Por
Pedro Nascimento Araujo
Um sonho desmorona a olhos
vistos. Demorou, mas a memória popular acerca de Luís Inácio da Silva
finalmente foi contaminada pelo meu humor atual com Dilma Rousseff – e o
resultado é que a popularidade de Lula da Silva, o último bastião do petismo
que resistia, começou a ceder. O fracasso da criatura começou a enfraquecer o
criador. E o fracasso foi vertiginoso: os eleitores associaram Dilma Rousseff a
Lula da Silva e a elegeram em 2010 – naquele ano, no final do segundo mandato
dele, simplesmente 87% dos brasileiros aprovavam o governo (a título de
comparação: 13% dos brasileiros aprovam o governo de Dilma Rousseff em 2015).
Mais interessante do que isso: ainda naquele momento, para 71% dos brasileiros,
Lula da Silva havia sido o melhor Presidente da República da história nacional.
Apenas cinco anos depois, o número caiu de 71% para 50%. Como decididamente
Lula da Silva não foi suplantado no imaginário popular por Dilma Rousseff (cujo
governo, repita-se, é aprovado por apenas 13% dos brasileiros), o que aconteceu
foi uma corrosão veloz da popularidade do criador por conta da impopularidade
da criatura. Como o maior (se não único) objetivo de Lula da Silva é entrar
para a história como um dos grandes líderes nacionais, ele vai lutar para
salvar sua biografia com unhas e dentes. Lula da Silva é um tipo de esfinge:
uma esfinge jânica, que tem duas faces: a face passional e a face pragmática –
e elas podem se somar ou se anular, conforme a decisão de Lula da Silva.
Decifrá-la continua impossível.
A esfinge jânica se viu impelida
pelas circunstâncias a usar a face pragmática para eleger Dilma Rousseff duas
vezes: em 2010, por absoluta falta de opção; e, em 2014, por questões de saúde.
Muito provavelmente, a face passional se arrependeu de ambas as decisões – não fosse
não ter tido outra opção. Em 2010, os políticos estrelados do PT ou estavam em
desgraça política, como Antônio Palocci, ou estavam marchando para a prisão por
corrupção, como José Genoíno. Sem opções em 2010, e surfando naquela que era a
maior popularidade do mundo, ele empenhou-se sobremaneira até lograr êxito e
eleger Dilma Rousseff sua sucessora. Era isso ou perder o poder. Em 2014, Lula
da Silva não poderia assumir o “Volta, Lula!” por uma questão de saúde – o
câncer na garganta deu recidiva e ele fez tratamentos secretos no Hospital
Sírio-Libanês (entrava de madrugada em carro escuro, subia por elevador
privativo, fazia as sessões terapêuticas e retornava no mesmo esquema) enquanto
negava a doença, até, ainda em 2014, admitir. Mesmo convalescente, carregou
Dilma Rousseff em suas alquebradas costas: o espaldar de Lula da Silva foi a
diferença entre perder a eleição para Aécio Neves ou vencê-la. Já é parte do
folclore político nacional a distorção que ele deliberadamente fez do uso do
termo “leviana” por parte de Aécio Neves para enaltecer Dilma Rousseff perante
eleitoras de baixa escolaridade no Nordeste, aonde a margem alcançada foi
suficiente para reverter a rejeição nas regiões mais populosas do país. Ele só
fez isso porque sabia que a perda do poder seria longa demais para que ele
pudesse tentar voltar à Presidência da República. Vemos a face pragmática da
esfinge jânica sobrepujando a face passional não apenas nas eleições de 2010 e
de 2014, mas também no segundo mandato de Dilma Rousseff: ciente do risco que
representava a derrocada de Dilma Rousseff antes mesmo de assumir, em um
provável novo recorde mundial de pato manco (“lame duck”, termo que analistas
americanos usam para se referir a presidentes em fim de mandato, sem
perspectivas de poder e, portanto, claudicando mais a cada dia), a face
pragmática da esfinge jânica iniciou uma série de intervenções brancas no
governo da criatura. Sem querer repetir o desbotado clichê da relação entre
criador e criatura (exaurido desde que Mary Shelly lançou “Frankenstein” ainda
no Século XIX), é impossível negar haver entre ambos um conflito de poder,
basicamente porque Dilma Rousseff nada entende de política. Isso poderia ser
contornado em períodos de bonança ou com a participação ativa de um coordenador
político do porte de Lula da Silva. Ocorre que, no primeiro mandato dela, fazia
sentido ela não dar a ele esse espaço por temer que ele controlasse a base
política e a escanteasse antes de ela poder se reeleger; todavia, vencida a
reeleição, não haveria porque recusar ajuda; e, nesse momento, dadas as
fragilidades dela, a ajuda não merece mais esse nome: é intervenção branca –
Lula da Silva enfiou goela abaixo de sua criatura dois remédios amargos (um
economista ortodoxo no Ministério da Fazenda – Joaquim Levy, que, vale lembrar,
colaborou com a campanha de Aécio Neves – impôs-lhe um parlamentarismo de
facto, com o comando do governo sendo entregue ao PMDB). A face pragmática não
fez isso por prezar Dilma Rousseff; pelo contrário, para a face pragmática da
esfinge, está claro que o governo de Dilma Rousseff acabou antes mesmo de
começar o segundo mandato – porém, simplesmente não há como sacrificar Dilma
Rousseff nesse momento e manter intacta a fantasia de vestal de Lula da Silva.
Por isso, ele escolheu uma intervenção branca: na prática, o governo de Dilma
Rousseff deixou de ser de Dilma Rousseff; com isso, espera-se que ela (e,
principalmente, seu inacreditável índice de rejeição de 87%) desapareça
progressivamente da vista do povo – e, conforme os bons resultados da
intervenção branca (ortodoxia econômica e pacificação política) começarem a
aparecer, Lula da Silva estará a postos para colher os dividendos, deixando
despudoradamente toda a rejeição ficar com para Dilma Rousseff – assim, em
2018, se a saúde dele permitir, ele entrará na disputa presidencial, finalmente
invocando a face passional da esfinge jânica e sacrificando Dilma Rousseff para
manter sua biografia: a queda de sua popularidade é o assunto principal para
sua face pragmática.
A face passional da esfinge
jânica foi capaz tanto de mantê-lo inconteste na crista da onda política
nacional há quatro décadas quanto de gerar seus piores momentos. Lula da Silva
sempre foi um líder político populista do tipo mais tradicional: simplesmente
não deixava surgir novas lideranças que pudessem ameaçar seu reinado no futuro.
Foi a mesma escola frequentada por Leonel Brizola e tantos outros da mesma
estirpe, como Juan Perón (que chegou ao auge de indicar as esposas como
herdeiras políticas) e Getúlio Vargas (que, para evitar a popularidade de João
Goulart, chegou a demiti-lo em 1953 do posto de Ministro do Trabalho quando ele
anunciou que estudava dar um aumento de 100% no salário mínimo apenas para,
meses depois, anunciar pessoalmente o mesmo aumento): à sombra do líder
populista, nenhuma liderança nova viceja. A face passional da esfinge jânica
garantiu isso: sempre que despontava no PT alguma liderança capaz de rivalizar
com Lula da Silva, sua cabeça era cortada, como bem deve se lembrar Eduardo
Suplicy; e, além disso, sempre que fosse necessário sacrificar alguém para que
Lula da Silva permanecesse imaculado perante a opinião pública, a degola era
imediata, como bem deve se lembrar José Dirceu. Em bom português, todos os
aplausos para o PT terim de ser aplausos para Lula da Silva. Um psicólogo
poderia traçar inúmeras teorias acerca da origem dessa obsessiva busca por
aplausos, essa necessidade de aceitação; para nossa análise, basta saber que
ela existe – e domina todos os aspectos da vida pública de Lula da Silva. Há um
episódio basilar que ilustra bem o quanto a busca pela admiração da plateia
afetas as decisões de Lula da Silva: quando era um líder operário em ascensão,
no final da década de 1970, Lula da Silva comandou uma muitíssimo bem-sucedida
greve geral dos metalúrgicos, despontando como um líder moderado, com quem
tanto o governo quanto os empresários consideraram ser possível negociar. E
negociaram: Lula da Silva conquistou o que havia pedido para os metalúrgicos na
mesa de negociações – os empresários cederam como demonstração de boa-fé. E,
nesse momento, o lado passional da esfinge jânica aflorou: quando foi anunciar
na porta da fábrica que as demandas haviam sido atendidas e que, portanto, a
greve teria de ser encerrada, Lula da Silva notou uma decepção na audiência.
Ato contínuo, a face pragmática cedeu lugar à face passional: ele retomou a
palavra para anunciar que a greve continuaria. Simplesmente, pelos aplausos ele
decidiu não mais cumprir o acordado por ele pouco antes com os patrões. Ganhou
aplausos à custa da responsabilidade, da honestidade e da seriedade – e, dali
em diante, não seria mais reconhecido como um líder moderado, mas como um mero
oportunista. Foi a primeira manifestação pública de um comportamento que o
persegue até os tempos hodiernos. Ao somar a busca ao aplauso a qualquer custo
com a prática populista de concentrar em sua pessoa todas as virtudes, Lula da
Silva meteu os pés pelas mãos inúmeras vezes: depois que a ditadura deu lugar à
democracia e o PT que ele fundou tornou-se uma das principais forças políticas
do Brasil sob seu comando, esse padrão se repetiria com triste insistência – o
partido não participou da eleição de Tancredo Neves, votou contra a
Constituição de 1988, foi contra a abertura da economia de Collor de Mello, boicotou
o Plano Real de Itamar Franco, votou contra a Lei de Responsabilidade Fiscal de
Fernando Henrique Cardoso etc. O PT foi espelho perfeito de seu capitão-mor,
visando apenas o interesse próprio. Agora, com o governo de Dilma Rousseff
derretido, aparentemente a face pragmática da esfinge jânica retomou o comando.
Até quando, nunca se sabe: a face passional está sempre à espreita. Não há como
prever o que uma esfinge comum fará. Muito menos uma esfinge jônica. E barbada.
Lula da Silva está indecifrável como sempre, mas com menos poder de devorar os
adversários do que nunca.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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