Baixo
ventre do mundo
É creditada a Sir Winston
Churchill, um dos maiores estadistas – se não o maior – do Século XX, a
definição dos Bálcãs como o “baixo ventre” da Europa. Churchill estava certo.
Naquela região, disputas religiosas, nacionalismos exacerbados e brigas por
influência política estão entre os fatores de origem das Guerras Mundiais. Uma
confusão levou à outra e, mesmo no Século XXI, ainda não se pode considerar os
Bálcãs como bastião de estabilidade: conquanto apascentado, o “baixo ventre” da
Europa está longe de poder ser considerado uma zona de paz como é, por exemplo,
a Europa Ocidental depois do fim da Guerra Fria. Ainda assim, ninguém imagina
que os Bálcãs sejam capazes de estar na gênese de um novo conflito envolvendo
países de todos os continentes. Afinal, o mundo tem um novo baixo ventre – a
Síria. É na Síria que se desenrola um conflito com potencial para arrastar as
potências mundiais. Caminhando para seu quinto ano, a guerra civil que assola o
país já deixou algo em torno de meio milhão de mortos (número superior ao da
Guerra do Paraguay) e até 10 milhões de deslocados, dos quais quatro milhões
deixaram o país e tornaram-se refugiados. Como se não bastasse essa tragédia
humanitária, há a possibilidade real de o conflito se internacionalizar de vez:
com a entrada da aviação da Rússia para apoiar as tropas do ditador Bashar
al-Assad, o equilíbrio foi quebrado em favor do regime. A consequência é
direta: os inimigos de al-Assad – basicamente, o resto do mundo todo à exceção
de Rússia e Irã – não estão dispostos a seguir a ausência de liderança de
Barack Obama em Washington, que parece não se incomodar em deixar que al-Assad
esmague a oposição, e se articulam para entrar com tropas terrestres na Síria.
A atuação da Rússia na Síria é o pivô da mudança de patamar. De uma clássica
Proxy War (“Guerra por Procuração”, na imprecisa tradução consagrada), podemos
passar a ter uma guerra aberta, franca e declarada: de um lado, Rússia,
al-Assad e Irã (com seus joguetes terroristas do Hezbollah e do Hamas); de
outro, Monarquias do Golfo, Turquia e, mais cedo ou mais tarde, OTAN e aliados,
como Austrália. Ou seja, podemos passar a ter uma guerra com presença de países
de todos os cinco continentes habitados. Ainda que o teatro de guerra não
ultrapasse o território da Síria em uma polegada, o nome disso é guerra de
alcance mundial.
O início da Guerra Civil Síria é
bem conhecido: protestos na esteira da chamada Primavera Árabe buscavam retirar
do poder a ditadura dinástica dos al-Assad. Deu errado. A repressão foi brutal,
com uso até mesmo de agentes químicos. Com o tempo, al-Assad foi-se tornando um
pária perante a comunidade internacional. A seu lado, apenas dois outros
párias: Vladmir Putin, o protoditador da Rússia, e os aiatolás que comandam a
ditadura do Irã. Teerã não podia agir muito por conta das sanções a que estava exposta,
mas Moscow podia, mesmo apesar das sanções. Na verdade, quanto maiores as
sanções em função da mal disfarçada anexação manu militari da
Crimeia, mais a Rússia de Putin passou a deslocar o foco político para o setor
externo. Com as sanções e a queda do preço do petróleo levando a economia russa
a uma recessão comparável àquela do Brasil em 2015, Putin busca manter sua
legitimidade no poder por meio da mais clássica das táticas: fomentar a união
nacional em torno de um inimigo comum. Funciona desde a Antiguidade – como bem
atesta a perenidade da frase “Carthago delenda est!” (“Cartago precisa ser
destruída!”), proferida ao final de todos os discursos no Senado Romano por
Catão, o Velho, há mais de dois milênios. O Ocidente é a Cartago da Rússia. Foi
assim nos tempos dos tzares e nos tempos dos secretários-gerais do Partido
Comunista. É assim nos tempos de Putin. A Rússia sempre se enxergou como
ameaçada pelo poder ocidental. Os tzares (“césares”, literalmente) comandavam a
“Terceira Roma” – a Mãe Rússia. Todos os governos russos tinham a preocupação
de criar um cordon sanitaire em seu entorno imediato, o que incluiu,
conforme a época, até a Alemanha Oriental – mas lugares como Polônia e Ucrânia
nunca deixaram de tentar ser subjugados por tzares e secretários-gerais. Putin
não fica para trás. Mais do que isso: a Rússia sempre quis ser vista como uma
igual pelo Ocidente (durante um bom tempo, a Corte falava em francês e ficava
na porção mais ocidental do vasto Império, em São Petersburgo, uma cidade
projetada para ser absolutamente ocidental) e, para tanto, volta e meia resolve
mostrar os seus dentes para ser convidada a decidir sobre as grandes questões
geopolíticas mundiais. Que a Rússia continua comportando-se como uma potência
do Século XIX em pleno Século XXI não é novidade. A novidade é que esse
comportamento esdrúxulo pode, pela primeira vez, gerar consequências sérias.
Na última semana, Dmitri
Medvedev, Premier da Rússia (na prática, um anódino porta-voz de Putin) deu
declarações de que o Ocidente estava tratando seu país como na época da Guerra
Fria. O que, à primeira vista, seria uma reclamação, na verdade era um recado:
a Rússia quer ser tratada como na época da Guerra Fria. E deixou isso claro não
apenas quando fez o que fez na Ucrânia (e, em uma aula de Realpolitik, já
percebeu, enquanto a incorporação da Crimeia é fait accompli, o custo de
incorporar outras áreas no leste do país é elevado demais e, portanto, vem
deixando os separatistas abandonados à própria sorte), mas, principalmente,
quando mandou sua aviação para a Síria com a novamente mal disfarçada intenção
de garantir al-Assad no poder. Diante de tamanha provocação, o Ocidente ficou
sem ação. Como sempre, aliás, durante o tempo em que Barack Obama esteve à
frente da Casa Branca. Obama não é exatamente conhecido por ser incisivo em
suas decisões – isso quando as toma, o que nem sempre acontece. Putin sabe
disso e se aproveita do comportamento titubeante de seu par em Washington. Para
azar dele, porém, contra al-Assad há muito mais do que os Estados Unidos da
América. E, pior, os demais países não são tão tíbios. Na verdade, são países
que também precisam projetar poder, tanto por razões internas quanto externas.
Uma aliança, em particular, tem o poder de atrair todo mundo para o conflito:
Turquia e Arábia Saudita – esta, líder das Monarquias do Golfo e do mundo
sunita; aquela, membro da OTAN. Na semana passada, a Arábia Saudita anunciou
que enviará sua aviação de guerra para ações contra o Daesh na Síria e atuará a
partir da Turquia, na base aérea de Incirlik. E não para por aí. Riyadh e
Ankara anunciaram que pretende mandar tropas terrestres para agir na Síria. Abu
Dhabi também já declarou intenção de fazer o mesmo e não há porque imaginar que
outros países não deverão entrar também no conflito, caso as coisas em solo
sírio se aproximem de uma vitória de al-Assad tornada possível por Putin. É
simples: todo mundo se comprometeu demais com a queda de al-Assad. A vitória
dele seria um triunfo geopolítico de Moscow (e de Teerã) e uma humilhação
geopolítica para todas as demais capitais. Em termos regionais, significaria
que o Irã passou a dar as cartas – e, depois do acordo com o P5+1, com dinheiro
para interferir em virtualmente qualquer tensão sectária na região. Putin quer
se mostrar forte em casa e simplesmente não leva em conta os efeitos de seus
atos. Ele sabe que, para os governos sunitas, deixar um país de maioria xiita
liderar o Oriente Médio de maioria sunita é uma humilhação que pode derrubar
governos. Por isso, basta que um dos países sunitas entre em ação abertamente
na Síria para que os demais sejam pressionados a entrar no conflito – e, se
esse país for a Turquia, o Artigo 5º do Tratado de Washington dá respaldo para
defesa coletiva por meio da OTAN. Ou seja, desde a intervenção da Rússia, a
possibilidade real de uma reação em cadeia passou a existir na Guerra Civil
Síria. Putin preocupa-se apenas com a manutenção de sua popularidade em um
momento economicamente ruim no seu país. Na verdade, sua estratégia resume-se a
ser reconhecido pelos russos como o líder que recolocou a Rússia no centro do
poder mundial; para tanto, manter Bashar al-Assad no poder significa manter a base
naval de Tartus que o Kremlin mantém no país – a única no proverbial “mar
quente” do Mediterrâneo, uma obsessão geopolítica russa que ombreia Putin aos
tzares e aos secretários-gerais da Mãe Rússia. Há um século, no baixo ventre da
Europa, o mecanismo de alianças secretas transformou o assassinato do
arquiduque Francisco Ferdinando por Gavrilo Princip nas Guerras Mundiais;
atualmente, a participação russa Guerra Civil Síria transforma o país no baixo
ventre do mundo e tem o potencial de transformar um conflito local em uma
guerra de alcance mundial.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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