Por Pedro Nascimento Araujo
João Marcello Vieira Lago foi
morto há uma semana, no dia 07-Jul-2014, na Pedra da Gávea, Zona Sul da cidade
do Rio de Janeiro, aos 27 anos de idade. O jovem foi empurrado (uma queda
fatal: mais de 300 metros)
para que seu telefone e sua bicicleta fossem roubados. Seu algoz foi um menino
de rua de 12 anos da Praça do Ó (Barra da Tijuca) a quem Lago havia acolhido no
fim de semana anterior em sua própria casa. Quando a vida nos apresenta um caso
tão ilustrativo, convém não desperdiçar a chance de refletir acerca de três
conceitos: maioridade penal, regeneração de criminosos e condutas inadequadas.
Há apenas uma premissa permeando todo o raciocínio que será desenvolvido aqui:
o menor que empurrou João Marcello Vieira Lago para um abismo de mais de 300 metros na Pedra da
Gávea para roubá-lo sabia que a queda o mataria.
A maioridade penal é um assunto
que sempre vem à baila quando há um crime bárbaro envolvendo um menor de idade.
É um conceito que faz muito sentido: menores são incapazes de entender
completamente as consequências dos seus atos, daí a presunção da
inimputabilidade. A idade, evidentemente, é uma arbitrariedade. Ninguém imagina
que haja uma noite gloriosa a partir da qual uma pessoa durma irresponsável por
seus atos e acorde responsável – assim, 21, 18, 16, 14 ou 12 anos como
maioridades são meras convenções e, portanto, o debate ora em curso (redução da
maioridade penal de 18 para 16 anos) é apenas variação do mesmo tema. Em outras
palavras, apenas mudam a idade da noite gloriosa e meramente tangenciam o cerne
da questão: se quem comete um crime é capaz de entender completamente as
consequências dos seus atos, então é responsável por eles – não importa a
idade. Assim, ao invés de arbitrar uma noite gloriosa a partir da qual a
responsabilidade é magicamente imputada a uma pessoa, é mais correto avaliar se
há entendimento dos atos: a idade não importa. Assim, o melhor é acabar com a
maioridade e substituí-la por uma análise simples: menores de 18 anos (ou 16,
ou 14 etc.) seriam avaliados por equipes multidisciplinares para avaliar se
poderiam ser considerados responsáveis por seus atos, exatamente como adultos –
adultos que não têm consciência das consequências de seus atos não são
criminalmente imputáveis. Por isso, enquanto o debate for acerca da noite
gloriosa, não haverá evolução na impunidade de menores; no máximo, trocaremos
impunidade até 18 anos por impunidade até 16 anos, 14 anos etc.
Acerca de regeneração de
criminosos, há um erro muito comum: imaginar que o sistema prisional tem como
missão regenerar criminosos. Não tem. Naturalmente, a regeneração é desejável
sob qualquer prisma, do humano (afinal, uma pessoa convertida à virtude é
sempre motivo de alegria) ao financeiro (afinal, um preso gera custos – a única
maneira de não ter custos seria a aplicação da pena capital, algo fora de
cogitação em uma sociedade minimamente civilizada: além de transformar o
sistema legal em assassino pago por impostos, na pena capital não pode haver
erros, pois um inocente preso pode ser solto, mas um inocente morto
simplesmente não pode ser ressuscitado). O sistema prisional tem a missão de
proteger a sociedade de indivíduos que ofereçam risco à integridade física ou
causem danos à vida social. Prisão existe para isolar os que estão dentro dos
que estão fora – ou seja, existe para punir os que estão dentro e para proteger
os que estão fora. Se houver recuperação, melhor ainda. Ela é possível para a
maioria das pessoas. Porém, há uma pequena minoria para a qual não há
recuperação: psicopatas. E psicopatia não tem idade. Há menores que são psicopatas,
evidentemente. Uma das definições da psicopatia é a ausência de empatia – em
outras palavras, um psicopata simplesmente não é capaz de entender o sofrimento
alheio que causa quando quer algo, só enxergando e objetivando a realização de
seus desejos. No caso de João Marcello Vieira Lago, o menor foi acolhido na
casa dele, se beneficiou e poderia ser ter beneficiado por muito mais tempo
caso Lago continuasse vivo, mas optou por matar seu benfeitor. É um dos sinais
de possibilidade de psicopatia, algo que uma equipe especializada poderia
diagnosticar – e, nesse caso, o menor em tela seria sério candidato a ser
mantido fora do convívio social (leia-se: preso) pelo resto da vida, pois não
haveria possibilidade de regeneração. Regenerar é desejável, mas nem sempre
possível. João Marcello Vieira Lago não levou em conta a possibilidade de estar
levando um psicopata para sua casa e pagou com sua vida.
O erro de João Marcello Vieira
Lago não foi ser otimista acerca da possibilidade de regeneração ou oferecer
ajuda a quem precisa. Isso nunca será erro. O erro dele foi transformar sua boa
intenção em conduta inadequada. Não se ajuda pessoas desconhecidas levando-as
para dentro de casa. Moradores de rua não são cachorros ou gatos que se recolhe
nas esquinas e se leva para casa para dar banho, tosa e ração. São pessoas,
humanos como qualquer outro, com livre-arbítrio, desejos, frustrações,
princípios, contradições, valores e experiências. A boa (na verdade, louvável)
intenção de ajudar de Lago traduziu-se em uma prática inadequada. Ainda que não
tivesse sido morto por um dos dois menores que levou para sua casa, a conduta
dele já seria inadequada por definição. O fato de levar dois menores
desacompanhados para a casa dele já abre margem para suspeitas de exploração de
menores. Parece bastante óbvio a casa de uma pessoa não ser uma instituição
preparada para cuidar de uma criança em situação de risco social, mas João
Marcello Vieira Lago não foi o primeiro a fazer isso movido por boas intenções
– ao menos até aonde a vista alcança; na verdade, é uma postura inadequada
adotada por muitas pessoas em situação financeira confortável. Traz, decerto,
resultados notáveis, mas é inegável também que condutas inadequadas abrem
espaço para condutas criminosas, tanto da parte do acolhido (o assassinato de
Lago é um exemplo emblemático) quanto da parte do acolhedor (abusos de toda
sorte). Há inúmeras maneiras de ajudar, e toda ajuda sempre será bem-vinda,
desde que sejam razoáveis. Arvorar-se defensor dos menores (Lago postaria mensagens
em redes sociais nas quais se referia aos meninos, um dos quais o mataria, como
“meus filhos”, dando origem a um bizarro caso de falso parricídio) e ter uma
conduta inadequada quanto a eles pode ser muito prejudicial. Assim, uma
combinação aparentemente banal de três fatores provou-se explosiva e custou a
vida de João Marcello Vieira Lago: a lógica da maioridade penal, que permite
que um menino de rua de 12 anos que, por mais que tenha cometido um assassinato
de forma fria, seja considerado incapaz de cometer um assassinato de forma fria
até que tenha completado 18 anos; a lógica da regeneração, que considera a
função primordial da prisão (retirar do convívio social indivíduos daninhos à
sociedade) menor que sua função que secundária ainda que sempre desejável
(regenerar indivíduos que cometeram crimes, trazendo-os novamente para o
convívio social); e a conduta inadequada de pessoas como João Marcello Vieira
Lago, que tratam menores carentes como animais abandonados, expondo a situações
arriscadas tanto a si mesmas quanto aos próprios menores, quando há
instituições preparadas para isso – e se tais instituições não funcionam a
contento, é crucial usar seus prestígios e poderes para reformá-las, não para
substituí-las por ações privadas e fora da lei. João Marcello Vieira Lago foi
vítima covarde e inocente. Mas não foi vítima de violência aleatória.
Pedro Nascimento Araujo é
economista
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