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Medz Yeghern




Por Pedro Nascimento Araujo

Recep Tayyip Erdoğan não é um político qualquer na Turquia. Ele tem liderança incontestável junto aos diversos segmentos da sociedade turca. Apesar de às vezes ser visto no Ocidente como islamita, trata-se de uma visão reducionista de sua atuação. A Turquia evoluiu bastante desde o golpe militar de 1980: é um país democrático em desenvolvimento com números robustos para mostrar – e grande parte disso pode ser atribuída ao período de Erdoğan como Premier do país. Por mais que no país haja divergências internas entre seitas islâmicas (e entre o Islã e outras religiões), não se configuram discriminações ou conflitos sectários como os que ocorrem na vizinhança. A relação com Israel, mais caracterizada por cooperações na área de segurança, embora mais discreta do que de costume, continua firme sob Erdoğan. A Turquia chegou mesmo a exibir os músculos como negociador em um dos grandes temas da política internacional, a situação do programa nuclear persa: atuando junto com o Brasil na natimorta Declaração de Teerã (2010), o país mostrou capacidade de negociação – embora a capacidade de implementação da dupla Ancara-Brasília não se tenha provado suficientemente forte para que as grandes potências encapassem o resultado da empreitada. O país parece mais confortável com a posição de parceiro diplomático e político da União Europeia do que como membro do bloco, como havia sido a orientação da política externa por muito tempo, uma prova contundente da maturidade e da independência da Turquia. Então, por que um país democrático, próspero, forte, maduro e seguro, sob a liderança de um político forte, maduro e seguro, não pode reconhecer os erros de seu passado? Por que a Turquia se recusa a admitir que, durante sua encarnação como Império Turco-Otomano, perpetrou o Medz Yeghern (Genocídio Armênio, com duração de 1915 a 1923 e com um milhão e meio de mortos da minoria cristã ortodoxa), cujo fato inicial completa um século nesta semana?

Ao se recusar a assumir seu papel no Medz Yeghern, a Turquia escolhe o lado errado da história. O termo alemão Vergangenheitsbewältigung significa fazer as pazes com o passado. É usado para se referir ao papel alemão na Shoah (Holocausto). A Alemanha reconheceu todos os seus erros. Mais do que reconhecer, a Alemanha tomou medidas de reparação mediante seus fatos ilícitos do período nazista quando indenizou países e pessoas (em muitos casos, indenizações simbólicas, que tiveram o incomensurável peso moral do reconhecimento de erros do passado), tratou de não deixar o assunto ser esquecido pelos seus (tanto por meio da educação formal, aonde os crimes nazistas são ensinados a todos os alemães, quanto por meio de cerimônias públicas oficiais em datas e locais significativos para a Shoah), cuidou de evitar que acontecesse de novo por criminalização de apologias ao nazismo e, por fim, procurou manter uma relação de paz com os países cujos povos foram vítimas de suas atrocidades, notadamente Israel – é tradicional a presença de representantes alemães em atos de memória da Shoah. Esse é o caminho certo: o caminho que o Vaticano adota em relação aos erros do passado, o caminho que a África do Sul seguiu na Comissão da Verdade e Reconciliação, o caminho da humildade e da humanidade, com reconhecimento e expiação dos pecados cometidos pelo país no passado – afinal, os países têm permanência internacional, independentemente do grupo político que esteja no controle: a Alemanha não deixou de ser a Alemanha apenas porque Hitler mudou o nome, a bandeira e as leis internas do país quando estava no poder. Esse é o caminho que a Turquia, um país democrático, próspero, forte, maduro e seguro se recusa a seguir em relação ao Medz Yeghern – e aos armênios em geral. Mas, não. A Turquia segue outro caminho. A Turquia segue o caminho da Rússia. O país dos tzares não reconhece como crimes as perseguições de sua era soviética. Por exemplo, na Rússia até hoje o Holodomor (Genocídio Ucraniano, ocorrido entre 1932 e 1933 e que pode ter vitimado mais de 10 milhões de pessoas) não é visto como uma ação deliberada do governo soviético contra os ucranianos, mas sim um desastre natural. Os documentos que mostram as ordens dadas por Stalin para deixar morrer de fome os ucranianos são desconsiderados. Os livros de história do país não tratam do assunto como um genocídio, um erro do passado soviético. Aliás, para as novas gerações russas, o passado soviético é apresentado como róseo, sem as perseguições, genocídios, guerras e assassinatos que o caracterizam. Os símbolos soviéticos são usados em cerimônias oficiais e nenhum líder russo se dignou a pedir perdão publicamente pelos erros cometidos pelo seu país em um passado cada vez mais remoto. É a mesma situação do Japão em relação ao seu passado imperial ou da China em relação ao período maoísta. Eis as companhias da Turquia na negação dos erros do passado: Rússia, Japão e China, países que perpetraram horrores aos seus vizinhos e não têm a grandeza de reconhecê-los, o que só aumenta o temor de que não terão como garantir que tais atrocidades se repitam.

A Turquia está perdendo uma chance histórica de renovar suas credenciais com a parte do mundo que preza os direitos humanos. O momento não poderia ser mais propício em termos tanto de política interna (a liderança forte de Recep Tayyip Erdoğan) quanto de política externa (o centenário do Medz Yeghern) para uma guinada rumo a um futuro de paz com o passado. As provas são mais do que contundentes – as ordens dadas pelo governo mandando perseguir e executar os armênios são incontestáveis e o argumento de que guerrilhas armênias ameaçavam a integridade do país são risíveis. Por fim, o confisco dos bens dos armênios mandados para a morte é um expediente desconfortavelmente semelhante ao que os alemães fizeram com os judeus para ser ignorado, assim como os estupros sistemáticos a mulheres e meninas. Pedir perdão pelos erros do passado é justo e necessário, mas a Turquia precisa querer fazê-lo. E, aparentemente, não o quer. Quase um século de negação sistemática do Medz Yeghern cobraram seu preço. Há uma lei no país que proíbe que o Medz Yeghern seja chamado pelo que é: genocídio. As novas gerações turcas não reconhecem o fato e as discriminações contra os armênios (cristãos ortodoxos) são uma constante no país, que, em geral, é caracterizado pela coexistência pacífica entre religiões distintas. Não ajuda o fato de países como Estados Unidos e Brasil se recusarem a chamar o Medz Yeghern pelo que foi, embora nações como França e Argentina já o façam. Mas isso pode estar mudando: o Papa Francisco, em audiência com o Patriarca Karerin II da Igreja Armênia, exortou o mundo a reconhecer o Genocídio Armênio. A reação da Turquia foi virulenta, com Erdoğan dizendo que iria “advertir” o Sumo Pontífice a não se pronunciar sobre o assunto. É pregar no deserto. Primeiro, porque Francisco não se restringirá por conta de “advertências” de político algum no mundo; segundo, porque, após a fala de Francisco, o tema ganhou repercussão maior no mundo, com pressões em países com grandes populações cristãs, como o Brasil, para aceitar oMedz Yeghern. A Alemanha capitulou na semana passada: o Bundestag (Parlamento Alemão) reconheceu o genocídio, deixando a Chanceler Angela Merkel sem condições políticas de continuar se negando a reconhecê-lo – o silêncio sobre o assunto era uma tradição política alemã para evitar perda de votos na grande comunidade turca que vive no país. A União Europeia também reconheceu o Medz Yeghern. A Turquia opta por um nacionalismo retrógrado e isolacionista. Especialmente após a fala do Papa Francisco, perde a grande chance de aumentar sua legitimidade na defesa de minorias cristãs ameaçadas por radicais islâmicos. Em suma, a Turquia não ganha coisa alguma mantendo a negação ao Medz Yeghern e Recep Tayyip Erdoğan ganha apenas a manutenção de popularidade efêmera diante dos ultranacionalistas. É muito pouco para honrar a tradição de tolerância que caracterizava o Império Turco-Otomano e caracteriza a Turquia. Uma chance como essa, só daqui a 100 anos, quando soaria ainda mais despropositada uma negação ao Medz Yeghern.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

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