Por
Pedro Nascimento Araujo
A batata é um tubérculo de origem
americana. Assim como outros vegetais nativos do chamado Mundo Novo, como o
milho, o tomate e o cacau, foi levada para a Europa nos imundos porões dos
conquistadores. Lá, se adaptou tão bem que passou a constituir a base alimentar
da população e logo passaria a figurar em pratos típicos de virtualmente todos
os países. Entre 1845 e 1852, a ferrugem da batata (Phytophthora infestans),
uma praga que atingiu 90% das plantações de batatas na Europa e calou mais
fundo na Irlanda, onde causou a morte de mais de 10% de seus habitantes e a
fuga outro tanto de pessoas, em um período que ficou conhecido como Grande Fome
Irlandesa (Gorta Mór). Desde então, ter batatas significa não morrer de fome.
Em 1881, Machado de Assis levou essa percepção ao paroxismo em Memórias
Póstumas de Brás Cubas por meio do Humanitismo de Quincas Borba. A
personagem, defendendo a tese de a morte é útil para a vida, apresenta uma
parábola com batatas. Borbas propõe a existência de um vale no qual há apenas
um campo de batatas e duas tribos famintas de mesma monta, com os tubérculos
sendo suficientes para gerar energia para que uma tribo transponha as montanhas
e encontre alimentos além do vale; assim, se as batatas forem divididas, todos
comerão e morrerão na travessia, tornando a guerra pelas batatas inevitável.
Textualmente, Machado diz por meio de Borbas que “paz, nesse caso, é a
destruição; a guerra é a conservação.” E, sustentando que, por meio da guerra,
metade das pessoas sobrevive ao invés de todas morrerem, conclui seu raciocínio ipsis
literis: “ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.” Ontem, Dilma
Rousseff foi a vencedora no pleito presidencial mais disputado desta VI
República. Dilma Rousseff cumpriu uma promessa ainda na campanha: fez “o diabo”
para vencer. Sem pudores, seu PT atacou Eduardo Campos, Marina Silva e Aécio
Neves em nível pessoal, espalhando a mais pérfida campanha de desconstrução de
reputações da história recente – tão virulenta foi que inviabiliza qualquer
reconciliação em curto prazo, como se efetivamente houvesse em uma batalha
campal na qual não há preocupações em se negociar com os derrotados
simplesmente porque estes estarão mortos ao final das contas. Ocorre que Marina
Silva e Aécio Neves podem estar tudo, menos mortos; na verdade, eles saíram do
embate eleitoral com forças políticas renovadas, enquanto Rousseff encolheu: em
um universo de mais de 140 milhões de eleitores, ela venceu por meros três
milhões de votos – em 2010, quando era apenas a ungida por Lula da Silva para
sua sucessora (“poste”, na linguagem coloquial adotada pelo próprio PT), Dilma
Rousseff venceu com margem quatro vezes maior: 12 milhões de votos. Como diria
Quincas Borba em sua versão de Humanitismo para a Teoria da Evolução: se Dilma
Rousseff, a elas as batatas – e que elas lhe dêem força suficiente para escalar
uma montanha enorme em busca de mais batatas.
Pode parecer estranho, mas Aécio
Neves, o perdedor, foi o grande vencedor: ainda é novo e saiu da contenda maior
do que entrou, com mais de 51 milhões de votos, ao contrário da vencedora, que
teve mais de 54 milhões de votos – contra mais de 55 milhões em 2010. Nesse
ponto, é inevitável recordar um rei grego de nome Pirro, que comandava Épiro,
uma cidade-estado grega. Pirro venceu os romanos em duas batalhas durante as
Guerras Pírricas (de 280 A.C. a 275 A.C.), mas, segundo o historiador romano
Plutarco, Pirro, ao perceber que seus generais conseguiam vencer as batalhas a
um custo tão elevado em termos de soldados, teria comentado que mais uma
vitória como aquelas acabaria com seu reino. As batatas que Dilma Rousseff
receberá a partir de hoje podem se provar uma vitória de Pirro. Há razões de
sobra para isso, mas a principal pode ser resumida assim: Dilma Rousseff não é
novidade; ou seja, ela não terá direito à proverbial “lua-de-mel” com os
eleitores – Aécio Neves, por outro lado, teria alguns meses de trégua pelo
simples fato de ser um arrivista no Palácio do Planalto. Rousseff, não: é mais
do mesmo. Por isso, as notícias ruins continuarão se aprofundando, sem período
de carência. Os dados ruins que órgãos associados ao governo represaram (usando
o cínico argumento de “não interferir no processo eleitoral”) serão liberados
nos próximos dias, assim como as correções de preços controlados – apenas na
energia elétrica a expectativa é de reajustes da ordem de até 30%. O Petrolão
não vai sair das manchetes, por mais que o PT insista em mandar depredar o mensageiro
(a Revista Veja) e ignorar a mensagem – pelo contrário, tendem a surgir mais
denúncias feitas por meio de delação premiada dos operadores do esquema de
corrupção que faz o Mensalão parecer piquenique de internato no Século XIX de
tão inocente – e, em breve, deve virar um explosivo processo no STF com
potencial de gerar mesmo crime de responsabilidade para Dilma Rousseff
(leia-se: abertura de processo de impeachment) caso Alberto Youssef apresente
as alegadas contas secretas do PT que ele utilizou para levar dinheiro roubado
ao exterior – e repatriá-lo para pagar despesas da campanha presidencial de
Dilma Rousseff em 2010. A inflação continua sendo mantida no teto da margem de
tolerância da meta, o real continua artificialmente valorizado para ajudar no
controle da inflação, os gastos públicos estão acima da meta do superávit
fiscal (embora o Itamaraty não esteja enviando diplomatas para encontros por
falta de verba), o risco de apagão aumenta a cada dia que não chove etc.: todas
são batatas quentíssimas que Rousseff ganhou ao vencer a eleição. Batatas de
Pirro.
Dilma Rousseff terá mais quatro
anos para decidir o que fazer com as batatas pírricas que ela conquistou com
competência ontem. A favor dela, o fato de que passou a ser oficialmente um lame
duck (“pato manco”, termo para definir um político sem perspectiva de
permanência no poder) a partir de ontem lhe dá uma liberdade inaudita: agora, o
relógio dela passou a contar o tempo restante até sua saída definitiva do
Palácio do Planalto (1 480 dias, por sinal). Há muitas coisas impopulares que
precisam ser feitas; e, o quanto antes, o tanto melhor. Ela sabe que não será
possível esticar a corda por mais um mandato inteiro. A decisão cabe apenas a
ela: a montanha que ela precisa transpor é alta e, embora ela já tenha
conseguido as batatas que lhe darão energia para suplantá-la, ela não poderá
fazê-lo sem guia e equipamento, coisas que só conseguirá se provar que tem
disposição de fazer as reformas de que o Brasil precisa – não aquelas que
garantirão a permanência do seu grupo no poder, como o Decreto 8243/2014 (que
regulamenta os chamados “conselhos participativos”) ou uma reforma política
para criar o voto em lista com financiamento público. Se ela quiser fazer as
reformas que beneficiarão todos os brasileiros (como as reformas tributária,
trabalhista, da previdência etc.) e que apenas um presidente sem preocupações
em evitar ferir suscetibilidades para garantir sua reeleição pode fazer, ela
conseguirá atrair apoio da própria oposição e pacificar a política nacional,
agindo como Abraham Lincoln após o final da Guerra de Secessão. Evidentemente,
o Brasil não passou por uma guerra civil, mas, se é inegável que a clivagem
entre situação e oposição ficou bem clara após essa eleição, o seguinte fato
também o é: se quiser, Dilma Rousseff pode liderar o Brasil rumo a um novo
ciclo de prosperidade; afinal, ela ganhou as batatas. Que não sejam batatas de
Pirro.
Pedro Nascimento Araujo é
economista
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