Por Pedro
Nascimento Araujo
O Canadá é usualmente percebido
pelo mundo como uma espécie de país-modelo. De fato, os dados sobre o gigante
polar são impressionantes: tendo como chefe de estado a Rainha Elizabeth II
(membro da Commonwealth of Nations, o Canadá é independente desde
1931), o país é uma monarquia constitucional e a democracia nunca foi colocada
em xeque por lá. Com acesso direto a três oceanos (Atlântico, Ártico e
Pacífico) e fronteira com apenas um país (Estados Unidos), o virtualmente insular
Canadá possui o quarto maior território do mundo, embora 80% de sua população
de quase 40 milhões de pessoas (quase a mesma da Argentina) resida na região de
temperatura mais amena, junto à fronteira com os Estados Unidos – amena para os
padrões canadenses: em Toronto (maior cidade do Canadá, com quase seis milhões
de pessoas na região metropolitana), há registro de neve em metade do ano. Uma
quintessência do que se convencionou chamar Primeiro Mundo, o Canadá, em suma,
possui todos os indicadores apontam para um país para lá de desenvolvido: o
país tem o oitavo maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do mundo, conta
com serviços públicos de saúde que são referências mundiais, possui uma
segurança pública de padrões suíços e apresenta analfabetismo virtualmente
inexistente. Porém, neste ponto, há manchas no passado, notadamente no que diz
respeito à brutal aculturação de nativos realizada por meio de internatos
religiosos subsidiados pelo estado por mais de um século, de 1876 a 1996. Um
capítulo sombrio na história do país, que demandava um urgente processo de Vergangenheitsbewältigung (termo
que significa algo como “fazer as pazes com os erros do passado”, na ausência
da precisão que se consegue apenas no idioma germânico). A iluminação foi feita
por meio de uma exemplar Comissão da Verdade e Reconciliação do Canadá que
encerrou seus seis anos de trabalhos no terceiro dia deste mês. Conhecer seus
resultados é mister para qualquer ser humano, mormente para os brasileiros, que
seguem sem entender porque o Brasil poderia não fez algo de tamanha envergadura
com sua própria Comissão Nacional da Verdade, que deliberadamente optou por não
investigar um dos lados.
Até o fechamento da Comissão da
Verdade e Reconciliação do Canadá, era usual compararmos a Comissão Nacional da
Verdade apenas com a fabulosa Comissão da Verdade e Reconciliação da África do
Sul que, sob a batuta do incomparável Nelson Mandela, lançou as bases para uma
democracia racial inclusiva, muito diferente do revanchismo (perseguição que incluiu
de estupros a confiscos de propriedades) lançado por Robert Mugabe quando o
regime de supremacia branca ruiu na Rodésia após uma guerra civil (1964-1979)
que levou à criação do Zimbabwe em 1980. Na África do Sul, a estratégia de
sucesso foi colocar ambos os lados frente a frente para que entendessem
motivos, medos, anseios, preconceitos e preocupações de parte a parte, com o
intuito de humanizar os lados opostos no Apartheid – desumanizar o oponente é
uma das primeiras coisas que instiladores de ódios buscam fazer. Em suma,
entender que, por trás do “branco opressor” e do “negro terrorista” havia
pessoas de carne o osso, com tudo o que é humano nelas, inclusive imperfeições.
Não se buscou uma caça às bruxas como em Salem, mas uma reconciliação para que
um visse nos olhos do outro o mal que lhe havia causado e cuja extensão não
enxergava após anos de propaganda de desumanização. Os crimes não foram
analisado pela Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul: a intenção
não era fazer um Tribunal de Nuremberg sul-africano, mas purgar e limpar
feridas do passado para que aqueles que não tinham sangues nas mãos mas tinham
ódios nos corações pudessem se ver como irmãos na humanidade. O objetivo foi
alcançado. Assim como a Alemanha depois da queda do Nazismo, própria origem do
termoVergangenheitsbewältigung, a África do Sul é um país maduro, no qual há
museus sobre o Apartheid e sua história é ensinada para que nunca mais se
repita, mas não há ódios ressentidos e a vida segue para que nunca regresse.
No Canadá, não foi diferente. O
país viveu o que foi descrito pela própria Comissão da Verdade e Reconciliação
como um “genocídio cultural” (o termo foi proferido pelo juiz Murray Sinclair
(o segundo nativo a compor a Suprema Corte do Canadá na história) em uma
audiência: os detalhes de todo o processo da Comissão da Verdade e
Reconciliação do Canadá estão em http://www.trc.ca – o site vale uma visita minuciosa):
durante mais de um século, crianças indígenas eram retiradas de suas terras e,
por extensão, do convívio com suas famílias, para ser educadas por escolas
religiosas custeadas pelo estado. Há relatos incrivelmente dolorosos de
crianças forçadas a aculturar-se (por exemplo, o uso de línguas nativas era punido
fisicamente) e que foram entregadas para adoção, perdendo para sempre os
vínculos com seus ancestrais. Há registros de abusos físicos (mesmo em uma
época na qual o castigo corporal era considerado parte do processo educativo),
psicológicos (uma ex-interna conta que freiras se dirigiam aos alunos usando o
vocativo “cães”) e sexuais. Ao menos seis mil morreram nas instituições de
ensino, mas a própria Comissão da Verdade e Reconciliação sabe que o número é
bem maior – de 1920 em diante, o governo simplesmente parou de registrar as
mortes de estudantes nativos em escolas do país. Além disso, há um dado
perturbador para o tão decantado sistema educacional canadense: aparentemente,
não se ensinava coisa alguma aos indígenas nessas escolas. De acordo com relatos
(também disponíveis no site), durante muitos anos os alunos nativos tinham
apenas dois objetivos: aprender o “Pai Nosso” e o hino nacional do Canadá. Só.
Não eram sequer alfabetizados, quanto mais educados. Saíam das escolas para
subempregos, perpetuando a pobreza e a indigência dos indígenas, o que gerava
mais alunos para as escolas religiosas subvencionadas pelo estado, em um
perverso moto-contínuo de perpetuação da pobreza – e para quem foi tragado por
essa engrenagem de moer vidas e futuros, pouca diferença faz ter sido essa a
intenção ou não. A forma de reduzir as diferenças entre os índios e a média da
sociedade canadense é hoje parte da agenda política. O premier conservador
Stephen Harper compareceu ao encerramento da Comissão da Verdade e Reconciliação
do Canadá no dia 03-Jun-2015, quando expressou condolências do governo pelos
abusos cometidos nos internatos. Ele evita o termo “genocídio cultural” que o
juiz Sinclair usou, mas sabe que não poderá tergiversar sobre o assunto, que
ganhou dimensão nacional. Quando faz umVergangenheitsbewältigung completo,
uma Comissão da Verdade e Reconciliação mostra todo o seu poder: aproxima as
pessoas, humanizando e reconciliando, reduzindo as clivagens dentro da
sociedade e preparando um futuro de paz aonde todos conhecerão o passado para
que ele não mais se repita. Uma Comissão da Verdade e Reconciliação digna deste
nome faz tudo isso sem instilar ódios, ressentimento, revanchismo, perpetuação
de diferenças, como na África do Sul e no Canadá. Saber que nós desperdiçamos a
nossa Comissão Nacional da Verdade fica mais incompreensível a cada vez que
podemos perceber o que outros países derivaram das suas dolorosas experiências.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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