Por Pedro Nascimento Araujo
Em “Sobre a China”, Henry
Kissinger, uma das mais poderosas figuras políticas do Século XX, fez uma
análise retrospectiva sobre um dos maiores eventos geopolíticos do Século XX: a
aproximação sino-americana, da qual foi artífice. Resumidamente, não havia
relações diplomáticas entre Estados Unidos da América (EUA) e República Popular
da China (RPC) desde que o Kuomitang de Chiang Kai-shek foi expulso para Taiwan
em 1949 pelo Partido Comunista de Mao Zedong. Ao invés de reconhecer o governo
de Beijing, Washington reconhecia o governo de Taipei. Quando, durante a
presidência de Richard Nixon, a chamada “Diplomacia do Ping-Pong” (assim
chamada por ter sido iniciada com um imprevisto no torneio mundial de Nagoya em
1971: um atleta americano perdeu o ônibus e foi recebeu uma carona no ônibus
chinês que a imprensa mundial documentou) levou ao estabelecimento de relações
entre ambos os países, Kissinger esteve à frente do processo, realizando
encontros secretos e mesmo uma viagem secreta ao país comunista para pavimentar
a histórica visita de Nixon a Mao Zedong em 1972. O resultado foi
impressionante: EUA e RPC fizeram uma das mais inusitadas parceiras de que se
tem notícia: inimigos na Guerra do Vietnã (os chineses bancavam o Vietnã do
Norte e os americanos bancavam o Vietnã do Sul), os países uniram esforços para
combater um inimigo comum: a Rússia, então sob a bandeira do Império Soviético.
Para ilustrar o fato, ele apresenta o weiqi, um jogo de estratégia bastante
comum na China, e o compara ao xadrez: enquanto no weiqi o objetivo é cercar o
inimigo em todos os pontos (isso inclui uma opção de fuga, no mais puro estilo
descrito há milênios em “A arte da guerra”), deixá-lo sem opção de vitória e
forçá-lo a negociar a rendição sem confronto, no xadrez o objetivo é a vitória
total, com a destruição do inimigo simbolizada pela morte do rei, não importa
quantos sejam sacrificados para que tal objetivo seja alcançado. A alegoria é
clara: cercar demanda paciência, mas custa menos em termos de tudo o mais. Numa
época em que o Ocidente é indeciso como há muito não era, talvez seja mais
apropriado jogar weiqi que xadrez contra Putin I da Rússia: a ameaça do
Ocidente de jogar xadrez não convence mais ninguém há muito.
Henry Kissinger é um expoente do
pensamento realista nas relações internacionais, com seu livro “Diplomacia”
sendo uma referência no estudo do tema. Um judeu alemão que emigrou para os
Estados Unidos devido à perseguição nazista, Kissinger despontou de uma
brilhante carreira acadêmica em Harvard para ser o mentor da política externa
americana entre 1969 e 1977 (recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1973 por seus
esforços para encerrar a Guerra do Vietnã) e aplicou sempre um preceito básico
dos realistas: no plano internacional, todas as nações agem de forma semelhante
(buscam o poder), independente de seus determinantes de política interna: uma
ditadura, uma democracia, uma teocracia e mesmo uma anarquia agiriam de forma
análoga em situações análogas no plano internacional – ao mesmo tempo em que
uma nação age para maximizar seu próprio poder, ela faz alianças com outras
nações para impedir que uma nação alcance poder hegemônico. Assim, uma aliança
entre a RPC de Mao Zedong e os EUA de Richard Nixon seria não apenas natural,
como seria também inevitável conforme a Rússia se constituísse em ameaça
hegemônica a ambas as nações, independentemente de escaramuças nas selvas
vietnamitas: é essa a explicação de Kissinger para a aproximação sino-americana
que geraria a famosa Diplomacia Triangular, uma fracassada tentativa de
transformar o mundo bipolar em um mundo tripolar durante a Guerra Fria.
Kissinger buscava usar os chineses como mais uma fonte de atrito para os russos,
impedindo, com isso, o expansionismo soviético. Deu certo: a Détente teve dois
ápices: em 1972, com o SALT II (acordo que limitou os arsenais nucleares das
superpotências e proibiu o uso de mísseis de reentradas múltiplas independentes
– MIRV, que permitiam carregar vários mísseis nucleares Ar-Terra dentro de um
único míssil balístico intercontinental) e em 1975, com os Acordos de Helsinki
(que chegaram a envolver Direitos Humanos). Quatro décadas depois, quando já há
quem entenda o mundo como um condomínio sino-americano de poder econômico, os
russos voltam a representar uma ameaça à ordem mundial por meio de intervenções
na Ucrânia.
Putin I da Rússia age com cada
vez mais desenvoltura porque já aprendeu que Barack Obama não é sério a
respeito de “linhas vermelhas” desde que al-Assad usou armas químicas na Síria,
violando uma “linha vermelha” traçada pelo próprio Obama e nada aconteceu. Ele
desestabiliza a Ucrânia deliberadamente e sem se preocupar muito em esconder
suas ações – no máximo, envia tropas especiais sem com a bandeira russa
arrancada dos uniformes. Evidentemente, ele não faria isso caso a Casa Branca
estivesse sendo ocupada por um Ronald Reagan da vida; porém, ele sabe que Obama
não pode nem ser chamado de cão que ladra e não morde, pois Obama nem se digna
a latir. Então, ele age: ignora os acordos de garantia de integridade
territorial que a Rússia fez com a Ucrânia após o colapso do Império Soviético
para que os ucranianos renunciassem ao que era então o terceiro maior arsenal
nuclear do mundo e anexa a Crimeia manu militari. Agora, estimula separatismos
no leste do país para ou tornar Kiev um suseranato russo ou para criar um
cordon sanitaire à custa do leste ucraniano para manter a Rússia sem fronteiras
com a OTAN. A União Europeia, em plena crise de identidade (a permanência do
Reino Unido é incerta, a França parece cada vez mais à beira de um colapso
grego, a Alemanha parece ser grande demais para a Europa, a Grécia ainda não
tem perspectiva de recuperação, a Espanha pode se fragmentar, os políticos
xenófobos ganham espaço etc.) e dependente do gás russo, assim como os Estados
Unidos, também não vai enfrentar a Rússia em um tabuleiro de xadrez. Ao menos a
curto prazo, a única saída é jogar weiqi com a Rússia – nem que seja para
descobrir que a Rússia já vem jogando weiqi com o Ocidente desde que Putin I
assumiu o poder.
De fato, a atuação da Rússia na
Ucrânia se assemelha muito mais com uma sutil partida de weiqi do que com uma
agressiva partida de xadrez. Prova disso é que, até o momento, não foi possível
provar o envolvimento do Kremlin nas ações que ele executou. É a Rússia (quem
diria!) agindo sem afobação, dando a chance de a Ucrânia perceber que ceder à
pressão é opção melhor que resistir – uma mudança e tanto quando nos lembramos do
arrogante Império Soviético, que mandava tanques sem pudor. Obviamente, a
Rússia não mudou nem aleatoriamente nem instantaneamente. Ao longo do tempo,
Putin I foi entendendo que o uso da força de forma como forma de consecução de
política externa ostensiva geraria consequências econômicas graves (não deve
ter escapado a ele que a penúria na qual o Irã foi lançado após anos de embargo
levou os aiatolás à mesa de negociações) e consequências políticas ainda mais
graves, como sua vizinhança buscar a qualquer custo a proteção do Artigo 5º do
Tratado de Washington – a defesa coletiva da OTAN – o que isolaria
completamente a Rússia: weiqi na veia. Ele já havia feito isso antes: para
continuar bancando Bashar al-Assad na Síria (e evitar que a humilhação internacional
de ter traçado uma linha vermelha e depois ter claudicado levasse os EUA a
agir), criou uma rota de fuga por meio da destruição do arsenal químico sírio –
promessa não apenas difícil de cumprir (e sem impacto direto nenhum nos
combates de uma guerra civil que já matou mais de 150 mil pessoas), como também
garantidora da permanência de al-Assad como (vejam só!) fiador da destruição do
caro de manter e inútil (al-Assad já conseguiu o efeito de terror e de
permanência no poder desejado e não é tolo a ponto de fazer um massacre químico
no estilo daquele que Saddam Hussein fez contra os curdos por saber que, nesse
caso, uma reação internacional não poderia ser evitada) e, ironia das ironias,
capaz de colocar a Rússia, fomentadora e financiadora de al-Assad, como
defensora da paz e da segurança internacionais. Enquanto a Rússia está jogando
weiqi com o Ocidente como um mestre, o Ocidente continua pensando apenas em
jogar xadrez contra a Rússia – e nem o xadrez, jogo que domina e no qual é
imbatível, o Ocidente vem tendo coragem de jogar contra a Rússia. Putin I da
Rússia está vencendo por W.O.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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