Donald Trump é um camaleão – e
parece se orgulhar disso. Seus eleitores também não parecem se incomodar muito
com as imprevisibilidades do Comandante-em-Chefe da mais poderosa nação do
mundo, mas um fato incontornável em política externa é a previsibilidade. Desde
que o Cardeal Richelieu deu formatos à chamada Raison d'État ao
assumir a Chancelaria de Luís XIII nos idos de 1616, tem-se como fato a
previsibilidade de ações de um país na esfera internacional, independentemente
do grupo político no poder. Foi assim na França da Dinastia Bourbon, é assim no
Brasil pós-impeachment de Dilma Rousseff: política externa pertence ao
estado, não ao governo – e, portanto, tem como característica basilar a
previsibilidade decorrente da continuidade. De fato, há princípios que o Brasil
defende há muitas décadas, como a não-intervenção, a reforma das instituições
multilaterais para espelhar a ordem contemporânea pós-bipolaridade etc. Do
mesmo modo, há princípios que os Estados Unidos da América seguem, como a
atuação concertada em questões de segurança internacional e, ao menos desde
2013 (ano da aprovação Resolução 1973 pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas, que permitia de forma explícita a intervenção na Líbia – curiosamente,
uma década após a controvérsia envolvendo a Resolução 1441, que permitia de
forma implícita a intervenção no Iraque), tem na Responsabilidade de Proteger
(R2P, na sigla mais conhecida em inglês) uma de suas maiores bandeiras. Na
prática, a R2P significa que a comunidade internacional passa a deter, de forma
subsidiária e provisória, a responsabilidade por proteger civis ou militares
contra ações proscritas pela lei internacional que se lhes são impostas por
ação ou por omissão dos governos que tinham a missão de impedir que tais
atrocidades fossem perpetradas. Ou tinha: em agosto do mesmo 2013, Barack Obama
descumpriu a promessa feita em 2012 de agir para proteger o povo sírio caso
Bashar al-Assad cruzasse a “Linha Vermelha” de usar armas químicas. Obama não
cumpriu sua ameaça e piscou no Chicken Game diante de uma das mais
cruéis ditaduras do mundo. O resultado era previsível: não apenas al-Assad
utilizou armas químicas naquela vez, como o fez em outras ocasiões nas quais
Obama era o Comandante-em-Chefe dos EUA. Para não ficar 100% desmoralizado,
Obama conseguiu um compromisso de al-Assad de se desfazer de seu arsenal
químico, o que foi apresentado como uma vitória da diplomacia sobre a força – e
que, agora, sabe-se que não foi cumprido honestamente pela ditadura síria. O
tempo passou, Trump foi eleito prometendo “America First” e isolacionismo.
Vladimir Putin viu a fraqueza de Obama, entrou em campo para estabelecer-se
fortemente na Síria e, assim, não apenas manter Al-Assad no poder, mas também
tornar a presença russa um fait accompli para o novo ocupante da Casa
Branca e tudo parecia estar resolvido para al-Assad – até ele sentir-se
novamente forte o suficiente para aterrorizar seu povo com armas químicas uma
vez mais. Eis o cálculo doentio: se Barack Obama, que se havia comprometido a
agir, não agiu, não seria Donald Trump, que se havia comprometido a não agir, que
agiria. Erro crasso: aparentemente, Trump tomou o ataque com armas químicas de
04-Abr-2017 como seu 11 de Setembro. Donald fez valer a Linha Vermelha de
Barack. Se esse momento será sua inflexão shakespeariana ou não, saberemos ao
longo dos próximos meses e anos. Mas certamente indica uma mudança importante,
embora não tenhamos como se saber se será consistente ou não, dada inclinação
da esfinge topetuda por imprevisibilidades. Camaleão assumido. Só não sabemos
ainda de que tipo.
Foram 59 mísseis Tomahawk. Uma
chuva de armas de precisão sobre a base aérea na cidade de Khan Shaykhun (na
província de Idlib, adjacente à estratégica cidade de Homs e próxima à
fronteira com o Líbano), de onde partiram as aeronaves responsáveis pelos
terríveis ataques contra os civis que a Força Aérea da República Árabe da Síria
dizimou por meio do abominável gás sarin. Trata-se do mesmo agente químico que
ficou mundialmente famoso após uma seita conhecida como Aum Shinrikyo utilizá-lo
em um atentado no metrô de Tókyo em 1995. As imagens do ataque são tão
perturbadoras (especialmente por envolverem bebês) que uma ausência de reação
enérgica por parte da comunidade internacional de nações civilizadas seria
quase uma cumplicidade com o regime criminoso de Damasco. Porém, a comunidade
internacional não sabia o que esperar de Donald Trump; afinal, ele sempre se
posicionou contra o intervencionismo. Mas o que os aviões saídos da base aérea
de Shayrat fizeram foi demais. Nem mesmo os russos, que não apenas reformaram e
garantiram a segurança de Shayrat, como também conduzem operações militares
oficiais e secretas a partir daquela base aérea, que costumam abençoar as
barbaridades de al-Assad (por exemplo, a prática de atirar barris recheados com
explosivos e pregos contra civis, como se fossem gigantescas granadas), tiveram
coragem de negar o uso de armas químicas. Os russos foram os fiadores da falsa
entrega de todos os armamentos químicos por parte do Palácio ash-Shaab. Mais do
que isso, os russos sabem que a existência do sarin é facilmente comprovável,
sabem também que não haveria como os rebeldes terem acesso a armas tão
sofisticadas e, principalmente, sabem que os americanos monitoram todas as
ações aéreas na região; ou seja, sabem que identificar que houve um ataque
aéreo com sarin a partir de Shayrat é inevitável. Por isso, fizeram o barulho
midiático que se esperava que fizessem, mas em momento algum ousaram se colocar
como empecilho à reação de Donald Trump; afinal, os russos não são loucos e
sabem que o espaço que conquistaram na Síria foi unicamente decorrência da
fraqueza de Barack Obama. O Kremlin entende perfeitamente bem que não há como
fazer frente de facto ao poderio americano – Putin faz apenas
filigranas quando há vácuos, como havia na Síria. A ação em Khan Shaykhun foi um
sucesso. A pergunta agora é: o que esperar de Donald Trump de agora em diante?
Para unir um país em torno de um
líder, a tática de ter um inimigo externo comum a todos é uma tática pisada e
repisada pelo menos desde que Maquiavel escreveu “O príncipe”, há cinco
séculos. Todo político sabe bem disso. Escritores sabem bem disso (e é
impossível não citar George Orwell e seu “A revolução dos bichos” nesse caso) e
analistas políticos, que estudaram políticos e escritores, sabem ainda mais.
Assim, a primeira reação foi interpretar a reação de Donald Trump como um ato
teatral. Isso é subestimar a capacidade do dono do combover mais
famoso do mundo. Se passar a ver o mundo como um lugar hostil e um risco à
segurança americana, Donald Trump vai agir. Paradoxalmente, Trump parece
disposto a intervir no mundo para garantir o America First. Impedi-lo,
quem haverá de? Agindo a Casa Branca, todo o mundo para e espera para ver se
segue ou apenas observa. O mundo (ou antes, as democracias) quer agir e ajudar
Trump a lidar com ameaças à paz e à segurança e as violações aos direitos
humanos que as ditaduras representam. Mas, para isso, é necessário ter certeza
de que se trata de um movimento consistente, não um espasmo para obter
aplausos. É necessário saber que Washington está disposta a arriscar e se
envolver de verdade. É necessário que Trump lidere pelo exemplo. Isso
implicaria que o atual POTUS (Presidente dos Estados Unidos da América, na
sigla em inglês) fosse firme, mas não impetuoso: buscasse o consenso de seus aliados,
conversando e estabelecendo planos consistentes e de longo prazo para fazer
aberturas democráticas em locais como Síria e Coreia do Norte, mas também em
outros lugares, como Egito, Monarquias do Golfo, ditaduras africanas, Mianmar e
Tailândia, Cuba etc. Apenas assim ele traria legitimidade às suas ações, que
não mais seriam vistas como um plano eleitoreiro ou uma atuação egoísta,
visando apenas ao bem dos americanos – em outras palavras, al-Assad pode
massacrar seu povo à vontade, desde que não use armas químicas. Para o bem e
para o mal, é para os Estados Unidos da América que o mundo se volta quando
busca liberdade, paz e justiça. E é dos Estados Unidos da América que o mundo
espera a liderança na busca desses objetivos. Se Donald Trump entendeu isso,
pode vir a ser um improvavelmente grande presidente. Em pouco tempo, saberemos
que tipo de camaleão Donald Trump é: estadista fingindo ser populista ou
populista fingindo ser estadista.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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