Por Pedro Nascimento Araujo
Em demografia, há uma certeza
cristalizada: o modelo de transição demográfica descrito por Warren Thompson em
1929. Resumidamente, aquilo que ficou conhecido como a Fase II do Modelo de
Thompson analisa os efeitos demográficos da urbanização, popularmente conhecida
por Explosão Demográfica. Cabe uma explicação resumida do Modelo de Thompson:
ao analisar dados de países nos 300 anos anteriores, Thompson notou que há 4
Fases na dinâmica populacional de cada país – e mesmo da humanidade como um
todo. Assim, na Fase I, há alta natalidade e alta mortalidade, levando a
população a crescer pouco: um estágio quase natural, no qual a mortalidade
infantil é elevada e a expectativa de vida é baixa. Na Fase II, há migração
para as cidades: por mais que sejam precárias as condições, são melhores que no
campo (há hospitais, proteção contra elementos naturais etc.), e os novos
moradores urbanos enfrentam uma mortalidade infantil menor (mas com uma taxa de
natalidade ainda muito elevada) e uma expectativa de vida maior – é a Explosão
Demográfica, cujo maior marco é a população passar a ser majoritariamente
urbana. Especificamente, países de industrialização antiga como o Reino Unido
passaram por isso ainda no Século XIX (passou a ser mais urbano que rural em
torno de 1850 e Londres contava com mais de um milhão de habitantes) e o Brasil
passou por isso entre 1960 e 1970. Há ainda a Fase III, na qual a geração
seguinte, que já nasceu em meio urbano, tem menos filhos (Brasil: em média,
cada mulher tinha mais de 6 filhos nos anos 1960 e apenas 2 hoje) e vive mais –
é o chamado Bônus Demográfico, no qual a chamada razão de dependência (quantas
pessoas cada pessoa em idade ativa tem de sustentar, tanto crianças quanto
idosos) permite que fenômenos como o Milagre Econômico (1968-1973) ocorram. Por
fim, há a Fase IV, na qual há estabilização populacional (pouca natalidade e
pouca mortalidade), mas com envelhecimento e razão de dependência desfavorável,
como na Europa Ocidental e no Japão atualmente.
Conhecer o Modelo de Thompson é
importantíssimo porque, pela primeira vez, um país tenta não ser tragado por
ele: a China. O gigante asiático anunciou na última semana um ambicioso plano
para lidar com 200 milhões de pessoas (ou seja, a população do Brasil) se
mudando do campo para a cidade até 2020, levando o país a alcançar 60% de
urbanização até o final desta década – a China tem 1,4 bilhão de habitantes e,
embora tenha passado a ser majoritariamente urbana em 2008, hoje se estima que
54% dos chineses viva em
cidades. Mas a China é um país sui generis nesse sentido;
afinal, trata-se de uma ditadura cruel (talvez a mais cruel de todas) que fez
uma transição demográfica manu militari, graças a mecanismos odiosos como
passaportes internos (a lista de países que recorreram a tal expediente no
Século XX – Rússia soviética, Alemanha nazista e África do Sul do apartheid,
por exemplo – fala por si acerca de o quão odioso isso pode ser) que impediram
a migração para as áreas urbanas: decididamente, um país no qual habeas corpus
é um conceito solenemente ignorado. À parte as terríveis idiossincrasias
sofridas por quem vive sob a égide do Partido Comunista Chinês (PCC, em uma
infeliz – e irônica – coincidência de siglas), a experiência chinesa vislumbra
uma possibilidade única, da qual talvez possamos depreender algo: a China está
se preparando para que sua urbanização gere cidades maiores sem que isso gere
favelização e sem que haja Explosão Demográfica. É um desafio um tanto ou
quanto ingrato.
A ação chinesa pode ser resumida
como o básico do básico: planejamento. O primeiro fato foi admitir a
impossibilidade de continuar a ignorar os 250 milhões de chineses que já
fizeram a migração sem autorização: de algum modo, uma população maior que a do
Brasil driblou as restrições à mobilidade e vive ilegalmente nas regiões
urbanas chinesas. Ou melhor, como sói ser quando o PCC está no comando: apenas
100 milhões serão agraciados com o status de moradores urbanos e somados aos
outros 100 milhões que serão autorizados a viver em cidades até 2020 – com
isso, 150 milhões de chineses continuarão na kafkiana situação de imigrantes
ilegais em seu próprio país, sem acesso aos serviços básicos de saúde e de
educação. Coisas do PCC: em 2020, 60% dos chineses viverão em cidades e 45%
poderão desfrutar dos benefícios de viver em cidades. Restrições
à urbanização por meio de passaportes internos: Thompson nunca vislumbrou algo
tão surreal quando analisou os dados que levaram ao seu modelo.
Especificamente, há um dado ainda mais intrigante: a China já está vivendo o
final do chamado Bônus Demográfico – e o final do longo ciclo de crescimento
chinês nos últimos 30 anos é prova mais que contundente disso. Em 1979, Beijing
decidiu que os casais chineses só poderiam ter um filho – e usou todo o peso
totalitarista do estado policial que controlava para garantir isso. A chamada
Política do Filho Único foi um sucesso no papel (estimativas indicam que 200
milhões de pessoas deixaram de nascer na China nesse período) e um horror na
prática, com abortos seletivos por gênero (meninas) e abandonos (de meninas ou
de crianças com deficiências) em campos de morte antes do registro. Ainda
assim, a China conseguiu: a taxa de fertilidade chinesa hodierna é inferior à
taxa de reposição de 2,2 filhos por mulher. Isso significa que a China, à custa
de 200 milhões de potenciais abortos e abandonos, estendeu na marra o seu Bônus
Demográfico até onde foi possível.
No jargão demográfico, há uma
definição para a composição etária do país que mais parece uma escalação de
futebol: 4-2-1, significando que, em duas gerações de Política do Filho Único,
primeiro 4 chineses geraram 2 filhos que, por sua vez, geraram 1 filho. A razão
de dependência ficou baixíssima enquanto a primeira geração e a segunda geração
trabalhavam: na prática, 6 chineses tinham de prover o sustento de apenas 1
chinês. Isso levou a uma explosão de mão de obra que permitiu o surgimento do
maior exportador mundial. Uma geração depois, com o aumento da expectativa de
vida e aqueles 4 chineses se aposentando, 3 chineses terão de prover o sustento
de 4 chineses, e fica dramático uma geração depois, com 1 chinês tendo de
prover o sustento de até 6 chineses. Obviamente, é uma situação insustentável
para uma ditadura que se legitima pelos altos índices de crescimento econômico
– e a comparação com o Brasil do Milagre Econômico (tradução literal do
Wirtschaftswunder, milagre econômico alemão dos anos 1950 que se repetiria em
países díspares como França, Japão, Grécia, Chile etc.) – que invariavelmente
entraria em colapso se isso ocorresse. Em todos os países nos quais um
Wirtschaftswunder ocorreu, o Modelo de Thompson foi absolutamente coerente com
as observações: primeiro urbanização, depois Bônus Demográfico e por fim
Wirtschaftswunder. Na China, todavia, tivemos primeiro o Bônus Demográfico,
depois o Wirtschaftswunder e, agora, está ocorrendo a urbanização. O plano da
China ao fazer reversão da lógica (vale lembrar: à custa de potenciais 200
milhões de abortos e abandonos) era poder fazer uma urbanização suave, sem
pressões favelizantes. Agora que as famílias que estão querendo ir para as
cidades (e serão autorizadas a tal em número recorde em um país notabilizado
pelo uso de passaportes internos) já não têm mais de 2 filhos, a China aceita
fazer a urbanização. E se prepara para isso.
A urbanização para 200 milhões de
chineses até 2020 (de novo: ainda haverá ¾ da população brasileira – ou 150
milhões de chineses – vivendo humilhada como imigrantes ilegais nas cidades de
seu próprio país, sem acesso a saúde, moradia, habitação etc.) já está sendo
efetuada. O plano em si possui 30 capítulos, cobrindo desde a construção de
infraestrutura básica (moradias, ferrovias, rodovias, escolas, hospitais etc.)
até aspectos regulamentadores, como normas de edificação, de proteção ambiental
e de segurança pública para o país que deve ter mais de 1 bilhão de pessoas
morando em suas cidades antes da metade do século. Especificamente, o plano
traduz a percepção do PCC segundo a qual, uma vez que “todo país desenvolvido é
urbanizado”, a urbanização chinesa também é um passo crucial para “prosseguir
com os avanços sociais”. É uma tese para lá de controversa, além de ecoar um
mimetismo algo neocolonialista, mas sua principal fragilidade é a ambição das
metas em um país que está encerrando um Wirtschaftswunder e se preparando para
a Fase IV de Thompson, garantir o sustento de centenas de milhões de idosos:
toda cidade com mais de 200 mil habitantes deverá estar conectadas às malhas
ferroviária e rodoviária, e toda cidade com mais de 500 mil habitantes deverá
estar ligada ainda à rede de trens de alta velocidade – a mais extensa do
mundo, diga-se. Além disso, faz parte do plano a indenização e a remoção de
quase 5 milhões de pessoas vivendo em vilarejos rurais que acabaram engolfados
pelo crescimento das cidades e hoje assemelham-se a favelas, que receberão novas
moradias ao invés de suas atuais moradias precárias. Aparentemente, a China
está conseguindo vencer o determinismo de Thompson e criar uma urbanização sem
Explosão Demográfica – ou seja, sem inchaço das cidades, sem colapso dos
serviços públicos, sem caos da mobilidade urbana e sem favelização. O preço já
foi apresentado na forma de uma ditadura brutal que exige passaportes internos
e uma política de contração do crescimento populacional que custou potenciais
200 milhões de abortos e abandonos. A China pensa que venceu Thompson. Porém, a
estratégia da China esconde um ardil: a Fase IV está chegando, e milhões de
chineses terão de sustentar muitos milhões mais que estão envelhecendo. De seu
túmulo, contemplando a eternidade, Thompson está apenas aguardando o tempo
passar mais um pouco: ele sabe que será o vencedor final.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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