Primeiros
nomes da lista
No momento em que o Brasil passa
por uma agudíssima crise política, pode ser um bálsamo saber que países que
passaram por situações incontavelmente piores estão fazendo as pazes com seus
fantasmas assim como nós: por meio da justiça. Daqui a muitos anos, quando toda
a questão dos ora altamente prováveis impeachment de Dilma Rousseff e
prisão de Lula da Silva puder ser analisada sem as paixões juvenis que parecem
reinar neste momento, iremos acorrer aos arquivos da justiça para estudar as
decisões que hoje dividem o país, ainda que em partes avassaladoramente desiguais.
Se a ação da justiça nos soa como a única aceitável em um momento caracterizado
pelo maniqueísmo, o que dizer de um país que passou por uma sangrenta guerra
civil sectária? O que dizer de um país no qual as divisões transformaram-se em
secessões? O que dizer de um país no qual as secessões foram sucedidas por
genocídios na forma das odiosas limpezas étnicas? O que dizer, em outras
palavras, da Bósnia? Dos 44 meses de cerco a Saravejo? Do massacre de oito mil
muçulmanos em Srebrenica? Em suma, do mais sangrento período da Europa desde
que o Exército Vermelho fincou sua bandeira no Reichstag? O que dizer? Que tal
dizer que Radovan Karadžić acaba de ser condenado a 40 de prisão? Radovan
Karadžić não é um líder qualquer. Tampouco o tribunal que lhe imputou as quatro
décadas é um tribunal qualquer.
Radovan Karadžić foi um dos
maiores líderes servo-bósnios desde que a queda do ditador Tito liberou as
forças tectônicas que despedaçaram a Yugoslávia e que apenas sua mão de ferro
mantinha contidas. Os nacionalismos exacerbados e as divisões religiosas nos
Bálcãs estão na base das Guerras Mundiais e de muitos outros conflitos. Na
verdade, a famosa Paz de Viena, o século de estabilidade sistêmica na Europa
(e, por extensão, no mundo – era o auge do domínio europeu sobre o planeta) que
durou de 1815 a 1914 foi progressivamente abalado pelo que os historiadores
candidamente chamam de “questão balcânica”. Por causa da capacidade de gerar
instabilidade, Sir Winston Churchill se referia aos Bálcãs como o
“baixo ventre” da Europa. E o maior estadista do Século XX não estava errado.
Combinando nacionalismos (inúmeros, com destaque para o sérvio, que defendia a
criação de um estado não apenas independente, mas também expansionista – a
“Grande Sérvia”), religiões (cristãos vivendo sob o domínio – ainda que frouxo
– do Império Otomano eram uma oportunidade sempre disponível de ortodoxos
russos e católicos austríacos tentarem se passar por “protetores dos
cristãos”), racismo (brancos, eslavos e muçulmanos) e ideologias radicais
oitocentistas (anarquismo, comunismo e terrorismo) para lá de exacerbados, os
Bálcãs eram um barril de pólvora prestes a explodir. E explodiu, primeiro em
guerras menores, nas quais as potências lutavam por procuração, até a eclosão
da Grande Guerra em 1914, que teve como estopim o assassinato do herdeiro
branco Habsburgo do trono católico da Áustria (Francisco Ferdinando) por um
anarquista eslavo de um grupo terrorista bósnio de viés nacionalista sérvio e
anticatólico (Gavrilo Princip) em Sarajevo. O marechal Josip Tito usou dos
meios mais abjetos, mas conseguiu, após o final das Guerras Mundiais, criar um
arremedo de estado comunista multinacional e multicultural – a Yugoslávia.
Quando o comunismo caiu, o arranjo de Tito (que incluía rodízio de ocupantes de
altos cargos de acordo com as facções da sociedade) ficou sem os tanques para
se manter e o que era um país virou uma guerra civil ambulante. Nesse cenário,
todos os vícios do passado renasceram nos Bálcãs e as guerras civis tomaram a
região de assalto. Pano de fundo perfeito para um monstro como Radovan Karadžić
ascender. E ele ascendeu.
O tribunal que julgou Radovan
Karadžić também não é um tribunal qualquer. Criado em 1993, o Tribunal Penal
Internacional para a Antiga Yugoslávia finalmente consegue fazer justiça. Não
que Karadžić tenha sido o maior peixe já fisgado pela corte ad hoc; de
fato, Slobodan Milošević, ex-presidente da República da Sérvia entre 1989 e
1997, Milošević foi o maior deles: Slobodan Milošević foi o artífice da
tentativa de recriar a Grande Sérvia a partir dos escombros da Yugoslávia de
Josip Tito por meio de genocídios. Quase conseguiu, pois tinha como aliados na
região autônoma da Bósnia-Herzegovina chamada República Sérvia – apesar do
nome, não um país como a República da Sérvia – carniceiros como Radovan
Karadžić (principal líder político) e Ratko Mladić (principal líder militar).
Os três que comandaram os massacres nos anos 1990 ficaram sob custódia do
Tribunal Penal Internacional para a Antiga Yugoslávia, mas Milošević morreria
em 2006 antes de receber a sentença. Agora, Radovan Karadžić recebeu 40 anos. A
importância dos julgamentos no Tribunal Penal Internacional para a Antiga
Yugoslávia transcende a prisão de monstros como Slobodan Milošević, Radovan
Karadžić e Ratko Mladić. De fato, em 1993, quando o Conselho de Segurança das
Nações Unidas aprovou a Resolução 827, a comunidade internacional estava dando
um passo à frente no que hoje se conhece como Responsabilidade de Proteger
(R2P). Naquele momento, o mundo assumiu a tarefa de punir os responsáveis pelo
genocídio no que ficou conhecido genericamente como Guerra Civil Yugoslava. E,
para tanto, recorreu à criação de tribunais internacionais, como os criados
pioneiramente ao final das Guerras Mundiais: o Tribunal de Tokyo e o Tribunal
de Nuremberg, que julgaram respectivamente os crimes de guerra dos alemães e
dos japoneses. Como sói ser, apenas os crimes dos derrotados foram julgados
pelos vencedores. Assim, os estupros, assassinatos e roubos em massa cometidos
pelos soviéticos por onde pisaram, os criminosos bombardeios incendiários em
Düsseldorf e Dresden feitos pelos ingleses e as bombas termonucleares
americanas que arrasaram Hiroshima e Nagasaki jamais foram julgados. Ainda
assim, os tribunais especiais do pós-guerra foram a primeira vez em que pessoas
foram responsabilizadas por crimes de guerra, de genocídio e contra a
humanidade, ainda que não estivessem tipificados à época. Com o fim da Guerra
Fria, o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Yugoslávia foi um passo
crucial para que o Tribunal Penal Internacional fosse estabelecido. Em que pese
Slobodan Milošević ter morrido antes de ser julgado, o fato de o Tribunal Penal
Internacional para a Antiga Yugoslávia ter anunciado a sentença de Radovan
Karadžić e estar julgando Ratko Mladić é um alento. Significa que a justiça
pode chegar para todos, mesmo aqueles que se julgavam protegidos por aparatos
estatais. Espera-se que a experiência do Tribunal Penal Internacional para a
Antiga Yugoslávia sirva para que o Tribunal Penal Internacional tenha cada vez
mais apoio. E que, conforme o tempo passar, cada vez mais os genocidas saibam
que, mais cedo ou mais tarde, a justiça os pegará em Haia. No futuro, nos
lembraremos de Radovan Karadžić e Ratko Mladić apenas como primeiros nomes da
lista de genocidas que a humanidade colocou atrás das grades.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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