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Sapos na panela em fogo baixo


 

Pedro Nascimento Araujo

É difícil precisar quando a hiperinflação brasileira nasceu: há marcos sólidos apontando para diversos momentos – os descontroles monetário e fiscal durante o governo de Juscelino Kubistchek, a criação da correção monetária durante o governo de Castello Branco, a Crise do Petróleo (1973), a Crise da Dívida (1982), o Plano Cruzado (1986) etc. Para nossa sorte, é facílimo precisar quando a hiperinflação brasileira morreu: 1994, por obra e graça do Plano Real, na verdade iniciado em 1993. Durante décadas, o Brasil aprendeu a aceitar o inaceitável aos poucos: a inflação foi se entranhando de tal modo na vida das pessoas que, após o fracasso das medidas radicais do Plano Cruzado (1986) e do Plano Collor (1990), simplesmente se aceitou que a hiperinflação era invencível e seria sempre parte do cotidiano brasileiro. Como um sapo de anedota, que não entra em panela com água fervendo e não foge de panela com água esquentando paulatinamente, o brasileiro simplesmente desenvolveu uma espécie de convivência pacífica com a hiperinflação. Quando, finalmente, ela foi derrotada, o povo retribuiu elegendo Fernando Henrique Cardoso, o Ministro da Fazenda de Itamar Franco que comandou o Plano Real, por duas vezes em primeiro turno para a Presidência da República. Prova de que, tão logo a água parou de esquentar, o sapo percebeu que estava sendo cozinhado vivo e fugiu da panela, com um trauma atávico de hiperinflação. Duas décadas após termos vencido a até então invencível hiperinflação, é mais que hora de vencer a até agora invencível violência urbana: o Mapa da Violência 2014 anunciou que 56.337 foram assassinadas em 2012, número 7% maior que 2011. A água está em uma temperatura elevadíssima: ou saímos da panela logo ou morreremos cozidos sem perceber, anestesiados pela nossa própria inércia.

Primeiramente, é necessário entender o que significam mais de 50 mil mortes. Uma boa comparação é com a Guerra do Vietnã (1959-1973): 58.220 militares americanos foram mortos em todo o conflito. A Guerra do Vietnã, que levou 15 anos para matar uma quantidade de americanos equivalente à quantidade de brasileiros mortos por ano, alterou profundamente os Estados Unidos. Embora não se possa falar em derrota militar, tanto pelo número de baixas (os números são imprecisos, mas foram entre 500 mil e um milhão de mortes do lado adversário) quanto pela estabilidade territorial (Saigon só seria tomada em 1975, dois anos após a saída dos americanos do Vietnã), foi um fiasco geopolítico comparável apenas à aventura soviética no Afeganistão (1979-1989). E, como tal, modificou de forma indelével a sociedade americana: o serviço militar deixou de ser obrigatório (as forças armadas americanas passaram a ser profissionais) e os movimentos por paz e por direitos humanos que sacudiram o mundo nos anos 1960 foram impulsionados pelas imagens de jovens americanos morrendo em uma selva tropical do outro lado do mundo em nome da contenção da expansão do comunismo. Mais de 50 mil mortos em 15 anos mudaram para sempre os Estados Unidos da América. No Brasil, os sapos se acostumaram e mais de 50 mil mortos por ano não mudam nada.

Quando se compilam dados do mundo inteiro, nota-se que as mortes violentas vêm se reduzindo paulatinamente nos países desenvolvidos e de forma desigual entre os demais países – com poucas exceções de países que têm visto esse número aumentar em funções de guerras. Mais que isso, há uma redução mundial na criminalidade como um todo, fato que inspirou uma reportagem de capa da revista britânica The Economist (20-Jul-2013: “The curious case of the fall in crime“, algo como “O intrigante caso da redução na criminalidade”). Todavia, em 2012 o Brasil atingiu o mais elevado patamar de assassinatos desde 1980: na prática, tivemos quase 30 assassinatos por 100 mil habitantes. É um número alarmante: a Organização Mundial de Saúde (OMS, agência especializada da ONU) considera números acima de 10 assassinatos por 100 mil habitantes como “epidêmico”. É exatamente isso: a localidade com mais de 10 assassinatos por 100 mil habitantes está doente – a violência é um aleijão. Visto como um todo, o Brasil está muito doente. Quando o Brasil é visto em partes, entretanto, chega-se a uma conclusão muito pior: há partes em processo de necrose avançada que ameaçam a sobrevivência do todo. Em Alagoas, a situação está tão ruim que a absurda média nacional de quase 30 assassinatos por 100 mil habitantes parece uma meta distante – com 64 assassinatos para cada 100 mil habitantes, Alagoas vai além: deixa para trás os índices de morte da Guerra do Iraque (2003-2011); na verdade, empata com os piores anos daquele conflito (2004 a 2007). Mesmo o estado com melhor marca é considerado enfermo crônico pela OMS: Santa Catarina, com 13 assassinatos por 100 mil habitantes. Que algo precisa ser feito, e urgentemente, é ponto pacíficos. A questão é como fazê-lo.

A citação ao Plano Real não foi à-toa. Para que o Plano Real pudesse ser um sucesso, não foi necessário apenas juntar economistas brilhantes e dar-lhes carte blanche para trabalhar. Na verdade, o sucesso do Plano Real é resultado direto dos fracassos de seus antecessores. O Plano Cruzado, que adotou uma estratégia 100% heterodoxa (ou seja, desconsiderava o preceito clássico da inflação de demanda), fracassou, mas lições ficaram: congelamentos de preços, salários e câmbio foram progressivamente sendo abandonados (o de câmbio foi feito apenas nesta vez), mas a reforma monetária (troca da moeda) foi parte crucial do Plano Real. Há inúmeros outros exemplos de 1986 (Plano Cruzado) a 1990 (Plano Collor), mas o que se busca aqui é mostrar que, em que pesem os fracassos, o combate à hiperinflação era assunto que dominava corações e mentes no Brasil, a ponto de todo governo ter como obrigação tentar vencê-la – ainda que quase todos tenham sido derrotados. Falta esse compromisso em relação à segurança pública. Assim como mais de 1% de inflação por dia não era normal, mais de 50 mil assassinatos por ano não é normal. É preciso começar a atacar este problema. Como o combate à hiperinflação nos ensinou, ainda erraremos muito antes de acertar: tentaremos abordagens radicais à esquerda (relativização das culpas dos criminosos) e à direita (exacerbação das punições aos criminosos) até que encontremos um equilíbrio adequado à nossa situação. Porém, pelo que podemos perceber, os três principais postulantes à Presidência da República a partir de 2015 ainda não colocaram tão candente assunto como prioridade em suas propostas; na verdade, falam mais de taxas de juros do que do inútil holocausto de mais de 50 mil brasileiros por ano. Enquanto o combate à violência não ganhar a importância que o combate à hiperinflação teve, continuaremos como sapos na panela em fogo baixo: anestesiados, nem mais percebemos a morte iminente.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

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