Por Pedro Nascimento Araujo
Há dois meses, a estrutura lógica
utilizada por William Shakespeare em suas peças (Apresentação, na qual os
leitores conhecem as personagens e seus conflitos; Escalada, na qual as reações
das personagens aos conflitos levam às complicações que exigirão definições;
Inflexão, na qual as personagens e as circunstâncias mudam, perfazendo as ações
que serão o ponto focal da peça. Solução, na qual os conflitos e suas
complicações são resolvidos, para o bem ou para o mal; e Conclusão, na qual se
chega a um termo, tanto progressista quanto reacionário) foi utilizada para
fazer uma análise acerca da situação da segurança pública no Rio de Janeiro.
Naquela ocasião, José Mariano Beltrame, Secretário de Segurança, teve seu momento
comparado à Inflexão, ápice das tramas, quando circunstância e ações forçam a
personagem principal a decidir seu futuro. No caso de Beltrame, a Inflexão era
sua decisão diante das tentativas gêmeas de bandidos (retomar os territórios
pacificados) e de políticos (minar a credibilidade) para acabar com as Unidades
de Polícia Pacificadora. Diga-se, a bem da verdade, que, ao menos até o
presente momento, Beltrame se tem saído bem: não se deixou intimidar e,
principalmente, teve a grandeza de ser humildade para pedir reforços a tropas
federais – na prática, está conduzindo sua Inflexão para o que, nas obras do
bardo, seria uma Conclusão progressista, marcada pelo surgimento de uma nova
ordem social. Mas surgiu outra Inflexão shakespeariana no Rio de Janeiro, mais
especificamente na capital, cidade administrada por Eduardo Paes. Ela atende
pelo nome de Favela da Telerj e é a primeira a ser vista nascendo e crescendo
em tempo real por todos. A ação do alcaide diante dela será decisiva para
sabermos se ele será lembrado como o prefeito que restaurou a ordem no Rio de
Janeiro ou como mais um populista, independentemente da histórica reforma
urbana que ele está realizando na cidade.
Se o nascimento da Favela da
Telerj pôde ser testemunhado por qualquer um com acesso às onipresentes fotos
de satélite, sua concepção também deve muito à tecnologia: foi por meio de
redes sociais que aproximadamente 5 mil pessoas se deslocaram para o terreno na
Rua Dois de Maio (Engenho Novo), de propriedade da Oi, herdeira do espólio da
nada saudosa Telerj. Majoritariamente, os invasores não são moradores de rua
(mesmo descontando o fato de moradores de rua dificilmente possuírem acesso às
redes sociais), mas pessoas que já possuem moradias em favelas próximas e que
viram na bem orquestrada invasão uma chance de ou se ver livre do aluguel ou
(sem ironia) passar a viver de aluguel. Porém, ainda que a maioria fosse de
moradores de rua (vale lembrar: não é), a invasão de uma propriedade privada é
um crime, mas muitos políticos simplesmente fazem vistas grossas para pessoas
vivendo de forma precária e ilegal – o maior exemplo, sem dúvidas, é Leonel
Brizola: quando governador, ele inaugurou com pompas obras do governo estadual
no Morro do Bumba, favela construída sobre um lixão que desabou em 2010,
matando 267 pessoas. Na cabeça dos populistas, é preferível levar uma torneira
(a obra inaugurada por Brizola era de abastecimento de água) a construir
moradias decentes e seguras, respeitar as leis de ocupação do solo e cumprir o
dever de proteger a propriedade privada. Por sua atitude diante da Favela da
Telerj, que surgiu em 31-Mar-2014 (curiosamente, exatos 50 anos após o Golpe
Civil-Militar que derrubou João Goulart, cunhado de Leonel Brizola), será
decidido se Eduardo Paes é populista ou não.
A prefeitura tem papel crucial na
decisão sobre o futuro da Favela da Telerj. Em reuniões, como a convocada pela
Justiça no Fórum do Méier para 08-Abril-2014, envolvendo o Terceiro Batalhão da
Polícia Militar (Méier), o Corpo de Bombeiros Militar, representantes das
secretarias estadual e municipal de áreas sociais (Saúde, Habitação,
Desenvolvimento Social e Direitos Humanos), da Defensoria Pública, do Conselho
Tutelar e das Procuradorias estadual e municipal, se tentará chegar a um
consenso. O apelo populista é forte e possui raízes particularmente sólidas no
Rio de Janeiro. César Maia, o antecessor e mentor político de Eduardo Paes,
permitiu a expansão de favelas de grande porte como a Rocinha (que literalmente
virou o morro e, pela primeira vez desde que Carlos Lacerda removeu as favelas
da Lagoa, como da Praia do Pinto e a da Catacumba, barracos voltaram a fazer
parte da paisagem daquele bairro) e o Vidigal, cujo crescimento ele tentou
esconder com retoques digitais em fotos de publicidade da cidade, um sintoma
patético da mais patética política habitacional jamais feita no Rio de Janeiro.
César Maia, por sua vez, teve como mentor ninguém menos que Leonel Brizola
(aquele cujo vice, Darcy Ribeiro, dizia que “favela não é problema, é
solução”). É uma longa linhagem, à qual podemos acrescentar ainda Negrão de
Lima e outros. Em última análise, a posição de Paes acerca da Favela da Telerj
será a mais importante: se a Prefeitura do Rio de Janeiro (a mesma que criou e
popularizou a expressão “Choque de Ordem”) quiser que a ordem seja
reestabelecida, ela sê-lo-á e a Favela da Telerj não vingará. Se não, restará
claro que a ordem só interessa a Paes quando não envolve perda de votos.
Inflexão shakespeariana é isso: todo o resto perde importância diante de uma
decisão. Via satélite e em tempo real, o mundo está vendo a Favela da Telerj
crescer. Naquele terreno do Engenho Novo, será definido se Eduardo Paes é, ao
final das contas e apesar de todas as obras, apenas mais um político populista
ou não: cabe a ele e a ele apenas escolher sua Conclusão.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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