Neutralidade
oficial
O Brasil já deixou claro para o
mundo que apoia a solução de dois países para a aparentemente interminável
discordância entre israelenses e palestinos. Na verdade, o país é um dos poucos
que podem dizer que sempre agiram assim. Com Oswaldo Aranha à frente, a
Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas indicava, ainda em 1947,
que o Brasil seguiria no apoio a tal solução. E assim foi, com oscilações, mas
sem afetar a essência. Um bom exemplo: em 1973, após o Choque do Petróleo, o
Brasil deliberadamente se afastou publicamente de Israel para se aproximar dos
países produtores de petróleo – mas, nos bastidores, manteve a mesma ótima
ligação histórica que sempre teve com os israelenses. Com o fornecimento de
petróleo e o acesso a novos mercados garantidos, aos poucos a relação bilateral
foi saindo da berlinda. Essa sempre foi a tônica das relações entre Israel e
Brasil. Que ela tenha começado a desandar durante os governos de Lula da Silva
e de Dilma Rousseff é lamentável. Espera-se que tal afastamento não seja mais
do que uma nota de rodapé num futuro próximo e que o ambos os países retornem à
normalidade, transformando em poeira casos como o do anúncio unilateral de Dani
Dayan para embaixador no Brasil, um ato tornado inviável por conta da
truculência e da arrogância de Tel Aviv, que tornou pública a indicação. Já
passou da hora de o Brasil retomar a neutralidade oficial nas suas relações com
Israel e de Israel retomar a saudável prática diplomática de conduzir as
negociações longe dos holofotes para garantir que a neutralidade oficial volte
a prevalecer.
A cooperação e a amizade entre
brasileiros e israelenses é maior do que fazem supor as relações diplomáticas
baseadas na neutralidade oficial brasileira diante do conflito
árabe-israelense. Naturalmente, quando se pensa em Israel, o que se vem à mente
é um pequeno país em termos territoriais – e um país enorme em termos
tecnológicos. O pequeno Estado de Israel é um dos maiores produtores mundiais
de conhecimento, notadamente em tecnologia avançada nas áreas de software e
segurança. Nasceram em Israel os hoje extremamente populares softwares de
trocas instantâneas de mensagens, cujas origens remontam ao israelense ICQ,
assim como é israelense o software de compartilhamento e processamento de
geolocalização Waze, para ficar apenas em emblemáticos usos civis. Todavia, é
na área de hardware e, principalmente, softwares de segurança que a tecnologia
israelense se destaca, como bem aprenderam os iranianos após a infiltração do
Stuxnet (desenvolvido em conjunto com americanos) em suas centrífugas de
enriquecimento de urânio (fornecidas pela Siemens alemã) terem destruído ao
menos um terço delas em 2010. Além disso, o país roubou documentos e materiais
para construir seu programa clandestino de armas nucleares, em ações
literalmente cinematográficas: Arnon Milchan, produtor de Hollywood que tem no
currículo 12 Anos de Escravidão, Clube da Luta e Pretty Woman, entre outros
sucessos, admitiu em um documentário de 2015 ter sido espião israelense nos
anos 1960 para roubar tecnologia nuclear nos Estados Unidos. Muitas vezes, as
ações israelenses mais parecem roteiro de filme de ação: na década de 1960, o
Mossad (serviço secreto de Israel) criou uma rede de empresas fantasmas alemãs
e italianas para comprar yellowcake (óxido de urânio) como
combustível para uma usina nuclear que nunca existiu. A operação se deu no
porto de Antuérpia e incluiu repintar o navio de bandeira italiana que recebeu
o yellowcake para fazê-lo se passar por um navio liberiano – e o
resto é história: quando as autoridades teuto-italianas se deram conta de que o
navio italiano desaparecera, descobriram que as empresas que seriam
responsáveis simplesmente não existiam, enquanto o falso navio liberiano
descarregava tranquilamente os tambores de yellowcake identificados
como sendo inofensivo plumbato (um derivado do chumbo) em Tel Aviv, em uma
história tornada pública em 1978 por Elaine Davenport em seu livro The
Plumbat Affair. Não é apenas figura de linguagem dizer que o programa nuclear
israelense, cujo maior símbolo é o reator de Dimona, é subterrâneo: as
instalações são todas em bunkers – e o reator em Dimona, que realmente gera
energia para uso pacífico, nada mais é do que uma fachada altamente funcional.
É bem verdade que Israel não possui um histórico de responsabilidade absoluta,
como bem atesta a cooperação com o regime segregacionista sul-africano: graças
à cooperação israelense, a África do Sul conseguiu construir uma bomba atômica
– e, depois, seria o primeiro (e, até agora, único) país capaz d ter um arsenal
termonuclear a desistir voluntariamente de fazê-lo. Não há informações de que
os israelenses tenham colaborado com os programas nucleares clandestinos do
Cone Sul (Argentina, Brasil e Chile) nos anos 1960 a 1980, mas Israel é um dos
maiores fornecedores de tecnologia de segurança para o Brasil, mais na área
policial do que na área militar, o que denota a confiança. Não é raro que
forças policiais brasileiras, notadamente de elite, recebam treinamento e
cooperem com militares israelenses. É essa cooperação que ora sofre com a falta
de um diplomata israelense no Brasil.
A posição histórica do governo
brasileiro em relação ao conflito árabe-israelense sempre foi de neutralidade,
em defesa da solução de dois estados. Isso implica reconhecer duas coisas: que
os palestinos têm direito a ter o seu estado e que os israelenses têm direito a
viver em segurança. Não há solução que não envolva esses dois preceitos.
Historicamente, não se pode acusar Israel de ter tentado impedir que os
palestinos tivessem seu estado, mas a recíproca não é verdadeira: tão logo
Israel declarou independência, uma coalizão de países árabes atacou a nascente
nação. Foram devidamente surrados, mas não aprenderam a lição, voltando a
tentar “varrer Israel do mapa” (expressão que ainda hoje consta da lista de
objetivos de organizações terroristas como Hamas e Hezbollah) em coalizão por
mais duas vezes, em 1967 (Guerra dos Seis Dias) e em 1973 (Guerra do Yom
Kippour, um ataque sorrateiro em um feriado religioso). Perderam todas as
vezes. E, vale lembrar, Israel já possuía armamentos não convencionais (armas
químicos e nucleares) em ambos os casos, mas não as utilizou – ao contrário do
Iraque de Saddam Hussein, que lançou seus velhos e desaprumados mísseis russos
Scud com armas químicas em Israel na Guerra do Golfo. O Brasil sempre se pautou
por reconhecer os direitos de ambos os contendores e por defender moderação.
Isso começou a mudar em uma visita desastrosa (para dizer o mínimo) feita por
Lula da Silva à região em 2010. Eram tempos de delusions of grandeur por
parte do agora encalacrado com a justiça ex-presidente. Lula da Silva se
recusou a depositar flores no túmulo de Theodor Herzl, fundador do sionismo e
inspirador do retorno ao Haaretz Israel, mas depositou de bom grado flores no
túmulo de Yasser Arafat, fundador da Organização para a Libertação da Palestina
e do Setembro Negro, braço terrorista do grupo responsável por barbaridades
como o atentado nas Olimpíadas de Munique em 1972. Era o fim da neutralidade
oficial. Com esse singelo gesto, Lula da Silva resolveu ombrear o Brasil com os
palestinos e escantear os israelenses. Foi uma mudança expressiva na política
externa brasileira. As motivações são incertas: há analistas que apontam que o
idealismo de parte do Partido dos Trabalhadores conseguiu, no ocaso do segundo
mandato de Lula da Silva, impor sua agenda; outros, em uma ação de política
interna, com Lula da Silva cortejando setores mais à esquerda em busca de
aceitação ideológica para Dilma Rousseff. Independentemente disso, não se
discute que a aproximação de Lula da Silva com o então presidente iraniano
Ahmadinejah (que sempre declarava ter como objetivo o surrado lema
antissionista de “varrer Israel do mapa” e que questionava a existência do
Holocausto), que teve como resultado a natimorta Declaração de Teerã sobre o
programa nuclear clandestino iraniano (um fiasco que contou também com a
participação da Turquia, com Recep Tayyip Erdoğan brigando por reconhecimento
internacional com Lula da Silva), no mesmo 2010 em que o Brasil reconheceria a
existência da Palestina como estado com base nas fronteiras de 1967. A escolha
da data não é por acaso, pois marca o momento anterior à Guerra dos Seis Dias,
a segunda vez em que uma coalizão árabe tentou “varrer Israel do mapa” (e, para
variar, falhou): após a vitória em tempo recorde, sozinho e por meio apenas de
armamentos convencionais, Israel ocupou Jerusalém e outros territórios tanto
para ter um cordon sannitaire como para dissuadir novos ataques –
algo que não funcionou tão a contento, pois em 1973 nova tentativa seria feita
(e frustrada) na Guerra do Yom Kippur. Depois de um ano como esse desastrado
2010 para as relações bilaterais, as coisas só pioraram, como no episódio no
qual um funcionário de terceiro escalão da chancelaria se referiu ao Brasil
como um “anão diplomático” – uma grosseria inaceitável – e em outros nos quais
Brasília abertamente se posicionou contra Tel-Aviv. Culminou com o anúncio
público de Dani Dayan, renomado líder de colonos judaicos na Cisjordânia, para
ser embaixador no Brasil, que gerou um silêncio diplomático tão longo que não
há como negar que o agrément não lhe será concedido. Israel não
poderia fazer o anúncio publicamente, mas disso Bibi Netanyahu sabe. A
impressão que fica é de uma picuinha entre amigos adolescentes que vem
crescendo desde que o PT assumiu o Palácio do Planalto, retroalimentada por
reações ininteligíveis por parte de Israel. Se os dois lados não revirem suas
posições logo, com o Brasil voltando à sua posição histórica de equilíbrio e de
defesa dos direitos de ambos os lados, periga o desgaste transformar uma
amizade quase septuagenária em uma inimizade que não acrescenta coisa alguma ao
Brasil e a Israel – e, menos ainda, à causa palestina, que o Brasil
erroneamente pensa estar defendendo ao atacar Israel. Já passou da hora de as
chancelarias do Brasil e de Israel crescerem e tratarem as relações bilaterais
com o cuidado, o respeito e a importância devidos. Já passou a hora de a
neutralidade oficial voltar a ser o norte.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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