Por
Pedro Nascimento Araujo
O aquecimento global é um fato
dos mais incontestáveis. Com a temperatura média da Terra batendo recordes a
cada década, não há como negar sua existência. Todavia, a exata dimensão da
ação antrópica nesse processo ainda é desconhecida: o planeta passou por fases
quentes e geladas antes que o ser humano existisse e continuará a passar por
fases quentes e geladas depois que o ser humano estiver extinto. Assim, a ação
humana pode, no máximo, estar acelerando um processo cíclico e natural: não o
criou nem poderá detê-lo. Não obstante isso, a simples possibilidade de
estarmos acelerando o aquecimento global já nos leva ao imperativo de
desenvolver ações para reduzir os efeitos da ação humana sobre o aquecimento
global – se não podemos detê-lo, ao menos podemos não acelerá-lo. E, para não
acelerá-lo, precisaremos criar tecnologias para geração e uso de energia
eficientes e sem carbono. Uma tarefa e tanto, que políticos enxergam como
daninha à geração de empregos em curto prazo, o que efetivamente é – assim como
foram a substituição de carroças por automóveis no passado, quando levas e
levas de pessoas repentinamente viram-se sem emprego, ao passo que levas e
levas de pessoas repentinamente viram-se diante de novos empregos. Em outras
palavras: aonde políticos veem um problema, empreendedores veem uma
oportunidade; afinal, há espaço para lucros extraordinários só proporcionados
por inovações. Demorou muito, mas, finalmente, o governo da mais inovadora
sociedade do mundo vai usar seu poder regulatório para direcionar o
desenvolvimento tecnológico americano para a geração de energia sem carbono. Já
não era sem tempo: nesta semana, Barack Obama anunciará o CPP (Clear Power Plan
no original em inglês, ou Plano de Energia Limpa) e, a partir dele, os Estados
Unidos da América liderarão a revolução energética sem carbono do Século XXI do
mesmo modo que lideraram a revolução energética com carbono do Século XX.
Obama, que tanto procurava por um legado para os livros de história, finalmente
conseguiu um. Além de ser um símbolo ambulante, Barack Obama passará a ter uma
obra assinada.
A mudança gestada em Washington
tem a marca de Barack Obama. Ele, em si, era, até agora, o seu maior legado.
Basta lembrar que, quando ele nasceu (1961), os negros não tinham direitos
civis em muitos estados americanos: poucos anos antes (1955), teve lugar a
icônica desobediência civil de Rosa Parks – ela se recusou a levantar-se de seu
assento na parte reservada para não brancos de um ônibus no Alabama para que um
branco pudesse sentar-se porque não havia assentos disponíveis no setor dos
brancos. Se alguém vaticinasse no dia do nascimento daquele menino
negro que ele um dia seria POTUS (Presidente dos Estados Unidos, na sigla
original em inglês que designa os supremos mandatários americanos), arriscaria
internação imediata em uma casa de lunáticos. E, menos de 50 anos depois de
nascer, lá estava Obama dando expediente no Salão Oval da Casa Branca. É
difícil mesmo imprimir uma marca maior na vida do que essa marca simbólica que
Barack Obama carrega simplesmente por ser Barack Obama. E, todavia, Barack
Obama conseguiu. Não por meio de sua claudicante política externa, que comemora
como grande feito um pífio acordo nuclear com o Irã que não alterou em um iota
o status quo mundial, tampouco por meio de sua desastrada política econômica,
que não apenas não reduziu os déficits herdados da administração anterior, como
também aumentou sobremaneira a dívida do governo americano, mas por sua
política ambiental – a qual, diga-se, até então não tinha coisa alguma digna de
nota de rodapé na grande história americana. Porém, ao anunciar o CPP, o homem
Barack Obama finalmente superou o símbolo Barack Obama.
Os detalhes ainda serão
apresentados e alguns itens certamente serão negociados, mas, em linhas gerais,
o Clear Power Plan de Barack Obama trata de estimular a geração de energia por
fontes sem emissão de carbono – e, eis a cereja do bolo, para o CPP
simplesmente trocar carvão ou petróleo por gás natural, apesar de reduzir
sobremaneira a geração de carbono, não é a solução de longo prazo: a solução de
longo prazo é avançar em energias solar, eólica, geotérmica, maremotriz etc.
Apenas essa posição de não ser condescendente com o gás natural indica a
importância do projeto feito pela EPA (Agência de Proteção Ambiental, ou
Environmental Protection Agency, a mesma que isolou Springfield no
longa-metragem de Os Simpsons) e patrocinado por Obama. O CPP prevê cortar em
um terço as emissões de carbono dos EUA até 2030, tendo como base 2005. A bem
da verdade, os americanos, conquanto não participando do Protocolo de Kyoto, já
cortaram em dez anos 13% das emissões em relação a 2005. Todavia, as
iniciativas haviam sido individuais de estados da federação, com destaque para
a Califórnia. Agora, assim como ocorreu em outros momentos decisivos, como nos
direitos civis, as ações pontuais virarão ações federais. Isso prova que
estamos diante de uma inflexão – ou, como Barack Obama prefere, diante de um
legado.
Barack Obama está convencido de
que o mundo buscará fontes de energia sem carbono cada vez mais. E vê nisso uma
oportunidade para a inventividade americana. O país com as mais avançadas
pesquisas e com as mais inovadoras empresas do mundo é o país que pode
desenvolver e exportar tecnologia para um mundo que quer, cada vez mais, gerar
energia sem usar carbono. Parece óbvio direcionar a tecnologia americana para
criar o que será demandado. Parece óbvio e é óbvio: os ganhos futuros
decorrentes da liderança mundial em geração de energia sem carbono mais do que
compensarão as perdas presentes de tal mudança. Porém, as perdas presentes
sempre são dolorosas. Pessoas perderão empregos, cidades perderão receita. Não
é fácil mudar. Haverá resistências aos borbotões. Como houve quando a
“carruagem sem cavalos” começou sua irresistível ascensão. Ou quando
formulários online substituíram formulários enviados pelo correio e custaram os
empregos de digitadores. Isso tudo é Schumpeter na veia: trata-se da criação
destrutiva, quando novas tecnologias aumentam a produtividade da economia como
um todo, mas custam os empregos daqueles que estavam presos à tecnologia
antiga. Fazer isso requer a coragem de um estadista: estar disposto a sofrer
críticas mordazes no curto prazo em troca de um reconhecimento que talvez nunca
chegue em vida, mas que, um dia, virá – simplesmente por saber que fez o que
deveria ser feito, independentemente de aplausos fugazes.
Infelizmente, falar em absolvição
por parte da história tornou-se farsesco desde que Fidel Castro, o ditador
cinquentenário de Cuba, arvorou-se tal possibilidade. Para Castro, a história
não será benéfica, quanto mais se descobrem coisas sobre sua vida. Para Barack
Obama, todavia, a história será benevolente. Daqui a cinquenta anos, Barack
Obama será lembrado tanto por ter sido um símbolo (o primeiro negro a ser
POTUS) quanto por ter direcionado os Estados Unidos da América, país nascido
sem nome (forma de estado e localização geográfica decididamente não são um
nome) e formado com base na rígida ética protestante de trabalho que Max Webber
tão bem descreveu, para a liderança tecnológica do mundo sem carbono –
exatamente o mundo que está substituindo o mundo baseado em carbono que os EUA
não apenas lideraram, como também moldaram à sua imagem e semelhança. Que um
país possa se reinventar é fabuloso, mas é mais fabuloso ver um reinventa-se e
para tornar-se maior do que o símbolo que ele já é. Testemunhar isso é um
privilégio.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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