Pedro Nascimento Araujo
Há um ano, o Brasil começava a
viver o Junho de 2013. Catalisador de diversas frustrações, principalmente por
conta dos gastos com elefantes brancos para a Copa do Mundo FIFA 2014, o
movimento foi deflagrado por um desconhecido coletivo de viés marxista ( porém
suprapartidário) chamado Movimento Passe Livre (MPL), mais conhecido
simplesmente como Passe Livre. O estopim foi o aumento de 20 centavos no valor
da passagem dos ônibus urbanos (conhecida em São Paulo como “passe”,
deu origem ao nome do MPL) nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro – as
principais cidades do Brasil haviam sido coagidas a adiar os repasses
inflacionários do início do ano para Junho na tentativa de não sobrecarregar os
índices inflacionários. Foi essa a combinação que deu no Junho de 2013:
inflação em alta e excesso de gastos públicos com obras faraônicas opondo-se a
impostos elevados e serviços pessimamente prestados: os 20 centavos foram a
proverbial gota de água que fez o copo transbordar. O tempo passou, os
protestos foram esvaziados (principalmente por conta da atuação de grupos
violentos), as promessas feitas no calor do momento foram convenientemente
esquecidas e os 20 centavos se transformaram em 25 seis meses depois sem
gritaria: os 15 minutos de fama do MPL se esgotaram. Porém, um ano depois do
Junho de 2013, Cabo Frio está tornando realidade a utopia do Passe Livre: em ao
menos um distrito da cidade, os moradores não pagam mais passagens nos ônibus
municipais.
Como outros destinos turísticos,
Cabo Frio é uma cidade conhecida pelas belezas naturais, pelo legado cultural e
pela hospitalidade do seu povo. Porém, Cabo Frio tem uma peculiaridade: é uma
cidade conhecida pelo bom uso que fez dos royalties de petróleo que recebe há
anos, embora de forma irregular: Alair Corrêa, que governou de a 1997 a 2004, reconstruiu a
cidade e foi modelo para a Região dos Lagos, enquanto seu sucessor, Marco
Mendes (2005-2012), não deixou legados notáveis – durante esse hiato, a cidade
era comparável a casos clássicos de estagnação apesar dos royalties, como
Campos dos Goytacazes e Macaé. Em janeiro de 2013 (ou seja, 6 meses antes de o
MPL ganhar notoriedade), Alair Corrêa reassumiu a prefeitura de Cabo Frio com
uma promessa inusitada: passagens gratuitas na cidade. Mesmo os adversários,
que durante a campanha diziam que era demagogia de candidato, tiveram de se
curvar quando o programa começou de fato. E começou em grande estilo: com
biometria por identificação facial – o que era ficção científica há poucas
décadas, hoje é uma tecnologia bem estabelecida no mundo, embora inovadora no
Brasil. Funciona assim: os moradores são cadastrados e têm seus rostos
digitalizados e as proporções da face (distância entre os olhos, das maçãs da
face aos lábios etc.), que são únicas, são gravadas. Quando um morador cadastrado
entra em um ônibus equipado com o sensor de identificação facial, tem suas
medidas reconhecidas e o acesso liberado na roleta. Embora possa parecer
excesso de zelo à primeira vista, o reconhecimento facial é virtualmente imune
a falsificações – o que não ocorre com as impressões digitais: ficaram famosos
os casos de médicos fluminenses que fizeram em 2012 moldes em silicone das
digitais de colegas (procedimento relativamente simples e barato) para marcar
presenças em plantões por meio de falsificação de impressões digitais. Com
tecnologia de ponta, o dinheiro dos royalties de petróleo está permitindo a
Cabo Frio fornecer passagens de graça para seus moradores. As implicações são
imensas.
Talvez os mais de 100 mil
beneficiários previstos para a passagem gratuita (evolução do Cartão Dignidade,
criação também da atual administração) não saibam, mas prefeitos de todo o
Brasil estarão de olho nos resultados do que Cabo Frio está fazendo. Nem tanto
pelo pioneirismo da ação, mas mais pelo potencial de demandas que gerará em
suas próprias cidades. Se a tarifa zero se provar o sucesso que parece ser, os
prefeitos dos demais 5.569 municípios brasileiros ver-se-ão pressionados a
fazer o mesmo. Para a sorte deles, o programa de Alair Corrêa ainda está em
implantação (por ora, as passagens gratuitas são garantidas apenas aos
moradores do 2º Distrito, mais conhecido como Tamoios, enquanto nas demais
áreas a passagem de R$ 2,80 é subsidiada para R$ 0,50) e ainda há tempo de se
antecipar à inexorável pressão popular que se seguirá quando a imprensa
nacional começar a divulgar o que está acontecendo na cidade da Região dos
Lagos. Com a tarifa zero do Cartão Dignidade, o argumento segundo o qual a
prefeitura que bancasse a mobilidade urbana iria à bancarrota perde força por
uma questão bem simples: atualmente, nas principais cidades do país, mais de
50% das passagens está enquadrada em algum tipo de gratuidade: idosos,
estudantes, ex-combatentes etc. – como, obviamente, não são as empresas de
ônibus que pagam pelas gratuidades, na prática as prefeituras já subsidiam mais
da metade das passagens. Se as prefeituras já subsidiam mais da metade das
passagens, por que manter uma distinção entre seus cidadãos, com metade não
pagando por motivos diversos e metade pagando? Como toda grande ideia, a
gratuidade de Cabo Frio goza da prerrogativa da lógica: uma vez que a
prefeitura já paga por mais da metade das passagens, é natural eliminar a
distinção entre pagantes e não-pagante e estender a gratuidade a todos os
munícipes. Assim, olhando em retrospecto, a iniciativa de Alair Corrêa pode
parecer óbvia, mas não é simples; aliás, se fosse simples, outros já teriam
feito – inclusive ele mesmo em uma de suas administrações anteriores. O que
parece óbvio à primeira vista, na verdade, demanda experiência, ousadia e
inovação.
O caminho percorrido foi longo. O
atual prefeito de Cabo Frio está em seu quarto mandato, o terceiro desde que os
royalties do petróleo passaram a azeitar a máquina municipal. Em suas
administrações anteriores, a infra-estrutura da cidade foi a grande
beneficiária de Alair Corrêa: não é errado dizer que ele já fez praticamente
tudo o que Cabo Frio precisava em termos de saneamento, escolas, hospitais etc.
– obras que nem o interregno de Marco Mendes foi capaz de apagar. Assim, seria
natural que o experiente político destinasse os recursos do petróleo para o
setor social. O pulo do gato, todavia, foi olhar para os borderôs das empresas
de ônibus e ter o seguinte estalo: se a prefeitura já paga mais da metade das
passagens (gratuidades legais) e há muitos casos de fraudes (uso indevido de
gratuidades legais), por que não pagar a metade restante e zerar as fraudes (no
caso, por meio de biometria facial)? Enquanto os prefeitos dos outros 5.569
municípios olham para os borderôs e viam um problema, Alair Corrêa viu uma
solução tanto para a inclusão social quanto para o controle de fraudes. De
novo: parece óbvio e simples, mas não é: é óbvio e complicado. Assim, Cabo Frio
conseguiu, sem contabilidades criativas, sem quebrar o caixa da cidade, sem
atrasar nenhum compromisso para honrar outro, chegar à tarifa zero. Se o
Movimento Passe Livre olhasse mais para o que acontece em Cabo Frio, teria tido
uma bandeira muito mais forte, pois teria um exemplo de sucesso para
apresentar, tirando sua reivindicação da utopia e levando-a para a prática: se
Cabo Frio pode ter tarifa zero, por que minha cidade não pode? Uma pergunta
que, mais cedo ou mais tarde, inexoravelmente será feita aos outros 5.569
prefeitos no Brasil. Para o bem deles, é bom começar a agir antes que virem
fósseis empossados.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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