guryong, certamente não faltariam interessados: o retorno obtido com a venda de unidades de luxo em locais nobres seria mais que suficiente para custear as novas habitações dos atuais moradores. É possível. Basta querer.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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