Resistência
civil pacífica
Pode soar estranho no mundo
ocidental, mas o cristianismo é a religião mais perseguida no mundo atualmente.
Como um terço da população mundial é cristã (mais de dois bilhões de pessoas,
dos quais pouco mais de um bilhão de católicos), é difícil enxergar o
cristianismo como minoria com base puramente nos números, conforme veremos.
Especificamente, cristãos são minoria em muitas áreas do mundo, como o Oriente
Médio, o Sudeste Asiático e a África subsaariana. Especificamente nesta, há
casos díspares: lá estão o país com menor proporção de cristãos no mundo
(Somália, aonde os cristãos correspondem a 0,01% da população, é um local que
encarna a perfeita definição de livro-texto de failed state – na
prática, é um país no qual o governo não controla coisa alguma além dos muros
do palácio) e países com grande proporção de cristãos (Quênia, com 85% de
cristãos, proporção próxima à de 90% do Brasil e maior do que, por exemplo,
Estados Unidos da América, que têm 75%). Todavia, tanto o 0,1% de cristãos
somalis quanto os 85% de cristãos quenianos sofrem perseguição por parte de
jihadistas do al-Shabab (formalmente, Harakat al-Shabaab
al-Mujahidin), grupo terrorista que atua fortemente na região (chegou a
controlar a maior parte do sul da Somália em 2006 e 2007, até ser expulso da
região por tropas do Egito e da Etiópia) há anos. No Quênia, podemos citar como
obras do al-Shabab o ataque armado a um shopping na capital Nairóbi
em 2013 (67 mortos) e o massacre de 148 pessoas na Universidade Garissa em
2015. Para além desses atentados mais famosos, o al-Shabab atua muito
por meio do sequestro de ônibus, quando executa não muçulmanos – e, em se
tratando do Quênia, leia-se cristãos. Sim, é uma forma doentia de pensar: na
lógica do al-Shabab, matar cristãos faria com que os cristãos se convertessem
ao islamismo – presumivelmente, seus líderes nunca leram sobre os cristãos
martirizados no Coliseu em Roma que rezavam para Jesus enquanto eram devorados
por leões ou queimados como tochas humanas. Em 2014, 28 professores cristãos
que estavam em um ônibus em Mandera em 2014 foram assassinados – o al-Shabab,
naquela ocasião, fez o que sempre faz: aponta armas para a cabeça das pessoas e
pergunta se são muçulmanas ou não. Se a resposta é positiva, deixam viver; se é
negativa, matam na hora – e, assim, mataram todos os 28 cristãos que estavam
naquele ônibus. Há uma semana, o al-Shabab sequestrou mais um ônibus
que seguia de Nairóbi para Mandera. Repetiu a ordem, sob a mira de pistolas e
fuzis, para que as pessoas declarassem suas fés. Desta vez, porém, algo deu
errado: os muçulmanos se recusaram a ser separados dos cristãos e, segundo
relatos, disseram aos terroristas para escolher entre “matar todo mundo junto”
ou “deixar os cristãos em paz”. Por essa, o al-Shabab não esperava:
resistência civil pacífica contra o jihadismo. Os jihadistas ainda de mataram
duas pessoas que se recusaram a declarar suas fés, mas logo ficou claro para os
jihadistas que a única solução seria matar todos os ocupantes do ônibus –
incluindo os muçulmanos. Diante desse cenário, fugiram.
O que os passageiros do ônibus de
Nairóbi a Mandera fizeram se encaixa perfeitamente na definição ampla de
resistência civil pacífica. Trata-se de um guarda-chuva imenso, que abarca
desde os cristãos levados para morrer no Anfiteatro Flávio há dois milênios até
os americanos que se recusavam a seguir as Leis Jim Crow do Sul nos
anos 1960, passando por Mohandas Gandhi e muitos, muitos outros. A lista é
enorme, os motivos são variados, mas o resultado é sempre o mesmo: o opressor
perde, o exemplo da resistência civil pacífica inspira mais e mais pessoas até
a opressão implodir pelo peso de sua própria inconsistência. Afinal, como lutar
contra quem não quer lutar? Como justificar o uso da violência se não há
resposta violenta para as agressões perpetradas? Como sustentar o discurso de
defesa do islã quando se mata indiscriminadamente muçulmanos e não muçulmanos?
A principal força da resistência civil pacífica dá-se na conquista de corações
e mentes. Quando se atira contra pessoas desarmadas, simplesmente perde-se
qualquer razão. Foi essa a situação naqueles momentos terríveis dentro do
ônibus no Quênia: os passageiros muçulmanos entenderam que se declarar
muçulmanos diante do al-Shabab equivaleria a serem cúmplices no
assassinato dos cristãos. Seria correto, para salvar o próprio pescoço,
entregar os pescoços de outros? Os passageiros muçulmanos decidiram que não
seria correto serem coniventes com o al-Shabab – e se recusaram a
declarar suas fés. Se o que ocorreu naquele ônibus no Quênia se confirmar como
o marco inicial de uma tendência de resistência civil pacífica ao jihadismo,
então o mundo finalmente tem esperanças reais de vencer esse mal.
Obviamente, há muita gente contra
a resistência civil pacífica contra o terrorismo islâmico, a começar pelos
próprios jihadistas e seus seguidores, mas também há resistência por parte de
muçulmanos moderados que são coniventes com atos extremistas. Uma das coisas
mais difíceis de se obter do mundo islâmico é uma condenação a atos terroristas
que não venha acompanhada por uma oração adversativa. Em geral, todos condenam
os atos para, em seguida, relativizá-los, com uma explicação qualquer,
geralmente culpando as vítimas – nem sempre de forma sutil. Aliás, isso também
ocorre em meios não religiosos. Particularmente, o discurso sobre buscar as
chamadas “causas profundas” do terrorismo, ratificado por ninguém menos do que
Dilma Rousseff, embasa as declarações do Itamaraty acerca do tema. O terrorismo
é condenado até a vírgula, quando passa a ser relativizado por uma oração
adversativa – e, portanto, passa a ser relativizado. É um erro no qual o Brasil
incorre, mas não é uma exclusividade nacional: muitas nações cometem o mesmo
equívoco em diferentes matizes. Mas, principalmente, esse é um equívoco muitos
comum a líderes muçulmanos. O islã não é uma religião centralizada como, por
exemplo, o cristianismo, que tem metade de seus fiéis sob comando do Papa e a
outra metade sob comandos unificados de diversas denominações – no islã,
qualquer líder religioso tem o poder de emitir decreto religioso (fatwa) com
força de lei canônica. Isso, obviamente, dificulta uma resposta unificada
contra o jihadismo, mas não a impede. Se, no entanto, faltam às lideranças
islâmicas uma condenação contumaz contra o jihadismo (ou seja, uma que não
venha acompanhada de uma oração adversativa após a vírgula), é possível que a
solução esteja nascendo dos próprios fiéis maometanos, como no caso do ônibus
no Quênia. Se os muçulmanos se recusarem a se identificar como tais diante das
armas dos al-Shabab da vida para serem cúmplices do assassinato de
cristãos, eles acabarão com a possibilidade de as declarações de lideranças
islâmicas contra o terrorismo continuarem eivadas de orações adversativas. Com
a resistência civil pacífica dos muçulmanos, o terrorismo muçulmano
simplesmente perde o discurso. Ainda é cedo para afirmar que o que ocorreu no
ônibus queniano terá a força simbólica e inspiradora do ato de desobediência
civil pacífica de Rosa Parks em um ônibus do Alabama segregacionista em 1955.
Talvez não, mas, ainda assim, o que ocorreu no Quênia é um fato que deve ser
notado: foi o primeiro relato da resistência civil pacífica contra o jihadismo.
Se vai ganhar força agora ou apenas daqui a muitos anos, ainda não sabemos –
mas, se a história nos ensinou algo, podemos afirmar isso: em algum momento, a
resistência civil pacífica contra o jihadismo vai ganhar força e, mais cedo ou
mais tarde, vai vencer.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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