Carolina
Na França, o busto da República
tem nome: Marianne. No Brasil, o busto da República não tem nome: é
simplesmente República. Pouco importa se isso ocorreu por ela ter sido imposta
por meio de um golpe militar sem apoio civil, por ela ter vivido um bom tempo
sem democracia ou quiçá por mero esquecimento – o fato é que, ainda que o país
tenha uma presidente que, nos seus anos de guerrilheira comunista, adotou
vários codinomes, o busto da República no Brasil não tem nome. Diante da falta de
antonomásia, eu tenho uma sugestão: Carolina. Carolina, personagem de uma
canção de Chico Buarque. Na obra musical, Carolina não vê o mundo que passa na
janela – todo mundo tentou mostrar-lhe, mas Carolina simplesmente não viu.
Dilma Rousseff (que já foi Estela, Vanda, Patrícia e Luíza) nunca teve Carolina
entre suas alcunhas. Não obstante, Carolina poderia ser mais uma das inúmeras
personas de Dilma Rousseff: ao final das contas, Carolina é comandada
hodiernamente por Dilma Rousseff – que, como Carolina, não vê o mundo passando
pela janela. Assim, a partir do que podemos depreender da errática política
externa da presidente Dilma Rousseff – passiva diante dos protecionismos da
Argentina, condescendente para com as ingerências da Venezuela, cúmplice das violações
de direitos humanos em Cuba, silenciosa diante das ilegalidades nucleares do
Irã, indiferente aos massacres de civis na Síria etc. – não devemos ter grandes
esperanças: Carolina não vê porque não ver é o que Carolina sabe fazer.
Carolina não viu, mas, nesta
semana, os Estados Unidos da América (EUA) e a União Europeia (EU) anunciaram o
início de negociações para o estabelecimento de uma área de livre comércio
entre os gigantes do Atlântico Norte com previsão de início daqui a 2 anos, em
2015. Se as negociações forem bem sucedidas, a união chamar-se-á Área de Livre
Comércio Transatlântica (TAFTA, na sigla em inglês). Quando estiver pronta, a
TAFTA será um colosso que reunirá virtualmente todos os países do mundo
desenvolvido, à exceção de uns poucos como Austrália, Nova Zelândia, Suíça e
Japão. É o que nossa diplomacia gosta de chamar, algo desdenhosamente, de
países ricos – como se ser rico e desenvolvido fosse motivo para algo além de
admiração, respeito e liderança. Ainda assim, na prática, de nada importa o que
o Brasil diz: os países ricos estão trabalhando para continuarem ricos. Se o
Atlântico Norte já é forte separado, unido na TAFTA será ainda mais: EUA e UE
somam 800 milhões de habitantes (ricos, diga-se), 33 trilhões de dólares de PIB
(quase metade do PIB mundial) e um terço do comércio global. Carolina não viu.
Carolina não vê nada, nem mesmo um movimento dessa magnitude, que integra as
maiores economias do mundo.
As negociações da TAFTA terão
início na cúpula do G-8 no Reino Unido, em 18-Jun-2013. Só isso já seria um
indicativo de que a paciência dos ricos para com o infrutífero G-20 já está no
fim e de que o G-8 voltou a ser o fórum de concertação econômica de relevância
mundial para os países ricos por excelência. A UE, que, com a entrada da
Croácia, terá 28 países-membros este ano, conta com mais de 500 milhões de
habitantes e possui o maior PIB (Produto Interno Bruto, conceito que não
engloba as rendas recebidas do e enviadas para o exterior) do mundo, com 17,5
trilhões de dólares. Não obstante, possui poucos acordos de livre comércio,
dentre os quais se destacam o que possui com a Suíça e com a África do Sul.
Evidentemente, dentre eles há alguns acordos bilaterais com atores de pouca
significância no comércio mundial, como Autoridade Palestina, Egito e Israel.
Felizmente para a União Europeia, essa é a exceção, não a regra. Do outro lado
do Atlântico Norte estão os Estados Unidos da América. Os EUA, com 300 milhões
de habitantes e 15,5 trilhões de dólares de PIB, possuem vários acordos de
livre comércio. Evidentemente, há, dentre eles, alguns acordos bilaterais com
atores de pouca significância no comércio mundial, como Autoridade Palestina,
Egito e Israel. Felizmente para os Estados Unidos da América, essa é a exceção,
não a regra. O país possui também acordos plurilaterais vultosos que,
evidentemente, assim como a TAFTA, Carolina não viu serem forjados: os EUA
estão, por meio de acordos bilaterais com várias nações, criando uma ampla zona
de livre comercio na Ásia-Pacífico que inclui, além da ainda não oficialmente
desenvolvida Coreia do Sul, as desenvolvidas Austrália e Nova Zelândia
(Oceania), as em
desenvolvimento Peru e Chile (América), e as emergentes
Cingapura, Malásia e Vietnã (Ásia). É fácil se perder em meio a tantos acordos
de livre comércio, mas é bem claro que a o fracasso da Rodada Doha produziu uma
onda liberalizante: os países ricos estão recorrendo ao livre comércio como
receita para expansão da produção, da riqueza e do bem estar. O mundo está
passando na janela, mas Carolina não viu.
No plano regional, os EUA também
estão se mexendo – e muito. Desde que, em 2005, o Brasil ajudou Chávez a
enterrar a ALCA (Área de Livre Comércio das América, ou FTAA, na sigla em
inglês), Washington, tipicamente, ao invés de espernear, preferiu trabalhar.
Assim, uma década após um dos mais constrangedores episódios internacionais
protagonizados por um Chefe de Estado (em 2005, Hugo “Por qué no te callas”
Chávez, representante da Venezuela e imbatível campeão da vergonha alheia,
bradou para partidários em um evento paralelo à Cúpula das Américas que
negociava a ALCA na Argentina: “Cada uno de nosotros trajo una pala, una pala
de enterrador, porque aquí en Mar del Plata está la tumba del ALCA. La tumba
del ALCA. Vamos a decirlo: ALCA, ALCA, al c#####arajo!” – declaração que,
sintomaticamente, não recebeu comentário de nenhuma espécie por parte do
Itamaraty), os americanos conseguiram atingir seu objetivo: a ALCA já existe.
Carolina, seu pranto não vai nada ajudar.
Os EUA, após a derrubada chavista
da ALCA em 2005, não se abalaram. Simplesmente, voltaram-se para criar uma ALCA
à la carte, intensificando acordos regionais e bilaterais de livre comércio.
Começando pelo plano regional, há o NAFTA (Área de Livre Comércio da América do
Norte, na sigla em inglês), que inclui os três países da América do Norte
(Canadá, EUA e México), e o CAFTA, que inclui as maiores economias da América
Central (República Dominicana, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e
Nicarágua). Prosseguindo para o plano bilateral, há acordos com Panamá, Chile,
Peru e Colômbia. Esses três últimos, em meados de 2012, juntamente com o México
(membro do NAFTA), anunciaram a criação da Aliança do Pacífico, área de livre
comércio para as quatro economias mais abertas da América Ibérica – vale notar
que todos os seus membros, além de possuírem saída para o Oceano Pacífico,
possuem acordo bilateral de livre comércio com os EUA. Resumindo: Canadá, EUA,
México, República Dominicana, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras,
Nicarágua, Panamá, Chile, Peru e Colômbia. É bem verdade que a ALCA não apenas
não usa mais esse nome como também deixou de fora quem quis ficar de fora – não
por acaso, aqueles que aplaudiram a inacreditável grosseria de Chávez em 2005:
Mercosul e ALBA (Alternativa Bolivariana das Américas, bloco do qual fazem
parte Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Venezuela). Abra os olhos, Carolina:
você não viu, mas a ALCA já existe!
A ALCA já havia passado
despercebida por Carolina. Agora, Carolina não viu a TAFTA. Para aonde estará
voltada a atenção de Carolina? Simples: para o Mercosul. Carolina acredita que
pode trazer mais prosperidade para seu povo ao cindi-lo, via Mercosul, com as
nações do bloco: as agonizantes Argentina (que acabou de fazer um congelamento
de preços – precisa dizer mais?) e Venezuela (que acabou de fazer uma
maxidesvalorização – precisa dizer mais?), e as economicamente insignificantes
Paraguai e Uruguai. Enquanto Carolina não vê nada, os países ricos veem tudo:
segundo previsões iniciais, a TAFTA será capaz de impulsionar os crescimentos
econômicos anuais de Estados Unidos da América e União Europeia em até 1,5%.
Carolina foi seduzida pelo Mercosul: ela realmente acredita que, com boas
intenções, protecionismo, isolamento e heterodoxia funcionam. Sem seu devaneio,
Carolina ignora romanticamente a própria experiência e, como a jovem sonhadora
do universo buarqueano, agarra-se ao falido Mercosul enquanto não vê que o
tempo está passando na janela.
A bem da verdade, a TAFTA é um
daqueles raros casos em que a ideia soa tão natural que beira a obviedade: para
que EUA e UE deveriam investir trilhões de dólares para recuperar
autarquicamente suas economias se é possível obter resultados melhores a custo
zero por meio de uma simples integração comercial – a qual sempre reduz custos
ao ampliar escalas e ao unificar normas e padrões? Os mundo rico está abraçando
o liberalismo, mas Carolina não viu – e seus amigos do Mercosul e da ALBA
optaram pela mesma cegueira ideológica: conveniente, covarde e desastrosa. Enquanto
o mundo literalmente passa na janela, Carolina tem olhos apenas para as
fotografias dela com seus amigos do Mercosul comemorando seus trunfos
comerciais: os 3 únicos acordos bilaterais de livre comércio que firmou em 2
décadas foram com atores de pouca significância no comércio mundial, como
Autoridade Palestina, Egito e Israel. Infelizmente para Carolina, essa não é a
exceção. Essa é a regra. Quando, lá fora, o mundo finalmente desistir de passar
na janela de Carolina, estejam certos de uma coisa: enquanto
Dilma/Estela/Vanda/Patrícia/Luíza estiver a controlá-la, Carolina não vai ver.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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