Por Pedro Nascimento Araujo
Na VI Cúpula do BRICS, realizada
em Fortaleza no dia 15-Jul-2014, na semana seguinte da final da Copa do Mundo
FIFA 2014, o simpático acrônimo criado em 2001 por Jim O’Neill, um economista
do Goldman Sachs, deixou o campo das ideias e converteu-se em realidade
palpável. Aliás, mais palpável, impossível: África do Sul, Brasil, China, Índia
e Rússia anunciaram a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla
em inglês), um banco de fomento, e do chamado Mecanismo de Reservas, uma
reserva internacional conjunta. São iniciativas notáveis. Podem também ser
muitíssimo bem-vindas, desde que atendam aos nobres motivos declarados em suas
criações. Porém, podem também ser apenas um instrumento de aplicação do chamado
Consenso de Beijing – e, nesse caso, o Brasil estaria sendo sócio de um
desserviço à promoção da democracia e dos Direitos Humanos nas regiões mais
pobres do mundo, bem como um peão da hegemonia sonhada pelo Partido Comunista
da China.
O Consenso de Beijing é um
conceito pouco conhecido, mas muito controverso. Curiosamente, foi apresentado
ao mundo por outro economista do Goldman Sachs, Joshua Ramo, em 2004 –
portanto, apenas três anos após O’Neill cunhar o termo BRICS. Basicamente, a
ideia de Ramo era apresentar um contraponto ao chamado Consenso de Washington,
base das reformas liberais que varreram o mundo na década de 1990 e que, com
algumas correções, são a base econômica das nações: controle de gastos
públicos, metas inflacionárias, livre comércio. Assim, o Consenso de Washington
é, na verdade, um conjunto de recomendações econômicas – em outras palavras,
algo que impõe condicionalidades e comportamentos às nações que a ele aderirem.
E, apesar de ter o nome da capital americana, o Consenso de Washington não foi
pensado como um instrumento para aumentar o poder dos Estados Unidos no mundo;
antes, foi pensado como uma maneira de disseminar as razões do sucesso
americano para o resto do mundo. Em suma, o Consenso de Washington é uma
doutrina que segue quem quiser. Nada mais diferente que o Consenso de Beijing:
o Consenso de Beijing não é uma doutrina. E essa é a simultaneamente seu lado
positivo e seu lado negativo: o Consenso de Beijing foi pensado como um
instrumento para aumentar o poder da China no mundo.
No Consenso de Beijing, não há
receitas. Não há preceitos. Na verdade, em forma de aforismo, poder-se-ia dizer
que no Consenso de Beijing o único consenso é não haver consenso. Em
compensação, no Consenso de Beijing há um objetivo claríssimo: transformar o
antigo Império do Meio na maior potência do mundo ainda no Século XXI. Ele é
simplesmente o meio para a consecução desse objetivo de poder, evidente à
chinesa: sem pressa, paulatinamente – e, de preferência, sem alarde. Exatamente
como eles construíram a Grande Muralha ou foram a principal potência naval mundial
até o fim da Idade Média, quando voluntariamente se fecharam para o mundo
exterior e involuntariamente deram espaço para que a Europa a sucedesse e,
humilhação das humilhações, fizesse sua partilha em áreas de influência poucos
séculos depois. A China percebeu que havia ficado para trás e começou sua lenta
caminhada de volta ao topo. Depois do fracasso de um dos maiores crimes que a
humanidade já presenciou (a Revolução Cultural de Mao Zedong), a China se
modernizou com Deng Xiaoping – curiosamente, adotou preceitos típicos do
Consenso de Washington para tanto – e, hodiernamente, é um gigante econômico em
busca de espaço político, como muitas nações antes dela: Inglaterra, Alemanha,
Japão e Estados Unidos são ótimos exemplos. Porém, ao contrário dos seus
antecessores, a China tem um plano realista e pragmático: o Consenso de
Beijing.
Por não impor nada a ninguém, o
Consenso de Beijing dá à China uma liberdade que país nenhum jamais para se
destacar como potência na arena internacional. “Business is America’s business”
(“O negócio dos Estados Unidos é fazer negócios”, famosa frase do presidente
americano Calvin Coolidge proferida há quase 100 anos) bem poderia ser o lema
do Consenso de Beijing. Por meio dele, a China se dispõe a fazer qualquer tipo
de negócio com qualquer país desde que lhe seja favorável. Não há
condicionalidades políticas, econômicas, sociais, culturais, ambientais ou
humanitárias. É assim que a China tem agido na África. Enquanto as empresas de
nações ocidentais seguem regras rigorosas para coibir corrupção, abusos
sociais, poluição ambiental etc. quando vão negociar com nações africanas, as
chinesas simplesmente entregam o dinheiro ao ditador de plantão. Sob o Consenso
de Beijing, para uma empresa chinesa pouco importa se o grupo dominante está
enriquecendo por meio de corrupção enquanto o povo está empobrecendo, se há
exploração de mão de obra escrava, se há degradação ambiental ou mesmo se há
genocídio: importa apenas que se cumpra o combinado e que a China mantenha seus
suprimentos de matérias-primas e seus mercados consumidores fluindo suavemente.
Sob o Consenso de Beijing, não haveria problemas em fazer negócios com regimes
como o Apartheid, que negava cidadania aos negros. Sob o Consenso de Beijing,
não haveria problemas em fazer negócios com regimes como o Khmer Vermelho, que
matou mais de ⅓ dos cambojanos. Sob o Consenso de Beijing, não haveria
problemas em fazer negócios com regimes como o Taleban, que punia com morte
quem não seguisse sua interpretação doentia da lei islâmica. Trazendo para os
dias atuais, sob o Consenso de Beijing não há problemas em fazer negócios com
regimes como o de al-Assad, que usa armas químicas contra civis – aliás,
empresas chinesas continuam fazendo negócios com a Síria.
O Brasil entrou na esfera do
Consenso de Beijing quando os Organismos de Fortaleza (Novo Banco de
Desenvolvimento e Mecanismo de Reservas) foram criados. São dois colossos. Com
capital a ser integralizado na ordem de 100 bilhões de dólares, o Novo Banco de
Desenvolvimento (NDB) terá sede em Shanghai (nada mais natural: a China já
declarou querer fazer desta antiga cidade portuária, símbolo maior da
decadência chinesa quando foi ocupada pelos britânicos durante a I Guerra do
Ópio e aberta pelo Tratado de Nanquim de 1842, um Tratado Desigual de livro-texto)
e a China integrará mais capital que os demais – embora os países do BRICS
tenham tecnicamente o mesmo peso, não é difícil imaginar quem se sentará na
cabeça empunhando a caneta: o PIB da China. O mesmo vale para o Mecanismo de
Reservas, cujo montante inicial será de outros 100 bilhões de dólares. Para a
China, que dará inicialmente 41% deste total, esses 41 bilhões de dólares são
mero troco: suas reservas internacionais passam de 4 000 bilhões de dólares
(sim, são mais de quatro trilhões de dólares: a título de comparação, o Brasil
possui menos de 10% deste total enquanto a África do Sul possui pouco mais de
1%). Ao comandar na prática os Organismos de Fortaleza, a China poderá usá-los
como ferramentas do Consenso de Beijing (a rigor, ainda não é possível: tanto o
NDB quanto o Mecanismo de Reservas ainda não estão abertos para membros de fora
do BRICS, mas os próprios membros demonstram intenções de fazê-lo), deixando
espaço direto para que o dinheiro dos impostos pagos pelos brasileiros seja ser
usado para financiar os piores governos do mundo. Cabe ao Brasil se posicionar
desde já contra esse possível uso de recursos públicos em ações contrárias aos
princípios definidos no Artigo 4º da Constituição Federal de 1988, que elenca
os princípios por meio dos quais o país atuará na cena internacional, dentre
eles prevalência dos direitos humanos (inciso II) e repúdio ao terrorismo e ao
racismo (inciso VIII).
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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