Por Pedro Nascimento
Araujo
O Iraque é uma invenção recente.
Tecnicamente, o país é uma das crias do famigerado Acordo Sykes-Picot,
instrumento de diplomacia secreta por meio do qual França e Reino Unido,
pilares da Tríplice Entente, coalizão que venceria a Grande Guerra (1914-1918),
combinaram a partilha do Oriente Médio, espólio de guerra decorrente da
iminente derrota da Tríplice Aliança, coalizão que seria derrotada e da qual do
Império Turco-Otomano fazia parte. Porém, a visão segundo a qual o Acordo
Sykes-Picot foi uma reunião que apenas traçou linhas aleatórias no mapa não
resiste a uma avaliação mais séria. De fato, muitas fronteiras foram mantidas,
enquanto, em outros países, houve alterações; porém, a idílica harmonia entre
os povos muçulmanos sob o sultão não é mais que uma visão romanceada. Assim, ao
longo do Século XX, as fronteiras foram alteradas pouco alteradas, de modo que,
após algumas gerações, há tanta unidade entre os povos do antigo Império
Otomano quanto entre os povos do antigo Império Espanhol: rivalidades nacionais
são a tônica e guerras não são raras. Todavia, nada que ameaçasse a
estabilidade das fronteiras. Ao menos, até agora, quando o ISIS (acrônimo em
inglês para Islâmico do Iraque e do Levante) conquistou Mossul, segunda cidade
mais importante do Iraque. O que acontecerá a partir de Mossul é importante não
apenas para o território do antigo Império Turco-Otomano, mas para a segurança
de todo o planeta. Agora, Mossul é a esquina do mundo.
O Iraque é uma confluência de três
grupos distintos (sunitas, xiitas e curdos) que foram mantidos sob tirania
tanto sob o sultão do Império Otomano quanto sob Saddam Hussein. A intervenção
estrangeira que depôs Hussein em 2003 liberou tensões há muito armazenadas,
como uma mola de sectarismo mantida retesada por séculos. Mossul foi um dos
centros nervosos das disputas sectárias, cujo arrefecimento se deu apenas anos
após, quando os Estados Unidos entraram de vez na guerra civil que devastou o
país. Embora Falluja seja o maior exemplo da pacificação americana no Iraque,
em Mossul as tensões também se mantiveram elevadas mesmo com o aumento de
efetivos. Após poucos anos de estabilidade no Iraque, os Estados Unidos
promoveram uma saída prematura graças a um compromisso de campanha de Barack
Obama. Foi a senha para que os grupos terroristas se reagrupassem. Com a guerra
civil na Síria levando o país à condição de estado falido, os terroristas do
ISIS ganharam força e armamentos, passando a controlar regiões próximas à
fronteira iraquiana. Com o tempo, fizeram incursões em território iraquiano que
culminaram com a tomada de Mossul no último dia 10.
O ISIS é uma ameaça muito maior do que
parecia, inclusive para os serviços de inteligência do Iraque e das potências
ocidentais – incluindo o onisciente Mossad. Na verdade, segundo o The Guardian,
a comunidade de informações teve noção do tamanho da encrenca apenas na semana
da espetacular ação de conquista de Mossul (graças a um informante nomeado Abu
Hajjar, centenas de computadores foram apreendidos) e não teve tempo sequer de
analisar os dados. Para piorar a situação, descobriram que o ISIS, que já havia
adquirido armamento pesado quando tomou a emblemática cidade de Tikrit (terra
natal de Saddam Houssein), incluindo blindados de combate, lançadores de
granadas etc., estava se preparando para tomar Bagdá. Desde que o ISIS começara
a se capitalizar com os poços de petróleo tomados na Síria em 2012 até agora,
estima-se que o ISIS tenha arrecadado algo em torno de 2½ bilhões de dólares
entre dinheiro vivo e armas nas cidades que saqueou até agora. Isso torna o
grupo terrorista capaz de lutar de igual para igual com muitos exércitos do
mundo, incluindo o iraquiano, e faz a coalizão entre al-Qaeda e Taleban no
Afeganistão parecer brincadeira de colegiais.
Evidentemente, o ISIS não marcharia para
tomar Bagdá se os Estados Unidos tivessem agido menos por palanque e mais por
pragmatismo, como tem sido a tônica durante os anos de Obama na Casa Branca. Se
a decisão de intervir no Iraque não foi consensual, o mesmo não se pode dizer
da necessidade de estabilizar o país e garantir a segurança na região, de
preferência com um estado democrático e múltiplo em temos de etnia e de credo.
Ao pensar mais nas láureas de retirar as tropas do Iraque (láureas áureas, como
o Nobel da Paz com que foi agraciado), Obama optou por não deixar um número
suficiente de soldados estacionados para reprimir qualquer ataque de
extremistas ao Iraque. Além disso, sua tristemente famosa falta de
credibilidade no trato com a Síria (a “linha vermelha” que traçou para Bashar
al-Assad foi olimpicamente ignorada mais de uma vez) permitiu a ascensão do
ISIS naquele país. Caso o ISIS realmente consiga tomar Bagdá, uma intervenção
internacional em larga escala será necessária – e nem mesmo Obama poderá fugir
dela. O custo de suas omissões (vale lembrar: peca-se por pensamentos,
palavras, atos e omissões), tanto em vidas quanto em prestigio político (que parece
importar mais a ele), seria bem maior do que ter mantido soldados de prontidão
enquanto treinava as forças armadas iraquianas. Por isso, a opção é atingir o
ISIS em Mossul antes que seja tarde demais – ou seja, antes que seja necessário
atingi-lo em Bagdá. Nas próximas semanas, Mossul será a esquina do mundo: o que
acontecer lá será assunto no planeta inteiro. Esperamos que as notícias sejam
boas.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
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