Por
Pedro Nascimento Araujo
O Brasil tem como novo Chanceler
para o segundo mandato de Dilma Rousseff um diplomata de carreira: Mauro Luiz
Iecker Vieira, que era embaixador em Washington desde 2010. No Itamaraty, ser
embaixador em locais como Washington ou Buenos Aires (aonde ele deu expediente
antes durante sete anos) é um sinal inequívoco de competência e de prestígio.
Mas seus antecessores (Antônio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo) também
tinham carreiras brilhantes e irretocáveis. E, todavia, não puderam exercer
chancelarias brilhantes. Na verdade, suas competências mal puderam ser
testadas: passaram seus mandatos convivendo com diretrizes contraditórias,
quando não simplesmente sem diretrizes – e, pior, sem autonomia para exercer a
continuidade da política externa brasileira que sempre foi característica do
Itamaraty. Aliás, seus antecessores operaram um pequeno milagre ao conduzir os
negócios exteriores do Brasil não apenas sem orientação e sem autonomia, mas
também sem recursos: em 2014, o Itamaraty simplesmente não teve recursos para
pagar aluguéis de algumas embaixadas no exterior e há gritante falta de
pessoal. E pode piorar, pois o prestígio do Brasil nas relações internacionais
anda cada vez mais baixo.
Em um plano mais amplo, o desafio
de Mauro Vieira pode ser resumido como a retomada do prestígio internacional
brasileiro, sensivelmente diminuído durante o primeiro mandato de Dilma
Rousseff. De fato, desde a redemocratização o Brasil vinha trabalhando com uma
agenda de inserção internacional baseada na inserção colaborativa nos grandes
regimes mundiais: direitos humanos, promoção do desenvolvimento, combate ao
crime organizado e ao terrorismo internacionais etc. Até Dilma Rousseff
ascender ao Planalto, todos (absolutamente todos) os governos evoluíram nessas
agendas, como demonstra a breve lista de exemplos a seguir: com José Sarney, o
Brasil aderiu à Convenção Contra a Tortura e aderiu ao Pacto de San José; com
Collor de Mello, o Brasil sediou a Convenção das Nações Unidas Sobre
Meio-Ambiente e Diversidade (Rio-92) e encerrou seu programa nuclear militar
clandestino; com Itamar Franco, o Brasil apoiou e assinou a Resolução 49/60
Assembleia Geral das Nações Unidas, que condena inequivocamente todos os atos,
métodos e práticas de terrorismo; com Fernando Henrique Cardoso, o Brasil
ratificou a adesão ao Tratado de Não-Proliferação e assinou a Convenção de
Palermo sobre o Crime Internacional; por fim, com Lula da Silva, o Brasil
passou a ser parte do Grupo de Fornecedores Nucleares, organização que busca o
controle do comércio de materiais sensíveis para programas evitar que sirvam a
programas nucleares militares secretos. Com Dilma Rousseff, não houve um avanço
digno de nota nos regimes internacionais – se não configura um retrocesso,
configura uma estagnação, e quem está parado não avança. Então, Mauro Vieira
tem a missão de retomar o dinamismo internacional brasileiro. Mas a missão dele
é mais difícil do que parece.
Embora não seja uma figura consensual
nos corredores do Itamaraty por conta de antipatias e paixões que desperta com
a mesma intensidade à primeira vista, a capacidade de Mauro Vieira para
comandar a chancelaria nacional é inquestionável mesmo para seus detratores. Em
outras palavras, Vieira tem plenas condições de mobilizar o corpo diplomático
brasileiro para a consecução dos seus objetivos. O problema reside em saber
quais são esses objetivos. Seu discurso de posse pode dar algumas pistas. Fora
o uso do hispanismo “presidenta” (que, assim como atribui-la “força moral e
liderança” por conta da sua apertadíssima vitória eleitoral, pode ser creditado
a uma gentileza para com sua nova chefe), uma no mínimo desnecessária e
constrangedora citação ao ex-presidente Lula da Silva e a perturbadora citação
nominal a Samuel Pinheiro Guimarães, exemplo-mor de apropriação da diplomacia
nacional por um grupo político como um exemplo de defesa do Itamaraty como
instrumento de política de estado, seu discurso indica poucas coisas. Citações
elogiosas, menções a títulos, elogios à classe: além do inconfundível cheiro de
punhos de renda, nada mais do que platitudes. Nada de mais, não fosse a
diplomacia do Brasil precisar de muito mais. Sinais melhores poderiam ter vindo
do discurso de posse do segundo mandato de Dilma Rousseff, mas de lá também não
saiu nada. Na verdade, Rousseff declarou que pretende transformar a política
externa brasileira em uma continuação da política interna brasileira, algo de
fazer retorcerem-se nos túmulos homens como José Bonifácio (primeiro Chanceler
do Brasil, esteve à frente dos negócios externos durante a Guerra de
Independência), Visconde do Uruguay (Chanceler durante os conturbados anos da
Regência, durante a fase final da secessão do Rio Grande do Sul e durante a
Guerra do Prata) e Barão do Rio Branco (Chanceler de quatro governos
consecutivos, surgiu como expoente da política externa durante os conturbados
anos iniciais da República), Chanceleres que conduziram políticas externas
fantásticas diante do absoluto caos que era a política interna em seus
períodos.
De fato, embora as políticas
interna e externa não sejam absolutamente distintas, elas são independentes:
enquanto aquela é política de governo, esta é política de estado, o que implica
dizer que não deve mudar quando um governo muda. Tecnicamente, o conceito por
trás disso é o de continuidade internacional do estado. Por isso que um novo
governo não pode se recusar a cumprir compromissos internacionais assumidos por
governos anteriores, por mais que não concorde em tese com tais compromissos.
Um exemplo prático: por mais antissemita que fosse, a Irmandade Muçulmana,
quando tomou o poder no Egito há poucos anos, não pôde negar o reconhecimento
de Israel que Sadat fez nos anos 1970 – se o fizesse, incorreria em responsabilidade
internacional e o Egito estaria sujeito a sanções; no máximo, a Irmandade
Muçulmana poderia não manter relações diplomáticas com o estado judeu, mas não
poderia deixar de tratá-lo como estado jamais. Por isso, soa preocupante que
Mauro Vieira tenha dito textualmente em seu discurso de posse que “a
inter-relação entre os assuntos internos e os internacionais é cada vez maior”.
Se ele acredita de fato nisso ou não é pouco relevante. O relevante é que Dilma
Rousseff acredita nisso e faz disso a base de sua política externa – e, com
isso, vilipendia o legado de homens como José Bonifácio de Andrada e Silva,
Visconde do Uruguay e Barão do Rio Branco, Chanceleres para quem a defesa do
interesse nacional na arena internacional era tão independente da política
interna que conseguiram feitos memoráveis mesmo diante das maiores dificuldades
na política interna.
Assim, é fonte de apreensão para
todos os que lamentam o atual estado de penúria e de subserviência a que foi
relegado o Itamaraty durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff ouvir Mauro
Vieira dizer em seu discurso de posse que pretende fazer com que a política
externa brasileira seja “um instrumento de apoio e impulso” às políticas
internas de Dilma Rousseff (algo que fica ainda mais aterrador quando ele diz
que isso deve “começar pela política macroeconômica”, o fracasso-síntese da
primeira presidência de Dilma Rousseff: há mais de um século, nenhum mandatário
nacional teve desempenho tão ruim em seu mandato quanto ela). Além disso, falou
apenas amenidades (como dizer que não há “dicotomias nem contradições de
interesses” nas relações do Brasil com o mundo desenvolvido e o mundo em
desenvolvimento e coisas do tipo) e uma declaração que soou mais como mea
culpa: o compromisso de enfrentar as “questões centrais de seleção, formação,
progressão funcional, remuneração, circulação entre postos e aperfeiçoamento
profissional ao longo da carreira”, uma promessa de difícil cumprimento, uma
vez que a presidente que mais desprestigiou o Itamaraty nos últimos tempos
acaba de iniciar um novo mandato – e não há porque imaginar que ela mudaria de
atitude exatamente após declarar em seu discurso de posse que pretende
subordinar a política externa aos objetivos da política interna. O Itamaraty é
maior do que Dilma Rousseff, sem dúvidas, e merecia voltar a ser tratado da
maneira correta após quatro anos a pão e água. Mas não o será: ao invés disso,
a situação deteriorou-se ainda mais com a anunciada subordinação da política de
estado à política de governo. Com isso, Dilma Rousseff enfraquece
paulatinamente um dos dois últimos polos de atuação independente no serviço
público brasileiro (o outro polo é o das Forças Armadas), pouco importando se o
faz conscientemente ou inconscientemente. Espera-se do corpo diplomático brasileiro
uma resistência digna de seus melhores dias, capaz de fazer voltar a descansar
em paz nos seus túmulos Andrada, Uruguay e Rio Branco: a independência política
externa brasileira não pode ser colocada em cheque por nenhum presidente. Muito
menos por uma que despreza abertamente a diplomacia.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
Comentários
Postar um comentário