Por Pedro Nascimento Araujo
Em 16 de julho de 1945, a primeira bomba
nuclear foi detonada em um deserto do Novo México, estado do sul dos Estados
Unidos da América. Começava naquele momento o que alguns historiadores
defendiam ser uma nova idade na cronologia humana – a Era Nuclear. Desde sua
gênese, essa pretensa Era Nuclear (o conceito caiu em desuso após o fim da
Guerra Fria e a consequente dissolução de um aparentemente inexorável
holocausto nuclear no horizonte da humanidade) foi marcada pelo medo de que
pessoas más (eufemismo para genocidas, terroristas etc.) tivessem acesso à mais
devastadora das armas jamais inventadas; na verdade, a pioneira detonação no
Novo México foi resultado da percepção de que os nazistas estavam tentando
utilizar a energia dos átomos para construir uma bomba atômica que garantisse a
vitória (e a dominação do mundo, natürlich!) para eles. Alertado por cientistas
do porte de Albert Einstein, o governo de Franklin Delano Roosevelt preparou a
maior epopeia científica de todos os tempos: o Projeto Manhattan. Sob o comando
de Robert Oppenheimer, os mais capacitados cientistas do mundo livre (além de
americanos, havia muitos estrangeiros fugidos das perseguições dos nazistas e
dos soviéticos) tiveram recursos ilimitados para vencer a corrida pela bomba
atômica – e venceram. Quando o cogumelo atômico surgiu no horizonte, surgiu
junto o medo de que caísse em mãos erradas. Na verdade, havia um espião
soviético (o alemão Klaus Fuchs) infiltrado na base principal do Projeto
Manhattan, em Los Alamos
(Novo México) e, em 1949, graças em grande parte ao roubo de dados por parte do
casal Julius e Ethel Rosenberg, a União Soviética de Stálin detonaria sua
primeira bomba nuclear, dando início a uma corrida armamentista com os
americanos. O medo de que o controle da proliferação nuclear saísse da esfera
das principais potências do mundo era tão grande que, em 1967, os membros
permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (China, Estados Unidos,
França, Reino Unido e União Soviética) – não por acaso também os únicos
detentores de bombas nucleares – decidiram criar o Tratado de Não-Proliferação
(TNP), um “congelamento do poder mundial”, nas palavras de Araújo Castro,
embaixador do Brasil nas Nações Unidas à época. Um congelamento que foi
relativamente bem sucedido em evitar a proliferação horizontal (novos países
adquirirem bombas atômicas; na proliferação vertical, que é a capacidade
nuclear de países que já possuem a bomba atômica, o TNP foi um retumbante
fracasso durante a Guerra Fria): desde 1968, apenas Índia, Israel (o país não admite
publicamente), Paquistão e Coreia do Norte adquiriram a bomba atômica – a
Ucrânia devolveu as que estavam instaladas em seu território para a Rússia em
troca da garantia russa de respeito à sua integridade territorial (haja
ironia!), a África do Sul construiu a sua com sucesso, mas abriu mão
voluntariamente, e outros países, como Argentina, Brasil, Iraque, Síria etc.
não conseguiram concluir seus programas nucleares militares clandestinos.
Portanto, 7 décadas após a primeira bomba atômica ser explodida, podemos dizer
que o mundo conseguiu vencer o risco de proliferação nuclear: o risco de
beligerantes em um país em guerra civil receberem uma bomba atômica de um dos
países nuclearmente armados para vencerem as hostilidades é zero – as reações
internacionais seriam tão grandes que fazer isso seria quase igual a fazer uma
declaração de guerra com o resto do mundo. E, no entanto, se o mundo pode se
orgulhar de ter controlado a proliferação nuclear, como atesta a cooperação
internacional no NSG (Grupo de Fornecedores Nucleares na sigla em inglês, é
formado por 48 países –o Brasil, produtor de urânio bruto faz parte – e busca
dificultar o acesso a materiais que poderiam ser usados em programas nucleares
clandestinos), também pode se envergonhar de outra proliferação: a proliferação
de armamentos pesados, como atesta o assassinato dos quase 300 ocupantes do voo
MH-17.
O pano de fundo do ato terrorista
sobre o leste da Ucrânia é conhecido: Putin I da Rússia mandou homens, armas e
dinheiro para rebeldes russos da região de Donetsk, leste da Ucrânia, para que
eles repetissem o que fizeram na Crimeia – dar à anexação manu militari a
impressão de um prosaico movimento autóctone pela liberdade que autoproclama a
independência por ser reprimido violentamente por Kiev. Não deu certo porque
Kiev bancou a briga e mandou suas forças armadas para retomar a região de
Donetsk, a principal zona industrial ucraniana. A luta ficou pesada e Putin I
da Rússia resolveu engrossar o caldo: mandou armamentos pesados e homens
capazes de operá-los, notadamente o sistema de mísseis terra-ar SA-11, mais
conhecidos como Buk. Com eles, seus minions em Donetsk conseguiram derrubar
aeronaves militares ucranianas (um Antonov-26, aeronave militar de fabricação
russa da época soviética, voava a mais de 6 mil metros) e, com isso, reverter a
perda territorial que vinham tendo na guerra civil daquele país. Até que
erraram a mão, provavelmente por não terem recebido todo o equipamento ou todo
o treinamento necessários (de um radar apropriado a um prosaico mapa das rotas
civis, algo fácil de achar com qualquer smartphone) e, confundindo o voo MH-17
com outro Antonov ucraniano, alvejaram o Boeing 777 da Malaysian Airlines, a
azarada companhia aérea asiática que já teve um voo desaparecido presumivelmente
no Oceano Índico (MH-370) neste ano. O Boeing 777 seguia seu caminho a mais de
10 mil metros de altura simplesmente porque não faz parte do manual de
segurança aérea civil a preocupação com guerras civis dez quilômetros abaixo: o
risco de combatentes possuírem armas desse calibre deveria ser zero. Porém,
incidentes como o do voo MH-17 vêm se tornando mais comuns com o tempo. É uma
proliferação insidiosa. Na verdade, a proliferação de armamentos pesados
estatais para grupos paraestatais, terroristas ou não, está a pleno vapor
(pior: ao contrário da proliferação nuclear, que apavora pelo risco de
hecatombe embutido, vem ocorrendo sem alarde) e pode trazer consequências
terríveis como a do voo MH-17.
Para que uma proliferação desse
tipo ocorra é necessário um dos dois fatores: ou um estado falido, como o
Iraque atual, no qual grupos terroristas possam simplesmente se apropriar do
arsenal das forças armadas, ou um estado que repasse, na calada da noite, seu
arsenal para grupos terroristas, como a Rússia de Putin I. O tzar do Século XXI
esticou demais a corda. Evidentemente, nem ele nem ninguém esperava que os
separatistas de Donetsk fossem fazer tamanha lambança, mas o fato é que ele
assumiu o risco ao dar-lhes tamanho poder de fogo. São aventureiros, não soldados.
Sem treinamento, sem disciplina, sem linha de comando direta – em outras
palavras, não precisa ser muito esperto para imaginar que eles são
perfeitamente capazes de encher a cara de vodca e derrubar um avião civil caso
alguém lhes dê os meios necessários para tanto. E um avião civil eles
derrubaram porque Putin I da Rússia deu-lhes os meios necessários para tanto.
Mas, a favor de Putin I, é bom que se diga que ele não inventou a chamada
“guerra por procuração” (proxy war), quando um país não quer ou não pode
aparecer no teatro de guerra e arma combatentes locais – para, invariavelmente,
se arrepender depois. Foi assim na II Guerra Mundial: Stálin deliberadamente
armou e financiou Hitler para que ele começasse uma “guerra imperialista” na
Europa apenas para que o Exército Vermelho depois “libertasse” os territórios
ocupados pelos nazistas – e acabou mordido pelo monstro que engordou com
petróleo e armas. Foi assim após a ocupação soviética do Afeganistão em 1979:
em um ato de irresponsabilidade decorrente da Guerra Fria, os americanos deram
os temíveis mísseis FIM-92 (mais conhecido Stinger, ou “ferroador” em inglês, é
guiado por um sensor de infravermelho para seguir o calor do motor e derrubar
aeronaves a até 3½ quilômetros de altitude, principalmente helicópteros, além
de ser pequeno e leve, podendo ser disparado por apenas um soldado), cuja venda
para forças armadas estrangeiras é cheia de restrições. De fato, os Stingers
derrubaram mais de 250 helicópteros soviéticos e precipitaram a saída do
Exército Vermelho do Afeganistão, mas voltaram para morder os americanos (é
desnecessário dizer que um programa de recompra dos Stingers fornecidos aos
amigos de Bin Laden foi um fracasso): em 2003, um cargueiro Airbus A-300 foi
derrubado por um quando decolava da Bagdá ocupada pelos ianques. Aliás, o ISIS
(grupo terrorista que pretende recriar um califado entre Iraque e Síria) tomou
dois grandes arsenais das forças armadas iraquianas nos quais havia Stingers
fornecidos pelos EUA, fazendo com que os americanos temam que seu uso se
espalhe pelos grupos terroristas do Oriente Médio, como já aconteceu com os 15
mil mísseis AS-7 terra-ar russos (genericamente conhecidos como Manpad, eles
são bastante inferiores aos Stingers americanos, mas, ainda assim, são capazes
de derrubar aeronaves, principalmente civis) que a Líbia de Gaddafi possuía e
que já foram parar nas mãos de grupos como o Hamas – vale lembrar que o Manpad
foi o modelo usado para tentar derrubar um avião civil com israelenses na
decolagem em Mombassa (Quênia) em 2002 e, desde então, todos os aparelhos da
empresa israelense El-Al possuem um sistemas de detecção e cargas de atração de
mísseis (flares) chamado SkyShield. Obviamente, a situação de Israel é ainda
pior, pois há os mísseis que o Irã e a Síria fornecem para os grupos
terroristas clientes deles, Hamas e Hezbollah, que têm como missão “varrer do
mapa” o estado judeu – na atual guerra entre Israel e Hamas, há uma profusão de
mísseis capazes de atingir até Tel-Aviv, algo impossível de ser feito artesanalmente
em empobrecidos porões da Faixa de Gaza.
Esse novo tipo de proliferação
que precisa ser contido antes que a população civil mundial tenha sua
mobilidade determinada por terroristas armados por irresponsáveis como Putin I
da Rússia – cujas primeiras tentativas de explicar o inexplicável foram
tristemente cômicas pela lógica do absurdo. Primeiro, o Kremlin tentou
distanciar os comandados de Putin I dizendo que o governo ucraniano teria
disparado o míssil SA-11 (a Ucrânia possui o sistema) contra o avião que levava
o tzar de volta à Mãe Rússia após a visita ao Brasil – assim, o voo MH-17 teria
sido atingido por acidente pelos ucranianos. A mentira não durou uma hora, pois
a rota de Putin I foi rapidamente identificada e passava muito longe daquela do
Boeing 777 da Malaysian Airlines. Quer dizer, durou sim, mas apenas porque
Dilma Rousseff acreditou e propagou a versão até depois de os russos a terem
descartado; das duas, uma: ou o tipo de aconselhamento que o Itamaraty tem dado
a ela é terrível ou ela simplesmente não checa as informações que recebe antes
de repassar – em qualquer hipótese, um erro imperdoável para uma Presidente da
República. E, segundo, Putin I da Rússia argumentou que, como o Donetsk fica na
Ucrânia (é incrível como o apoio ao separatismo de Donetsk desapareceu do
discurso!) e o míssil foi disparado de Donetsk, a responsabilidade pela
derrubada do voo MH-17 só poderia ser da Ucrânia. Noves fora a Ucrânia não
controlar o território de Donetsk exatamente porque Putin I armou os separatistas,
o argumento é tão bisonho que, sob esse prisma, o 11 de Setembro aconteceu por
culpa dos Estados Unidos (afinal, foi no território americano) e o massacre na
escola em Beslan (2004) aconteceu por culpa dos russos. À parte as patéticas
justificativas dadas pelo tzar, há a preocupação com a crescente proliferação
de armas pesadas nas mãos de grupos terroristas. O atentado contra o voo MH-17
não pode ficar impune. É hora de a sociedade internacional encarar a
proliferação de armas pesadas como um problema que aflige a humanidade como um
todo e que, portanto, exige uma ação coordenada internacional nos moldes do que
é feito no Grupo de Fornecedores Nucleares (NSG). É hora de passarmos a pensar
em considerar o fornecimento de armamento pesado por parte de estados para
grupos paraestatais, terroristas ou não, como um crime contra a humanidade, com
seus perpetradores sendo passíveis de julgamentos diante do Tribunal Penal
Internacional. Somente assim essa outra proliferação poderá ser contida como
foi a proliferação de armas nucleares. Ainda não é tarde demais para fazê-lo.
Ainda.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
Comentários
Postar um comentário