Por Pedro Nascimento Araujo
A Argentina é um caso raro de
país que involuiu economicamente. No máximo, países desenvolvidos são
suplantados por países mais desenvolvidos. Não ocorre a ninguém dizer que o
Reino Unido empobreceu porque a Alemanha ou os Estados Unidos cresceram mais
que eles ou quando, séculos antes, os próprios britânicos suplantaram os
holandeses no comércio mundial: conquanto não sejam mais nações hegemônicas
como foram em antanho, é inquestionável que Holanda e Reino Unido são nações
desenvolvidas hodiernamente. Todavia, é cada vez mais difícil afirmar o mesmo
em relação aos argentinos: a Argentina, que já foi país desenvolvido, não
apenas regrediu para a condição de nação em desenvolvimento como está
caminhando a passos largos para tornar-se país com menor desenvolvimento
relativo, eufemismo internacional para nações pobres. Um sintoma que
ironicamente atende pelo nome de Libertad: um navio do governo argentino entrou
este mês em um processo semelhante ao B&A (Busca & Apreensão) – o que
significa, em bom português, que o navio estava sendo procurado e foi detido
para pagar dívidas.
Libertad é um belo veleiro.
Trata-se de uma fragata argentina usada para treinamento de jovens oficiais
platinos, em um tipo de viagem de formatura ao redor do mundo que é bastante
comum. Todavia, o que deveria ser um momento inesquecível para os futuros
líderes da Marinha da Argentina tornou-se um pesadelo. O Libertad está detido em Gana. Não há prazo para
o Libertad ser liberado – na verdade, é possível que nunca mais retorne a um
porto argentino. Quanto aos tripulantes, estão detidos no porto de Tema (Gana)
– entre eles, há um brasileiro – e humilhados.
Tudo começou em 2001. Naquele
ano, a Argentina aplicou um calote de 81 bilhões de dólares. Diante de tão
monumental default, o governo argentino ofereceu renegociar sua dívida com um
desconto de 65%. Em outras palavras, de cada 100 dólares, a Argentina pagaria
35. Quem não aceitasse, evidentemente poderia tentar acionar o governo
argentino em cortes internacionais – algo muito complicado, muito demorado e
muito incerto. Em 2010, quase uma década após o calote, a Argentina ofereceu
novamente um desconto pornográfico para quem quisesse, ao menos, receber algo e
reduzir o prejuízo. Mais de 90% dos créditos foram renegociados, mas pouco mais
de 7 bilhões de dólares continuam sendo questionados. E há profissionais nesse
negócio. Para ser mais preciso, há o Elliott Management, fundo de investimentos
nova-iorquino. Eles não se incomodam em esperar. Simplesmente
fazem muito dinheiro ao cobrar internacionalmente os países devedores.
Investidores e especuladores como
o Elliott Management sabem que, em algum momento, em algum país, algum juiz
autoriza a execução de bens do governo devedor. Os governos devedores também
sabem. Por isso, o Libertad não tinha um roteiro que pudesse ser chamado
“mundial” – evitava deliberadamente portos de países nos quais pudesse ser alvo
de B&A, como Alemanha. Evidentemente, o Libertad parou no Brasil e na
Venezuela sem correr o menor risco, e contava que o mesmo poderia acontecer em Gana. Mas faltou
combinar com a justiça de Gana. O governo argentino, previsivelmente,
esperneou, até agora sem sucesso.
Talvez o governo da Argentina
ainda não tenha percebido o quão patética e triste é sua situação de ficar
reclamando de sofrer B&A. Se não quer que isso aconteça, pague suas
dívidas. Há 110 anos, José Maria Drago, Chanceler da Argentina, tentou obter o
apoio do Barão do Rio Branco, Chanceler do Brasil, para um repúdio continental
ao uma cobrança hostil (leia-se canhoneiras) de Reino Unido, Alemanha e Itália
de dívidas não pagas da Venezuela. Rio Branco foi contra o que seria a
“Doutrina Drago”, defendendo o pacta sund servanda, um princípio jurídico
básico caro ao Brasil segundo o qual contratos têm de ser cumpridos. Naquela
época, apesar de defender calotes alheios, a Argentina cumpria seus contratos.
Ao longo desses 110 anos, de Drago a Kirchner, a Argentina mudou: passa a
defender seus próprios calotes. Felizmente para o Brasil, em que pesem calotes
passados (de Vargas a Sarney), atualmente impera o pacta sund servanda e nossos
navios não precisam ficar se escondendo. Infelizmente para a Argentina, cada
vez menos os contratos são cumpridos e os navios deles precisam ficar se escondendo
sob pena de serem detidos. Triste. De Drago a Kirchner, mais de um século de
decadência. O povo argentino, correto e trabalhador, não merecia mais essa
humilhação por parte de seus governantes.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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