Um
gigante diplomático
Papa Francisco. Eis o gigante da
diplomacia atual. Curiosamente, ele não deveria ser um nome de peso. Primeiro,
porque trata-se do último rei absoluto do mundo: no Vaticano, ele é chefe de
estado, de governo, do poder judiciário, moderador ou qualquer outro que tenha
existido, exista ou venha a existir – uma contradição em um mundo no qual a
maioria das pessoas vive em democracias e briga para que a minoria também o
faça. Mais curiosamente, trata-se do soberano do mais liliputiano dos estados
do mundo, a Cidade do Vaticano – e, em geopolítica e diplomacia, território
importa. Não tem poder econômico – e, em geopolítica e diplomacia, dinheiro
importa muito. Pior ainda, não tem exércitos – e, em geopolítica e diplomacia,
poder militar importa muito mais, embora isso sempre evoque a famosa pergunta
de Joseph Stalin, um dos maiores facínoras da humanidade, quando tentou
desmerecer a importância dos papas: “Quantas divisões tem o Papa?” A resposta,
Stalin não viveu para ver. João Paulo II, sem um soldado sequer, foi crucial
para vencer todos os exércitos que seus sucessores tiveram – a participação do
Papa polonês no desmonte do comunismo foi crucial. Na verdade, Stalin nem mesmo
viu a atuação diplomática de João XXIII na Crise dos Mísseis, crucial para que
a humanidade não enfrentasse uma guerra termonuclear entre americanos e
soviéticos. Dá apenas para imaginar o espanto de Stalin se visse o que Jorge
Bergoglio se tornou em termos diplomáticos, uma atuação coroada na viagem aos
Estados Unidos que ele encerrou nesta semana.
O termo “anão diplomático” traz
más lembranças ao Brasil – e não falo do infeliz e grosseiro comentário feito
por um porta-voz da Chancelaria israelense, mas do nome que se deu no próprio
Itamaraty à atuação internacional brasileira durante o governo de Washington
Luís, com a chancelaria de Otávio Mangabeira. Foi um período no qual o Brasil
tomou atitudes inacreditáveis, como recusar um convite da Alemanha para
transformar as respectivas legações em Berlim e no Rio de Janeiro em embaixadas
– o Brasil alegou falta de dinheiro para tanto. O Brasil simplesmente não
compareceu a uma arbitragem para a questão que se transformaria na Guerra do
Chaco entre Paraguay e Bolívia (1932-1935). Mesmo um convite para uma visita
presidencial à Argentina foi recusado. Estudiosos mais generosos costumam se
referir a esse período como um isolamento autoimposto, mas o termo que pegou
mesmo foi “atuação de anão diplomático”. Pois bem: Francisco é o oposto de um
anão diplomático. É um gigante. A mediação papal é tradicional – já citamos
João XXIII, mas João Paulo II também mediou uma questão internacional
importante, a Questão do Canal de Beagle, que quase levou a uma guerra entre a
Argentina e o Chile (depois, os argentinos, que buscavam um fato positivo
internacional para legitimar a ditadura, decidiram fazer uma bravata contra os
kelpers das Ilhas Falklands e deu no que deu: uma surra histórica). Francisco,
que já tinha em comum com João XXIII e com João Paulo II o fato de ter sido
“Homem do Ano” da revista Time (nada para se orgulhar muito: em 1938, Adolf
Hitler ganhou o título, seguido por Joseph Stalin em 1939, ano no qual ambos
iniciariam a II Guerra Mundial com a invasão e partilha da Polônia), tem algo
mais palpável em comum com eles: mediou a retomada das relações diplomáticas
entre Washington e Havana. Ele obteve êxito na aproximação cubano-americana,
algo que presidentes de virtualmente todos os países da América Latina vinham
tentando fazer há meio século. E não foi “só” isso.
A visita de Francisco aos Estados
Unidos não foi uma visita qualquer. Foi uma Visita de Estado, daquelas que o
Brasil só teve em 1995, com Fernando Henrique Cardoso, e que Dilma Rousseff,
emulando o nanismo externo de Washington Luís, recusou em 2013: Francisco teve
uma intensa agenda com o Presidente e com o Congresso dos Estados Unidos da
América. Isso é digno de nota – e, para entender a importância simbólica disso,
é necessário retornar até o início do século passado. Mais precisamente, 1928,
ano no qual a diplomacia anã de Washington Luís estava em seu auge de
mediocridade. 1928 Foi ano de eleição nos Estados Unidos. E havia um candidato
democrata muito forte, o governador de Nova York, Al Smith. Smith era católico.
E não é exagero dizer que ele perdeu a eleição para Herbert Hoover por ser
católico. Como se sabe, o ethos dos Estados Unidos tem forte ligação
com as perseguições religiosas na Europa sofridas pelos pioneiros. Não foi
difícil para protestantes espalharem que, se Smith vencesse, quem mandaria de
fato no país seria o Papa. A rejeição ao Papa é um item tão americano quanto a
torta de maçã: todos não católicos viam o Papa como a quintessência de uma
ditadura religiosa, e isso incluía de protestantes a maçons, da Ku Klux Klan a
Testemunhas de Jeová. Na verdade, os Estados Unidos tiveram apenas um
presidente católico, John Kennedy. Quando Kennedy foi visitar o Papa, foi
explicitamente advertido por seus assessores para não inclinar-se diante dele
ou beijar-lhe a mão, pois isso poderia passar a impressão para os eleitores
americanos de que o Papa mandava nele, algo que havia sido ventilado na
campanha eleitoral – e até hoje não se sabe se Kennedy se abaixou na audiência
privada. Com um histórico desses, é fabuloso que Francisco tenha sido convidado
a falar em sessão conjunta no Congresso Americano durante sua Visita de Estado.
E lá, no Capitólio, ele deu mostras de porque é tão incensado: defendeu a livre
iniciativa e as virtudes do engenho humano, algo que soou como música para a
direita, e criticou o egoísmo na acumulação de capitais, algo que soou como
música para a esquerda. Agradou e criticou a todos, ressaltando a importância
do diálogo e da cooperação para que uma economia fundada no egoísmo se torne
uma economia capaz de servir ao próximo. Outro ponto crucial foi uma crítica ao
lucro com o comércio de armas, feita no país que é o maior exportador de armas
do mundo: Francisco disse que é um dinheiro “encharcado de sangue, muitas vezes
de inocentes”. A defesa dos refugiados também não ficou de fora, com o Papa
lembrando que “não devemos vê-los como números, mas como pessoas” e sermos
solidários. Por fim, quando esperavam uma posição sobre o aborto, Francisco não
mencionou a palavra: falou apenas que é importante “proteger e defender a vida
humana em todas as fases do seu desenvolvimento” para, em seguida, completar
pedindo a “a abolição global da pena de morte”. Genial e preciso em tudo,
mereceu ser aplaudido de pé. O discurso na íntegra é facilmente encontrável na
internet. Uma leitura que vale por uma aula de política externa.
A visita de Francisco aos Estados
Unidos foi a primeira do Papa a uma potência mundial. Vale lembrar que antes
ele esteve em países como Brasil, Filipinas, Coreia do Sul, Bolívia e Cuba,
evidenciando, na prática, seu compromisso com os menos afortunados – bem como
suas atitudes espartanas, como usar carros quase populares etc. Na verdade, a
própria visita aos Estados Unidos foi a reboque de outra também voltada ao
interesse geral: seu discurso na Organização das Nações Unidas. Este foi o
ponto alto de sua viagem e expressão máxima de sua grandeza diplomática. Para
quem não viu ao vivo, a leitura do discurso é mais do que recomendada – também
é facilmente encontrável na internet. Nas Nações Unidas, além de demonstrar ter
esperança de que as Metas de Desenvolvimento Sustentável possam melhorar a vida
de muitas pessoas, Francisco assumiu seu papel de grande promotor do combate às
mudanças climáticas – e por uma excelente razão cristã: as mudanças climáticas
afetam prioritariamente os mais pobres. Para Francisco, as dores do planeta e
as dores dos pobres são interconectadas. Ele escreveu sobre isso na Laudato
Si, sua segunda encíclica, e simplesmente levou a discussão acerca da mudança
climática a um novo patamar: é um tema central na agenda do líder de mais de um
bilhão de cristãos católicos e que influencia, em maior ou menor grau, outro
bilhão de cristãos não católicos, além de ser acompanhado e conhecido por
virtualmente todos os não cristãos do mundo. Por isso, é lícito imaginar qual
será a importância de um Papa falando sobre a necessidade de se chegar a um acordo
robusto na COP XXI que ocorrerá em Paris em dezembro deste ano? O quanto do
sucesso do acordo climático global que está a caminho se deverá a Francisco?
Ninguém saberá responder com exatidão. O Vaticano, que sem exércitos foi
fundamental para derrotar o Império Soviético, não é exatamente relevante em
termos de emissão de carbono; provavelmente, é o menor emissor do mundo – e,
todavia, Francisco pode ser fundamental para que o mundo realmente tenha um
acordo climático que valha a pena. É um gigante diplomático que só faz crescer.
Vê-lo em ação é um privilégio.
Pedro Nascimento Araujo
é economista.
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