Por
Pedro Nascimento Araujo
A fotografia mais comentada na
viagem de Barack Obama à Índia na última semana registrou o momento em que o
presidente americano levava um chiclete à boca. O momento era solene: como
primeiro chefe de estado a testemunhar a comemoração da independência indiana,
Obama estava sentado ao lado do Premier Narendra Modi quando o registro
instantâneo foi feito. O momento prosaico, todavia, não esconde a importância
do fato: o presidente dos Estados Unidos da América assistiu ao Desfile de
Independência ao lado do Premier da Índia, um sinal de prestígio raras vezes
visto para um país emergente – a probabilidade de Obama acompanhar um desfile
de Sete de Setembro é nula.
O momento conspira a favor da
Índia. E isso fica ainda mais evidente quando observarmos as perspectivas dos
demais países do acrônimo BRIC. Pela ordem do termo cunhado por Jim O’Neill em
2001, começaremos pelo Brasil. Desde 2010, o gigante sul-americano não consegue
crescer. Os números de 2014 ainda não saíram, mas não devem ser bons: apesar de
uma recessão ter sido observada no meio do ano, a explosão de gastos do governo
em ano eleitoral deve garantir que o ano termine em estagnação. Para 2015 há
expectativa de nova estagnação ou, no caso cada vez mais provável de
racionamento energético sistemático, recessão. O país enfrenta o desafio de
fazer um rigoroso ajuste fiscal e a inflação deve mais uma vez frequentar o
limite superior da meta. Quanto à Rússia, não há perspectiva de melhora: pária
na comunidade internacional por sua atuação colonialista na Ucrânia, o país de
Putin I está sofrendo sanções comerciais de americanos e de europeus exatamente
quando os preços do petróleo e do gás natural, seu principais geradores de
divisas, batem recordes de baixa. Resultado: rublo derretendo, inflação,
recessão e os títulos do governo oficialmente classificados como lixo (“junk
bonds”), um cenário capaz de fazer o Brasil parecer um paraíso, com duração
estimada de pelo menos mais quatro anos caso os preços dos hidrocarbonetos não
subam muito e logo. Pelo que se vê facilmente, a parte interessante dos BRIC
está na Índia e na China.
Comecemos pela China. Desde que
Deng Xiaoping iniciou suas reformas no final dos anos 1970, os olhos do mundo
se voltaram para o Império do Meio. A China cresceu de forma assustadora desde
então, mas já deu sinais de chegar ao seu limite. Especificamente, a China
(assim como o Brasil) está na fase final de seu bônus demográfico, como é
conhecido o período no qual há menos dependentes (pessoas que não geram renda,
como velhos e crianças) para cada pessoa em idade ativa – isso permite uma
acumulação maior de riqueza por parte das famílias, que custeiam menos
dependentes, e do governo, que custeia menos gastos com saúde, educação e
previdência social. Isso implica dias menos prósperos pela frente, mas há algo
pior, com requintes de crueldade irônica: a China, país que instituiu uma
severa, desumana e brutal política de contenção populacional conhecida como
Política do Filho Único, está com um nível de fertilidade abaixo da taxa de
reposição populacional, em um fenômeno cujo nome lembra mais uma tática de
futebol do que uma bomba demográfica: 4-2-1 (na primeira geração, quatro
pessoas geram dois filhos e na segunda geração os dois filhos geram apenas um
filho: assim, em duas gerações, restaria apenas um de cada quatro chineses).
Isso poderá acabar com o diferencial competitivo da China, medido basicamente
em mão de obra abundante e barata, que não apenas está acabando (há países como
o Vietnam nos quais há mão de obra ainda mais em conta), como vem sendo cada
vez menos importante com a ascensão da produção industrial customizada, que
paulatinamente vem trazendo de volta para o Primeiro Mundo as manufaturas que
se haviam transferido para a China – exatamente aquelas de maior valor agregado
e que são intensivas em tecnologia e em mão de obra qualificada. Porém,
enquanto a Brasil, Rússia e China não têm senão preocupações, a Índia está
começando a viver seu apogeu.
Narendra Modi em nada lembra os
populistas que dominaram a Índia desde sua independência em 1947. Ele é um
homem pró-mercado e quer incluir sua enorme população (com quase 1,3 bilhão de
pessoas, a Índia é o segundo país mais populoso do mundo, mas deve ultrapassar
a China antes do meio do Século XXI) no capitalismo mundial. Modi quer que os
indianos saiam da informalidade. A arma encontrada é um sistema bancário
receptivo a uma população pobre e não acostumada a ser tratada como cliente –
vale lembrar que, embora proscritas pelos britânicos, as castas ainda são parte
integrante do cotidiano na Índia, notadamente fora das grandes cidades. Modi
compara os milhões de indianos fora do sistema bancário a dálits financeiros –
mais conhecidos como “intocáveis”, os dálits são a casta mais baixa da Índia e
corroboram uma ancestral suspeita de racismo: enquanto os dálits são
caracteristicamente pessoas de tez escura (os brâmanes, a casta mais elevada, é
composta de descendentes de arianos, cujas tezes são muito mais claras). Ao
menos no campo financeiro, Modi conseguiu libertar mais de 100 milhões de
intocáveis: esse é o número (na verdade, quase 120 milhões) de indianos que
abriram contas bancárias desde que o governo passou a estimular a prática. O
objetivo de Modi é direto: fazer uma modernização econômica na Índia nos moldes
daquela feita com sucesso em países como China e lanças as bases de um
crescimento sustentável de longo prazo. Longo mesmo: o objetivo não declarado
da Índia é suplantar a China como a segunda maior economia do mundo ainda no
Século XXI. As reformas liberalizantes de Modi devem reduzir o tamanho do
governo – e, com isso, reduzir espaços para a prática de corrupção – por meio
de desburocratizações e devem flexibilizar o modelo pré-thatcheriano de
capitalismo que ainda grassa no país por uma típica economia de mercado
liberal. A favor da Índia também está o fator que ora leva a Rússia à lona: a
queda do preço do petróleo (a Índia importa mais de 80% do óleo que consome)
deve liberar divisas para a modernização do país. Tudo somado (China perdendo
fôlego, petróleo em queda e reformas liberais), a Índia deve atrair vultosos
investimentos e crescer mais do que a China já a partir deste ano. Modi sabe
que o Ocidente nutre sérias desconfianças com relação a Beijing: o Partido
Comunista Chinês patrocina atividades de espionagem industrial, faz bullying para
com os vizinhos mais fracos, responde a disputas territoriais com corrida
armamentista, faz diplomacia financeira ativa junto ao Terceiro Mundo, banca a
ditadura hereditária da Coreia do Norte etc.: na China, todos os clichês de
potência ascendente com potencial desestabilizador estão perigosamente
próximos; na Índia, não. Modi sabe bem disso, assim como Obama. Isso explica a
visita que ficou marcada pelo chiclete presidencial: mais do que uma
demonstração de prestígio, Obama foi reafirmar a aliança preferencial de
Washington com Nova Délhi, um adversário antigo (há disputas fronteiriças em
aberto) e poderoso (é nuclearmente armado) de Beijing.Mutatis mutandis, na
sempre dinâmica geopolítica asiática, a Índia quer ser a nova China – e conta
com o apoio dos Estados Unidos para tanto.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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