Por Pedro Nascimento Araujo
Uma das regras mais famosas de
luta foi escrita há mais de dois milênios e continua atual: “Quando cercar o
inimigo, deixe uma saída para ele, caso contrário, ele lutará até a morte.” Faz
parte de “A arte da guerra”, obra atribuída ao chinês Sun Tzu. Talvez ainda
seja cedo demais para afirmar que o Ocidente está acuando o prototzar Putin I
da Rússia mais do que seria necessário para enfraquecê-lo sem torná-lo
agressivo além da conta, mas há sinais inequívocos de que tal patamar está
próximo. Evidentemente, não se faz aqui uma apologia ao chamado apaziguamento:
com bullies como Putin I, que não entendem a empatia, não se pode ceder nunca.
Mas também não é sábio pressioná-lo demais. Há uma semana, Putin I fez seu
simulacro de democracia favorito: apresentou-se diante da Duma para algo como o
State of the Nation dos presidentes americanos, quando se apresentam diante do
Congresso para prestar contas do ano passado e assumir compromissos para o ano
seguinte. Obviamente, o ocupante da Casa Branca será cobrado por isso, algo que
jamais ocorrerá com o ocupante do Kremlin. Não que Putin I não tenha do que se
gabar, especialmente quando sua contraparte em Washington é uma liderança
vacilante, contraditória e mais afeita aos palanques do que aos gabinetes: no
último ano, o russo conseguiu quase tudo o que queria em política externa,
desde a manutenção de seu aliado Bashar al-Assad em Damasco (na prática, ele
vetou uma intervenção militar e abriu caminho para o fortalecimento do Isis)
até a anexação da Crimeia manu militari, ainda que [mal] camuflada – e nem
precisamos falar sobre sua incontestável supremacia em política interna, a
ponto de executar os Jogos Olímpicos mais caros (e candidato ao posto de mais
superfaturado) de todos os tempos em Sochi. O homem, enfim, ganhou quase tudo.
Só não contava com o povo da Ucrânia, que, aparentemente, se cansou de sofrer bullying
russo e expulsou Víktor Yanukóvytch, seu cleptocrata amigo em Kiev, e
transformou os vistosos frutos de sua corrupção (travestida em uma mansão
cinematográfica com direito a uma coleção de carros raros) em atração
turística. E aí tudo degringolou para ele.
A anexação da Crimeia foi o
primeiro passo. Foi uma ação vil, sub-reptícia. Não passou despercebida. Desde
a Revolução Laranja (2004), passando pelo envenenamento de Viktor Yushchenko,
exatamente como parte de um processo de fraudes que levou Víktor Yanukóvytch a
derrotá-lo no pleito daquele ano e ser derrubado pelo povo nas ruas
(curiosamente, Víktor Yanukóvytch estava no poder este ano, novamente conduzido
por Putin I, quando o povo o apeou do poder pela segunda vez em 10 anos, um
feito realmente notável), que Putin I vem tentando reconverter a Ucrânia em
suseranato russo. Mas, dessa vez, ele foi longe demais. Tanto que, após
conquistar a Crimeia, ele recuou nas interferências dos movimentos separatistas
“espontâneos” (na verdade, agentes russos enviados para as regiões russófonas
para seguir o mesmo roteiro: protestar contra “discriminação”, ocupar prédios
públicos e convocar um “referendo” para juntar-se à Federação Russa) que
fomentou por todo o Leste da Ucrânia. Putin I sabe quando deve mostrar e quando
deve esconder suas garras, especialmente quando a assinatura de seus sistemas
antimísseis foram encontradas na derrubada de um jato comercial malaio no meio
do ano. Ele havia parado de ladrar. Até agora.
A justificativa para anexar a
Crimeia que Putin I apresentou para seus correligionários no discurso anual foi
uma pérola de cinismo, daquelas que devem ser estudadas e repetidas nas
faculdades de oratória: ele comparou a Crimeia ao Monte do Templo, local
sagrado para o Judaísmo, porque foi em um rio de lá que o Príncipe Vladimir
(coincidentemente, o mesmo prenome de Putin I) foi batizado no Século IX,
levando o Cristianismo para a Mãe Rússia, insinuando que a Crimeia era o berço
da nação russa. Na verdade, a Crimeia, assim como a Ucrânia, somente seria
conquistada pelos russos no Século XVIII – antes, fez parte (por muito mais
tempo, diga-se) do Império Otomano. De qualquer modo, Putin I disse que a
Crimeia era um “pretexto” para as sanções do Ocidente: se ele não tivesse
anexado a península na qual as guerras modernas começaram (1853-1856), certamente
europeus e americanos encontrariam outra justificativa para pagar mais caro por
gás e petróleo apenas para prejudicá-lo em sua defesa da Rússia – sim, o homem
tem certeza de que o Ocidente não faz outra coisa na vida exceto persegui-lo. O
festival de disparates ditos por ele naquela noite é infindável: para ficar no
mais insano, ele disse que o Ocidente apoiou os rebeldes da Chechênia nos anos
1990 para dividir a Rússia, assim como fez com a Yugoslávia. Como escreveu a
The Economist acerca dele, não há nada de fundamentalmente perigoso em um líder
político contar mentiras para salvar seu pescoço, como é o caso de Putin I: a
Rússia terá um 2015 de forte recessão, com as sanções ocidentais calando fundo
na plutocracia que comanda o país, bem como a queda brusca na cotação do
petróleo dificultando a geração de dólares em um cenário de sistema financeiro
internacional fechado para o país. O perigoso é quando este líder acredita nas
besteiras que diz. E esse parece ser o caso de Putin I. Só isso justifica sua ação
mais recente na Polônia.
Assim como a Ucrânia, quase
todo o Leste Europeu e os Bálcãs sempre foram vistas pelos tzares (tanto os
hereditários, de direito divino, quanto os genocidas oriundos do Partido
Comunista da União Soviética) como parte da Grande Rússia. Não é diferente com
Putin I. Pois é especificamente na Romênia, um país atrasado na franja leste da
União Europeia, que Putin I repete pela enésima vez seu joguinho de
desestabilização. Porém, diferentemente da Ucrânia, lá ele o faz por meio de
pseudoecologistas a soldo da Gazprom, a gigante estatal de energia que ele
controla com mão de ferro capaz de fazer Nicolás Maduro parecer um garoto de
jardim de infância brincando com sua PDVSA. Eis a história: a Gazprom fornece
gás para a Romênia, assim como para a Ucrânia. Na Ucrânia, a Gazprom não teve
pudores de cortar o suprimento de gás ou de aumentar seu preço da noite para o
dia sempre que queria prejudicar um inimigo de Putin I que estivesse no poder.
Ciente disso, não apenas a Ucrânia, como a Europa inteira também, está em busca
de maneiras de diminuir a dependência dos humores de Putin I. A solução mais
viável é o uso do gás de folhelho (shale gas), obtido com a tecnologia de
fracionamento de rochas que os americanos desenvolveram e que permitiu ao país
tornar-se autossuficiente em hidrocarbonetos a pontos de ser potencialmente o
maior exportador do mundo em menos de duas décadas. Para os países europeus que
não possuem jazidas, uma solução é importar o gás no formato liquefeito (GLP)
dos americanos, eliminando, com isso, a dependência da Gazprom. Para os que
possuem jazidas, caso da Romênia, uma solução melhor ainda é produzir o shale
gas em casa e ainda exportá-lo para os vizinhos que são clientes da gigante
russa. A Romênia, portanto, firmou um acordo com a americana Chevron para
explorar suas reservas. Foi a conta. Putin I despachou para vilarejos isolados
equipes de ativistas e baderneiros profissionais que organizam “protestos
espontâneos” contra o shale gas. São pessoas que nunca estiveram em vilarejos
como a pequena Pungesti, mas que apareceram com um uma infraestrutura de fazer
corar de inveja o Greenpeace. A tática já funcionou na Bulgária e na Lituânia,
países que cancelaram contratos com companhias americanas e continuam à mercê
da Gazprom. A Rússia, obviamente, nega tudo. Mas, assim como nas ditaduras
árabes protestos contra o tirano de plantão são severamente reprimidos e
protestos contra Israel são fortemente apoiados, na Rússia os ecologistas
sérios são presos sumariamente (a brasileira Ana Paula Maciel que o diga!), mas
os ecologistas contra o gás de folhelho nunca são incomodados em seus
protestos; na verdade, contam com o Ecologista #1 de todas as Rússias: Putin I,
recém-convertido. Obviamente, apenas quando se trata de shale gas, cuja
demonização também é uma constante na nada livre imprensa russa. Se a Gazprom
conseguir impedir a exploração do gás de folhelho no Leste Europeu, terá
realizado o crime perfeito, mantendo sua expansão imperial sob os aplausos dos
inocentes úteis do Ocidente. Nada mais justo do que agradecer a Putin I, o
ecologista.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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