E
se fossem bandidos?
São raras as ocasiões nas quais
podemos dizer com todas as letras que não há justificativas. Felizmente, são
muito raras mesmo. Estou me referindo ao caso ocorrido na cidade do Rio de
Janeiro, mais precisamente no bairro de Costa Barros. Lá, cinco policiais
militares dispararam mais de 50 tiros contra cinco homens que estavam em um
velho Fiat Palio branco com vidros escuros. Previsivelmente, os homens
morreram. Não há justificativa para a morte de inocentes. Seus nomes são mera
estatística agora, mas o ponto principal não é a matança de inocentes – que,
tristemente, ocorre com inquietante frequência, a ponto de virar parte do
anedotário carioca: policiais já confundiram skate, furadeira e macaco
hidráulico com armas e mataram quem deu o azar de estar segurando a ferramenta
de trabalho errada na hora e no lugar errados. Mas o principal é a matança em
si. Nos casos do skate, da furadeira, do macaco hidráulico e muitos outros,
claramente os mortos não eram bandidos, assim como, aparentemente, os jovens
assassinados no Fiat Palio branco também não eram bandidos; não há
justificativa. Mas, e se os integrantes do Fiat Palio fossem bandidos? Haveria
justificativa para a ação policial? Infelizmente, a resposta racional é não:
não há justificativa, mesmo se fossem bandidos.
Essa é uma indagação inquietante.
Comecemos por uma digressão: só bandidos gostam de bandidos – e, ainda assim,
somente até a página quatro: há uma ética particular entre bandidos que faz com
que bandidos matem bandidos que cometam crimes como estupro ou assassinato de
crianças. Isso para não falar nas disputas por poder e dinheiro. Mas, porque
está tudo entre bandidos e bandidos se matando não afeta a vida da sociedade,
exceto por danos colaterais de balas perdidas; na verdade, bandidos se matando reduz
a população de bandidos sem que a sociedade precise fazer coisa alguma e, por
isso, muitas vezes, a justiça nem toma conhecimento de acertos de contas entre
bandidos – afinal, são crimes cometidos por criminosos contra criminosos. Eles
se matam entre eles e fazem à sociedade o favor de autocontrolar suas
populações. Restando pacífico que apenas bandidos gostam de bandidos e que
bandidos se matando entre si não é algo visto como ruim pela sociedade, podemos
encerrar a digressão e retornar à pergunta inicial: e se os ocupantes do Fiat
Palio branco fossem bandidos? Se fossem bandidos, não deveriam ter sido
executados pela polícia? Não, não deveria, mesmo que, naquele Fiat Palio
branco, ao invés de Roberto de Souza Penha (16 anos), Carlos Eduardo da Silva de
Souza (16 anos), Cleiton Correa de Souza (18 anos), Wilton Esteves Domingos
Junior (20 anos), e Wesley Castro Rodrigues (25 anos) estivessem Adolf Hitler,
Joseph Stalin, Pol Pot, Mao Zedong e Idi Amin Dada exatamente na véspera de
cada um desses monstros iniciar seu respectivo genocídio, ainda assim eles não
poderiam ser executados pela polícia. Não que esses ditadores sanguinários
merecessem sorte diferente – uma hipotética execução deles exatamente antes de
perpetrarem seus horrores evitaria mais de uma centena de milhão de mortes.
Ainda assim, eles não poderiam ser executados pela polícia.
E não poderiam ser executados
porque nós, o povo, não delegamos à polícia esse poder de decidir quando, quem
e porquê matar algum de nós, o povo – bandido ou não. Simples assim. Se nós
acharmos que bandidos devem ser mortos, que aprovemos a pena de morte no
Brasil. Assim, um bandido poderia ser julgado e sentenciado a morrer, com tudo
o que envolve isso – inclusive as inevitáveis injustiças: porque é preferível
ter um culpado vivo a um inocente morto ao final de um processo, somente se
procede com a pena de morte quando há certeza insofismável, o que nem sempre é
possível, restando margem para que culpados não sejam punidos, até porque, em
caso de pena capital, simplesmente não há como se restaurar o status quo
ante de uma execução. Há sólidos argumentos a favor e contra a pena
capital, mas o fato é que ela não existe no Brasil – ao menos em tempos de paz
e entre civis, como ressalva a Constituição. E, na possibilidade de vir a
existir, haveria de se percorrer todo um longo processo legal antes de se
executar alguém. Em todo caso, nunca se delegaria uma decisão tão séria para
ser tomada por qualquer agente da lei no calor dos eventos. Muito menos sem
mecanismos de revisões, freios e contrapesos. Colocando de outra maneira: ainda
que o skate, a furadeira ou o macaco hidráulico fossem armas, em nenhum momento
a sociedade deu aos policiais poder legal de atirar para matar contra quem
estivesse armado. Ainda que fossem bandidos portando armas de grosso calibre, a
integridade física dos policiais simplesmente não está em risco pelo fato de
que uma pessoa – ainda que seja um bandido – está carregando uma arma – ainda
que ilegalmente. O procedimento é deter a pessoa e confiscar a arma; atirar,
somente quando há risco iminente (leia-se uma arma apontada ou disparos em
execução) à vida e somente para neutralizar a ameaça. A polícia só pode atirar
apenas houver ameaça imediata, algo que soa ainda mais ridículo quando se
lembra que os policiais confundiram skate, furadeira e macaco hidráulico com
armas – e atiraram alegando se proteger de ameaças imediatas.
Obviamente, parece brincadeira de
mau gosto falar que a polícia não deve atirar para matar sempre e mesmo
preventivamente a partir de uma confortável sala refrigerada, longe do inferno
de operações policiais nas cidadelas que são as favelas cariocas. Verdade. Mas
há pessoas que enfrentam situações mais complicadas. Pensem nas Forças de
Defesa de Israel, a mais eficiente máquina militar do mundo. E pensem nos
treinados soldados do Hamas ou Hezbollah – não são adolescentes que não sabem
atirar e cujo uniforme se resume a bermudão e sandália de dedos, mas homens
experientes, com equipamento e treinamento militar: são soldados, que usam
veículos militares e mesmo mísseis contra os israelenses. Lembrem-se que os
combatentes do Hamas e do Hezbollah também conhecem o terreno muito melhor do
que os israelenses, também se misturam à população civil (que também oprimem e
apaziguam via assistencialismo, assim como nas favelas cariocas), mas
apresentam um risco a mais aos soldados: homens-bomba. Acho que ninguém
discorda de que diante de uma incursão na Faixa de Gaza, uma operação policial
no Complexo do Alemão parece um passeio dominical. E, todavia, as Forças de
Defesa de Israel seguem o Direito Internacional Humanitário à risca, observando
o disposto nas Convenções de Genebra sobre o jus in bello. Soldados
israelenses não executam combatentes do Hamas e do Hezbollah: soldados
israelenses os prendem quando eles se rendem, por piores que sejam – e muitos
deles são terroristas. Em suma, soldados israelenses apenas atiram quando
necessário. É isso que queremos dos policiais. Que sejam como os soldados
israelenses, que, mesmo nas mais adversas das situações de combate (e é difícil
imaginar uma situação de combate mais adversa do que uma incursão na Faixa da
Gaza), seguem a lei. É isso que diferencia as Forças de Defesa de Israel do
Hamas e do Hezbollah. É isso que deveria diferenciar policiais e bandidos no
Brasil.
Claro que, em Israel, há abusos.
E eles são reportados pelos próprios militares, com punições exemplares sendo
adotadas pelo governo israelense, com cortes marciais. Eis o ponto aonde eu
quero chegar: as Forças de Defesa de Israel não são condescendentes com
execuções de combatentes inimigos. Isso reflete um senso mais geral do povo
israelense – Israel sempre tem o direto de se defender e, para tanto, observa
os princípios do jus ad bellum de autodefesa: necessidade e
proporcionalidade. Em Israel, há esse entendimento: se o povo considerasse
aceitável que um soldado mate um inimigo armado preventivamente porque esse
inimigo carrega uma arma, então o povo estaria autorizando não tão tacitamente
assim que esse soldado decida per se quando execuções de inimigos são
necessárias. Na memória de um povo que esteve exatamente à mercê de soldados
que decidiam quem executar a qualquer momento, esse é um assunto inegociável e
um precedente que não se pode abrir em hipótese alguma. Afinal, se esse soldado
ganhasse uma licença nem tão tácita assim para decidir quando executar
inimigos, é natural que o passo seguinte seja executar qualquer pessoa que lhe
pareça ser inimigo no calor do momento. Aplique-se essa lógica aqui e
entendemos que não é acidente matar inocentes carregando skate, furadeira ou
macaco hidráulico – trata-se de mero erro de análise na hora de decidir quem é
bandido e, portanto, precisa ser morto. Se nós, o povo brasileiro, queremos que
nossos bandidos sejam mortos, façamo-lo corretamente e paremos de agir
covardemente, terceirizando essa tarefa para policiais que agem sem revisões,
pesos e contrapesos. Aparentemente, Roberto de Souza Penha, Carlos Eduardo da
Silva de Souza, Cleiton Correa de Souza, Wilton Esteves Domingos Junior e Wesley
Castro Rodrigues não eram bandidos, mas a execução deles não seria menos errada
caso o fossem – era necessário que fossem detidos e ponto final: até os piores
bandidos têm direito ao processo legal que pode, inclusive, erroneamente
deixá-los à solta. Evidentemente, dói pensar na possibilidade de bandidos
conseguirem escapar da justiça, mas dói mais ainda pensar na possibilidade de
inocentes serem mortos porque nos omitimos e terceirizamos nossas
responsabilidades, legando aos policiais a decisão sobre quem deve morrer,
quando e porquê, independentemente de serem bandidos ou não. É isso que não
podemos aceitar.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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