Comparar Donald Trump com Donald
Duck não é correto exceto em um ponto: o Donald dos quadrinhos, que mestres
como Carl Barks transformariam em um ícone da cultura popular global do Século
XX, e o Donald da televisão, que graças ao seu carisma se tornou conhecido
mundialmente e que é dono daquela que provavelmente é a mais inesperada das
vitórias eleitorais da história americana, de fato têm um temperamento
explosivo e imprevisível em comum. Geralmente, isso significa problemas (e
basta ter lido alguma história do pato para saber como o baixote brigão se dá
mal depois de suas explosões de raiva), mas há umas raras ocasiões em que se
ter um sujeito sanguíneo (resvalando no comportamento de bully) no comando da
Casa Branca pode ser interessante: quando há ameaças sérias à paz mundial. É
curioso porque, ao mesmo tempo em que Donald Trump é um pato manco (lame duck
no original, significa que ninguém mais no staff o respeita e a administração
segue como uma orquestra sem maestro: toca bem porque possui excelentes músicos
que conhecem suas partituras, mas não sai do lugar-comum porque falta
exatamente o maestro) em casa, é visto como uma ameaçadora águia no exterior.
Um pato topetudo manco ser um fator de estabilidade em um mundo tão conflagrado
é absolutamente contraintuitivo, mas é uma possibilidade real. Há, na questão
da paz e da segurança internacionais, alguns fatores de instabilidade que serão
pauta dos próximos meses e anos – curiosamente, dessa pauta não faz parte o
território controlado pelo Daesh, que já está em processo de implosão e
rapidamente vai-se tornando paulatinamente um grupo terrorista jihadista sem
relevância especial: as questões principais que tiram o sono dos estrategistas
ocidentais são três: Coreia do Norte, Oriente Médio (Síria principalmente, mas
não apenas), China, Rússia e Venezuela (perigosamente próxima de uma guerra
civil). Vejamos como um pato manco topetudo pode ser um trunfo em cada caso.
Todos os casos citados acima são
ditaduras, com a exceção de praxe feita a Israel na rubrica Oriente Médio. Isso
per se diz demais sobre a utilidade do pato manco topetudo. Ditadores não
respeitam líderes de democracias por definição – e nem precisamos recorrer ao
arcabouço teórico da tese da paz democrática (releitura hodierna da paz
republicana que Immanuel Kant divisou) para tanto. Ditaduras (pouco importa se
personalistas ou representantes de um grupo político) têm uma certeza na vida:
seus grupos políticos não disputam eleições e, portanto, há ausência de
alternância de poder, o que os permite simplesmente postergar ou antecipar
decisões de política externa como reação ao contexto internacional. Ditaduras
tendem a ter políticas externas muito previsíveis e monolíticas, sem pressões
de tempo. Nesse caso, podem dar-se ao luxo de se retrair quando sentem um
cenário hostil, com um presidente americano que pode colocar suas próprias
existências em risco – é sempre bom lembrar que o objetivo primordial de toda
ditadura é manter-se no poder. Assim, quando há um entendimento de que há em
Washington um presidente que pode fazer uso de seu poderio militar, os tiranos
tendem a se retrair. O melhor exemplo talvez seja o da ocupação da embaixada americana
em Teerã na esteira do golpe de estado que colocou a teocracia xiita no poder
em 1979: evidentemente, os ocupantes tinham o beneplácito do aiatolá Khomeini
para manter reféns os funcionários da embaixada americana. Corria o governo de
Jimmy Carter, encerrando uma década particularmente ruim para os americanos,
quando a notícia da ocupação da embaixada chegou. Carter, um homem que fez da
defesa dos direitos humanos seu legado para a humanidade, não quis fazer uma
ação militar aberta e escolheu a péssima ideia de fazer um raid com
helicópteros para resolver a situação no coração da capital persa. Foi um
fracasso tão grande que muitos analistas consideram que foi determinante para a
vitória de Ronald Reagan. Reagan tomaria posse no dia 20 de janeiro e, antes de
assumir, disse reiteradas vezes que iria buscar os reféns no Irã. A mensagem
era clara: uma intervenção militar que certamente não apenas libertaria os
reféns, mas também tiraria os aiatolás do poder, talvez com uma ocupação de
longa duração. Sendo a própria sobrevivência a primeira preocupação de qualquer
ditadura, não causou espanto quando os reféns foram libertados no dia 19 de
janeiro, exatamente na véspera de Reagan assumir. Ditaduras piscam quando o
risco é real. Algo semelhante pode estar acontecendo neste momento nos teatros
elencados acima. Senão, vejamos.
Comecemos com a Coreia do Norte.
O terceiro membro da ditadura hereditária cultiva os mesmos hábitos de seus
progenitores: ditadura brutal, campos de concentração, benesses para os militares,
luxo para si mesmo, retórica antiocidental, apoio tácito da China, intimidação
com armas para conseguir recursos. Mais do mesmo. Ocorre que, durante o governo
de Barack Obama, Kim Jong-Un botou as asinhas para fora e acelerou seu processo
de armamento nuclear, inclusive com testes de mísseis balísticos. Obama sempre
atuou com discrição e concertadamente no assunto para não colocar mais lenha na
fogueira. Com o pato topetudo manco, a coisa mudou de figura. Trump vem-se
metendo em ridículos bate-bocas com o ditador – e isso, por incrível que
pareça, isso faz o pequeno provocador recuar. Na verdade, depois que Trump, sem
planejamento algum, despejou uma chuva de mísseis sobre uma base aérea síria
operada por russos, todos os tiranos colocaram as barbas de molho, com o
norte-coreano à frente. Obama não apenas não ordenaria o ataque contra Bashar
al-Assad, como foi condescendente quando o tirano sírio de segunda geração
utilizou armas químicas, acintosamente cruzando a “linha vermelha” que o
próprio Obama traçou ex-officio. Na Síria, aliás, tem-se como certo que
al-Assad não mais recorrerá a armas químicas – dado o tamanho do ego do pato
topetudo manco, é bem possível que Trump se sentisse pessoalmente desafiado e ordenasse
uma ação militar de ocupação da Síria, o que acarretaria uma entrega de
al-Assad ao Tribunal Penal Internacional para ser julgado pelos seus
incontáveis crimes, isso caso ele escapasse do cruel destino tribal de ser
empalado vivo como foi o ditador líbio Gaddafi. A mesma imprevisibilidade e o
mesmo comportamento errático que levaram Trump a virar um inédito pato manco no
primeiro ano de governo são características que o fazem ser temido por tiranos.
Há mais.
Quando se pensa em Rússia, China
e Venezuela, o temor decorrente da imprevisibilidade das reações do pato
topetudo manco é maior, notadamente nas duas primeiras ditaduras. O
expansionismo chinês teve seu ritmo reduzido e Beijing está se contorcendo em
cólicas diante das medidas de reversão do déficit que Trump encomendou a seus
assessores. É curioso como o comércio, que a vertente realista das relações
internacionais considera um tema inferior (low politics, em oposição a defesa,
tema considerado high politics), é a arma preferida do Tio Sam. Logo que ficou
claro que os soviéticos não apenas não iriam devolver a soberania plena aos
países que ocuparam para recriar virtualmente o império dos tzares, como ainda
tentariam instalar governos títeres na Europa Ocidental, Washington
deliberadamente começou a fazer déficits com seus aliados para estimular o
crescimento econômico e, com isso, barrar o chamado Perigo Vermelho. A própria
aproximação com o regime genocida de Mao Zedong obedeceu a critérios
geopolíticos (aproveitar o cisma sino-soviético para manter a Beijing afastada
de Moscow), mas foi feita com critérios comerciais – na prática, gigantescos
déficits que permitiram a Zhong Hua virar a potência econômica atual (ainda que
com pés de barro) e sonhar com o restabelecimento da posição de Reino do Meio.
Interromper o rio de dólares significaria, em última análise, o fim do pacto
silencioso entre a ditadura do Partido Comunista Chinês e a sociedade chinesa,
baseada fundamentalmente no crescimento econômico – se o povo, que já está sem
liberdade, ficar também sem dinheiro, será o início do fim para os vestutos
senhores de cabelos pintados de preto-graxa, ternos pretos e gravatas
vermelhas. Daí se depreende a aquiescência chinesa para com a pressão de Trump
sobre Pyongyang, bem como uma sensível redução no tom de imposição que Beijing
vinha adotando sobre seu estrangeiro próximo, como nas ilhas em litígio com o
Japão e demais países da região. No Kremlin, o pato topetudo manco também
assusta. A ação na Síria deixou claro que o aprendiz de tzar agiu bem em se
aproveitar da inepta política externa de Barack Obama. A claudicante atuação
americana no Oriente Médio no final do segundo governo de Obama (destaque
negativo imbatível: a “linha vermelha” mais desbotada da história) deu a Putin
a chance de fincar pé em Damasco e ter um prelado que lhe garantirá até o final
da vida uma saída para o Mar Mediterrâneo, a mais velha obsessão dos tzares de
verdade e dos tzares bolcheviques que o antecederam. Todavia, com Trump no
Salão Oval, ações como a tomada manu militari da Crimeia passaram a ser
inconcebíveis, não porque o ethos de Trump seja absolutamente contrário a esse
ou outro tipo de crime internacional, mas porque o pato topetudo manco pode ser
facilmente convencido de que foi uma afronta à sua autoridade e resolver partir
para a briga. Quem diria: até um projeto de bully na Casa Branca tem um lado
positivo... Por fim, um comentário apenas a respeito da Venezuela, a ser
confirmado pelos fatos: a crise ainda não descambou ainda para uma guerra civil
aberta porque a ditadura faz de tudo para se manter oculta sob um véu 99%
transparente – e uma das razões é exatamente o medo de que Donald Trump possa,
diante de uma guerra civil aberta contra um ditador, possa conseguir
autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas para intervir no sofrido
país caribenho. Para quem acha que China e Rússia vetariam, dois comentários
finais: ambos os países têm interesses fortes com os Estados Unidos que
poderiam ser usados em barganhas, exatamente o tipo de jogo em que Donald
Trump, gostemos ou não, é mestre: negociar com blefes e troca de interesses.
Com a China, a questão comercial poderia ser facilmente utilizada em troca de
uma abstenção; com a Rússia, o alívio às sanções a altos funcionários da nomenklatura
e empresários ligados a Putin certamente melhoraria as condições políticas do
Kremlin. Como se vê, há pontos positivos com um bully no Salão Oval e,
convenhamos, de tédio não se morre quando se tem um pato topetudo manco dando
expediente na Casa Branca – exatamente ao contrário do que o senso comum
imaginaria.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
Comentários
Postar um comentário