Por Pedro
Nascimento Araujo
Nos últimos meses, a Casa Rosada
tem vivido em uma realidade paralela tal que faz o Palácio do Planalto parecer
o Clube dos Céticos: após o país insistir em negar o óbvio (que não está
honrando seus compromissos), Cristina Fernández de Kirchner redobrou a aposta
na prestidigitação, em uma ação que ela define nada sutilmente como “escolha
entre a pátria e os fundos abutres.” É uma falácia, obviamente, mas uma falácia
que lhe rende um respiro em popularidade. E como de popularidade é o que ela
mais precisa a um ano das eleições que escolherão seu sucessor, não podemos
esperar nada além de bizarrices ainda maiores em sua sanha de apresentar a
crise de forma maniqueísta: “Pátria contra fundos abutres”. É uma manobra
diversionista que ela sabe que não durará para sempre, mas ela não precisa que
dure para sempre. Como uma boa prestidigitadora, ela precisa apenas iludir a
plateia por tempo suficiente para que as cortinas da eleição presidencial de
2015 se fechem.
Sem entrar nos detalhes do estado
de coisas que levou ao default argentino, o fato é que a Argentina é
considerada pelas grandes agências de avaliação de risco como um país em
moratória, por mais que a Casa Rosada tente dourar a pílula ao falar em
“moratória seletiva” e outros que tais. Ao invés de deixar que a coisa chegasse
a uma solução judicial, a Argentina poderia ter negociado com a minoria de
credores que não aceitou a desvalorização imposta por Néstor Kirchner no default do
início da década passada. Não seria nada complicado de se fazer. O Brasil, por
exemplo, entrou em acordo com a família Dart quando fez o tag along da
adesão ao Plano Brady, condição necessária para o sucesso do Plano Real. O clã
Dart não aceitou as condições oferecidas pelo país e foi brigar na justiça
americana pelos juros previstos nos títulos brasileiros que haviam sofrido default em
1987, quando o governo José Sarney tentou defender sua incompetência e definiu
o calote como “moratória soberana.” Ao invés de jogar para a plateia, Itamar
Franco costurou um acordo que impediu que os demais credores também pudessem se
beneficiar dos valores diferenciados (a chamada “Cláusula RUFO”). Na Argentina
atual, a opção foi pela espetacularização do calote. Fernández de Kirchner
arrastou o alquebrado país para sua desesperada e inútil luta por popularidade.
Ao invés de proteger a Argentina, preferiu se proteger. Ao invés de negociar,
preferiu bravatear. O custo, que já seria elevado de qualquer jeito, torna-se
mais proibitivo quanto mais ela insiste em dobrar a aposta.
Os argentinos já caíram numa
esparrela dessas há 22 anos. Quando os generais resolveram tomar as Ilhas
Falklands manu militari, colheram popularidade instantânea. E popularidade
alta, improvável em momento de crise financeira. Se um governo fraco estivesse
no Número 10, eles se sairiam muito bem. Deram o azar de cruzar com Margareth
Thatcher. Noves fora a patetice de recorrer aos americanos com o argumento do
Pacto do Rio (também conhecido como Tratado Interamericano de Defesa Coletiva,
prevê que um ataque extra-hemisférico a um pais americano equivaleria a um
ataque a todos os países americanos, mas gerou uma resposta da Casa Branca que
foi uma peça de humor involuntário: Reagan lembrou que sim, os EUA eram parte
do TIAR, mas também eram parte do Pacto de Washington, que criou a Organização
do Tratado do Atlântico Norte, outro pacto de defesa coletiva, e que o Reino
Unido, um membro da OTAN, tinha sido atacado pela Argentina – portanto, se
fosse para agir, ele teria de agir em defesa de Londres, a parte que foi
agredida; assim, Buenos Aires deveria se dar por contente com a neutralidade
americana na Guerra das Falklands, que era bem menos do que aquilo que, a
rigor, os compromissos de defesa coletiva da Casa Branca exigiriam dela), os
generais conseguiram apoio popular até que a realidade se impusesse. Fernández
de Kirchner precisa apenas de um ano sem que se perceba de forma clara que o
país quebrou por causa da briga inútil com os “fundos abutres”. A cortina de
fumaça escolhida, por mais paradoxal que possa parecer, é exatamente aprofundar
a briga com os “fundos abutres”, na esperança de que dure até depois das
eleições de 2015 e que a atual presidente pose de defensora da pátria na falsa
dicotomia “Pátria contra fundos abutres”. A aposta atual é ousada: um projeto
de lei para reestruturar a já reestruturada (em 2005 e 2010) dívida argentina
na Argentina, trocando- a por novos papéis nacionais, sujeitos à justiça de
Buenos Aires ao invés de à justiça de Nova York.
Obviamente, nenhum investidor
sério (é possível que governos amigos o façam por razões políticas) trocaria
títulos emitidos em Nova York por títulos emitidos em Buenos Aires no momento
atual, quando a Argentina encontra-se em default. Cristina Kirchner sabe
disso. Mas, ao jogar para o Congresso argentino a contenda, ela transformou uma
crise que estava nos noticiários de economia e de assuntos internacionais para
os noticiários de política local. Para a sua seara. Em Buenos Aires, ela pode
posar de defensora dos interesses nacionais, mesmo que às custas exatamente
desses interesses. Ela fala em “unidade nacional” contra “exploradores da
Argentina”. De forma mais eloquente que Sarney, ela está conseguindo
transformar a incompetência econômica de seu governo em fato gerador de apoio
político para seu governo. Ela fala em “defesa da soberania”, não em evidente
quebra de contrato por parte de seu governo. Enquanto isso, a inflação de 30%
ao ano fica em segundo plano. Enquanto isso, as greves gerais (gerais mesmo, a
ponto de paralisar a grande paixão argentina: não houve jogos de futebol no dia
28-Ago-2014) por reposições das perdas inflacionárias (os índices manipulados
não enganam mais ninguém) perdem as manchetes. Evidentemente, o ardil de
Cristina Fernández de Kirchner não durará para sempre. Para ela simplesmente
não importa: com o crescimento de seu rival Sergio Massa nas pesquisas para
2015, ela só precisa que sua habilidade de prestidigitadora distraia os
eleitores até as eleições.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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