Por
Pedro Nascimento Araujo
Os detalhes do atentado ao
semanário Charlie Hebdo já são mais do que conhecidos por conta da ampla
cobertura que a imprensa internacional dedicou ao tema. A infâmia dos irmãos
Chérif e Said Kouachi é indescritível: assassinato a sangue frio de jornalistas.
Muitas linhas ainda serão gastas tentando entender o inexplicável de
07-Jan-2015 em Paris, quando 12 pessoas foram mortas, das quais três eram
policiais militares. Para além dos jornalistas, convertidos instantaneamente e
justamente em mártires da liberdade que foram mortos por arautos da barbárie, e
cujos rostos estampam cartazes no mundo inteiro, há uma vítima anônima cuja
mera existência serve para implodir qualquer tentativa de relativizar o que os
Irmãos Kouachi fizeram: Ahmed Merabet, um sargento de 40 anos que foi abatido à
queima-roupa na rua em frente à sede do Charlie Hebdo. Merabet era muçulmano.
O debate acerca da natureza
violenta do Islã é falso. O Islã pode ser violento ou pacífico, pode ser
tolerante ou sectário, pode ser moderno ou retrógrado, assim como o Judaísmo, o
Cristianismo, o Hinduísmo, o Budismo etc. Porque tudo depende da interpretação
escolhida ad hoc para a consecução dos objetivos em nome da fé, todas
as religiões – melhor, todas as ideologias – têm telhados de vidro. Assim, se é
em nome do Islã que grupos como o Boko Haram, o Hamas e outros dizem cometer
barbaridades inomináveis, não é por causa do Islã per se, mas sim por
causa do uso que eles fazem do Islã – como outros fizeram e fazem de outras
ideologias. Afinal, foi em nome do Judaísmo que o Etzel, uma milícia comandada
por Menachin Begen (depois Premier de Israel) e apoiada por Ben Gurion (patriarca
do Estado de Israel), comandou atos terroristas que terminaram por expulsar os
britânicos da Palestina em 1948, fator que precipitou a independência de Israel
– o atentado a bomba no Hotel Rei David, que matou 91 pessoas inocentes,
inclusive judeus, foi apenas o mais famoso deles. E foi em nome do Cristianismo
que as Cruzadas foram feitas – e a IV Cruzada matou apenas cristãos, levando ao
endurecimento do Grande Cisma que hodiernamente o Papa Francisco tenta superar:
em 1204 (há mais de oito séculos, portanto), os Cruzados pilharam e saquearam
Constantinopla, capital da Igreja do Oriente desde 1054, com requintes de fazer
inveja a Al-Qaeda, como estuprar meninas e defecar nas igrejas, além de matar
todos os que se recusassem a abandonar o Patriarca e seguir o Papa, uma
estupidez repetida hodiernamente pelo Isis em nome do Islã. Em nome do
Hinduísmo houve perseguições a muçulmanos, como expulsões sistemáticas deles do
território que viria a compor a Índia com o destaque ficando por conta do
assassinato de Mohandas Gandhi por um radical hindu devido a ele ser contrário
à secessão do Paquistão, majoritariamente muçulmano, do território da Índia
conforme administrado por Londres. Para encerrar os exemplos nos tempos atuais,
é em nome do Budismo que há recorrentes assassinatos e expulsões de muçulmanos
em Mianmar. Aliás, a própria crença na ausência de religião, o Ateísmo, também
é perigosa: sua implantação, notadamente por meio do Comunismo, levou a
perseguições e mortes que somaram 100 milhões de pessoas no Século XX.
Portanto, não há como se culpar a religião (e mesmo a ausência de religião)
quando é o uso seletivo dela que serve de justificativa para casos como os
citados, dos quais o atentado contra o Charlie Hebdo é apenas o mais recente
capítulo.
Como os exemplos acima
demonstram, não há lógica no terrorismo sectário. Por isso, Ahmed Merabet, um
policial militar encarregado de patrulhar os arredores da sede do Charlie
Herbdo, entrou na lista macabra dos mortos de Chérif e Said Kouachi. Ao ouvir
os disparos (os terroristas possuíam fuzis AK-47, cujas entradas na França
ainda precisam ser explicadas), o sargento de origem argelina (a Argélia foi
colônia francesa até a década de 1960) Merabet se dirigiu ao local. Lá
chegando, foi atingido pelos terroristas em fuga. Ferido, retorcendo-se de dor
na calçada, Merabet involuntariamente protagonizou um dos vídeos mais chocantes
de terrorismo: com a mão espalmada, como que pedindo clemência, Merabet jazia
no passeio quando os extremistas se aproximaram dele. Ele disse palavras (que o
vídeo não captou) aos assassinos por instantes durante a aproximação. Sem
reduzir o passo, eles se aproximaram e o executaram com um tiro de fuzil na
cabeça à queima-roupa. Depois, prosseguiram com a fuga. Naquela calçada ficaria
o corpo de Ahmed Merabet, cidadão francês de origem argelina, sargento da
polícia militar, 40 anos, arrimo de família e muçulmano praticante, prova
incontestável de que terroristas como Irmãos Kouachi não pretendem propagar a
sua fé por meio do terror (como se isso fosse possível), mas, simplesmente,
querem obrigar todos a ser como eles – algo que é simplesmente inaceitável.
Ahmed Merabet é uma metáfora de o
quanto o terrorismo está perto de nós, por mais que nós prefiramos fingir que
não: Ahmed Merabet era muçulmano, religião em nome da qual os Irmãos Kouachi
perpetraram suas perfídias e Ahmed Merabet não fez coisa que servisse de
pretexto para o terrorismo – especificamente, não fez charges sobre o profeta
Maomé – e possivelmente não sabia nem da existência do Charlie Hebdo nem das
sentenças de morte dadas aos seus membros por meio de uma fatwa infame
de algum imã covarde do outro lado do mundo, mas, mesmo assim, foi morto. Assim
como as 145 crianças e professores que queriam apenas estudar no Paquistão
(Taliban, 2014), as quase 200 meninas que foram sequestradas para serem usadas
como escravas sexuais pelos terroristas na Nigéria (Boko Haram, 2014) ou mesmo
as quase três mil pessoas que estavam simplesmente trabalhando em Nova York
(Al-Qaeda, 2001) e inúmeros outros mártires involuntários que o Islã radical
deixa em seu caminho fadado ao fracasso – é inexoravelmente condenada ao
fracasso qualquer tentativa de imposição sectária manu militari: pode
demorar muito, séculos até, mas não há resultado exceto o fragoroso fracasso,
conforme a história nos ensina reiteradamente, desde a sangrenta mas fracassada
perseguição aos cristãos nos primeiros séculos depois de Cristo até a genocida
mas fracassada “reeducação” do Khmer Vermelho no Camboja que matou ⅓ da
população do país, passando pela Santa Inquisição na Península Ibérica e pelo
Holodomor na Ucrânia. Simplesmente, não há outro resultado possível senão o
fracasso. E, ainda assim, eles insistem. É pura estupidez, mas é uma estupidez
que mata aqueles que literalmente nada têm a ver com ela.
O terrorismo precisa ser
combatido sem tréguas. A Europa está aprendendo esta lição da maneira mais
dolorosa possível. Após os atentados no transporte público em Madri e em
Londres na década passada, a Espanha e o Reino Unido intensificaram suas ações
e se aproximaram mais dos Estados Unidos e de Israel na luta mundial contra o
terrorismo. Na França, duas visões desajustadas pautavam o debate e levaram à
inanição do país nessa seara por conta de uma combinação tanto não intencional
quanto bizarra entre a extrema esquerda (que vê nos terroristas islâmicos uma
espécie de resistência democrática contra o imperialismo americano) e a extrema
direita (que vê nos terroristas islâmicos uma síntese de todos os
estrangeiros). É uma aliança perversa (e, repita-se, não intencional) que
embotou a visão dos líderes franceses por tempo demais, e que ainda embota a
visão dos líderes alemães, para ficar nos países europeus mais relevantes
politicamente e militarmente que ainda não participam com suas capacidades da
luta contra o terrorismo. Com o ocorrido em Paris na última semana, não há mais
como os franceses virarem as costas para esse problema, e esperamos que os
alemães não estejam apenas esperando que algo semelhante ocorra em seu
território para também deixar a tibieza de lado. A presença de tantos líderes
mundiais na passeata em Paris no último final de semana é um bom sinal de que a
civilização pode vencer as trevas – o que torna apenas mais embaraçosa a
ausência de representantes de Brasília ao evento. Na marcha, extrema esquerda e
extrema direita não participaram. Melhor assim: Ahmed Merabet não é nem herói
(extrema esquerda) nem vilão (extrema direita) por ser muçulmano. É apenas mais
uma vítima da violência em nome do Islã que pende sobre a cabeça de todos nós.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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