O magistral inglês Thomas Hobbes
é mais conhecido pela sua obra O Leviatã, na qual descreve um ente que tudo
comanda e a todos oprime – em termos mais prático, o governo, notadamente em
sua versão autocrática. É uma visão simplista, embora bem difundida, de que
Hobbes defendia a opressão. Na verdade, por entender a natureza humana como
imutável e essencialmente egoísta e desconfiada, Hobbes considera apenas a
emergência de uma entidade mais poderosa do que os seres humanos (eis o
Leviatã!) poderia forçá-los a conviver em paz e parar de gastar todos os seus
recursos em guerras e, com isso, progredir materialmente como um todo –
bastaria, para isso, que todos concordassem em conceder o monopólio do uso da
força ao governo, como posteriormente Max Webber magistralmente definiria a
raiz do contrato social. Ao apresentar suas ideias, Hobbes cunhou uma frase
que, assim como muitas de suas ideias (Leviatã incluído), ganharam tamanha
força própria que se descolaram de suas acepções originais. É o caso do famoso
adágio a seguir: o homem é o lobo do homem (Homo homini lupus est, no original
em latim), originalmente uma citação para a premissa que usa para defender a
concessão do monopólio da força dada a imutabilidade da natureza humana, mas
que é uma forma de dizer que humanos são intrinsicamente cruéis como feras de
rapina. Seguindo, portanto, a conotação original da expressão romana, podemos
tomar a liberdade de parafrasear Hobbes e dizer que, ao declarar que propina é
uma palavra inventada por empresários e Ministério Público para tentar culpar
os políticos, decididamente Lula é a lula do Lula; senão, vejamos.
Lulas são moluscos que comem
literalmente de tudo – inclusive, outras lulas. Caçadores natos, possuem uma
espécie de bico que tritura tudo o que levam à boca. São seres que sobrevivem
em pressões abissais e em todos os oceanos do mundo. Desenvolveram técnicas de
caça extremamente sofisticadas. São sobreviventes sob qualquer ótica.
Obviamente, Luís Inácio virou Lula não ao graças ao molusco, mas à própria
sonoridade de seu nome – de fato, “Lula” é um apelido comum para Luís. Mas, no
caso de Lula da Silva (ele incorporou o apodo ao nome), há uma curiosa,
estranha coincidência: o apelido casa perfeitamente bem. Assim como o molusco,
Lula da Silva é um sobrevivente que grassou em terrenos hostis e não falhou em
vencer todas as adversidades – e devorou impiedosamente todos os que cruzaram
seu caminho político. Lula da Silva deixa terra arrasada atrás de si, como Roma
ao triunfar sobre Cartago. E essa é, paradoxalmente, sua fraqueza: ao não ter
críticos ou adversários em seu meio-ambiente político (leia-se os partidos de
esquerda não social-democratas), ele se converte em seu maior adversário, a
lula do Lula. Suas declarações de improviso são um desastre tão grande que nem
viram mais notícia. Mesmo diante de um rol disparates de preconceitos de todo
tipo: racial (“Nem parece que estamos na África!”, disse, maravilhado, ao
elogiar a beleza e a limpeza de Windhoek, capital da Namíbia cuja arquitetura
remete à colonização alemã), de gênero (a inacreditável piada que fez sobre sua
aliada Clara Ant ter acordado com cinco homens no seu quarto e ter ficado
frustrada ao perceber que não era um “presente de Deus”, mas sim policiais
federais cumprindo um mandado de busca e apreensão – e não ter ficado
apavorada, como qualquer mulher sozinha em casa ficaria na vida real caso
acordasse com cinco homens a cercando em seu quarto), sexual (“Pelotas é um
polo exportador de viado!”) e outros tantos (como ao oferecer asilo a uma
mulher que seria morta pela teocracia iraniana porque ela estava “incomodando”
o regime) que nem vale a pena enumerar, Lula da Silva conseguiu se superar em
uma entrevista à Rádio Tiradentes (AM) na última segunda-feira (24-Jul-2017),
quando declarou verbatim que “a palavra propina foi inventada pelos empresários
para tentarem culpar os políticos, ou pelo Ministério Público”, disse, ao
argumentar que, baseado no que lê na imprensa, “todas as campanhas do Brasil
sempre foram feitas” com financiamento empresarial, para arrematar que “a
diferença é que agora transformaram as doações em propina, então tudo ficou
criminoso”. Que Lula da Silva joga com a fidelidade canina de seus áulicos não
é novidade. Que, ao fazer isso, ele, um homem particularmente inteligente e
perspicaz, um político tarimbado, sabe que ofende a inteligência do público em
geral, também não é novidade. E, ainda assim, Lula da Silva conseguiu chocar o
mundo político. O que levaria um homem, repita-se, inteligente e experiente, a
acertar tiros de artilharia antiaérea no próprio pé repetidas vezes, por ofício
próprio? Há uma explicação.
Lula da Silva é, repita-se mais
uma vez, um político extraordinário. Goste-se ou não dele e dos seus atos,
mesmo adversários reconhecem nele uma capacidade sem igual no Brasil atual. A
razão pela qual ele tem falado demais até para os seus padrões de verborragia é
simples: ele está acuado. Ele sabe que a prisão é mera questão de tempo e que a
única defesa que tem é pela política. Sabe também que não se elegerá presidente
em 2018 exceto em situações extremamente difíceis, mas isso nunca foi obstáculo
para ele. Assim, tudo o que diz e faz é com esse objetivo: se livrar da cadeia,
nem que, para tanto, a chave seja voltar a residir no Palácio do Planalto – o
que nos leva ao disparate em tela: é mais uma construção de narrativa. O foco
não deve ser na parte de que empresários e ministério público tentarem
culpabilizar os políticos, mas sim na parte de que todas as campanhas políticas
(as quais ele, obviamente, só conhece pela imprensa, não por ter disputado
cinco eleições presidenciais) são feitas com financiamento empresarial – e que
as doações não eram, ao menos até aonde ele e os políticos sabem, ilegais. Um
conto da carochinha, claro. Mas convém jamais subestimar Lula da Silva. Ele
pode ter inúmeros defeitos, mas não é tolo. Ao dizer o que disse, iguala todos
os políticos e traz a contenda de 2018 para o seu campo: se todos são iguais,
ao menos Lula da Silva é mais conhecido. Simultaneamente, opera nos bastidores
para evitar uma polarização entre ele e um candidato com rejeição muito baixa
exatamente por não ser político tradicional, com nome e sobrenome: João Doria
Jr. Uma disputa com Doria, mantidas as condições atuais, tem grande potencial
de acabar no primeiro turno. Só que, em sua tática desesperada, acaba sendo
caçador de si mesmo, lula do Lula. É uma faca de dois gumes: quanto mais Lula
da Silva tenta se igualar aos políticos tradicionais, mais se destaca sobre
eles por um lado – e mais atrás fica de Doria e de outros candidatos que não
têm tradição política. Para que a tática dê certo, é necessário garantir que
apenas concorrerão políticos vistos como tradicionais pelos eleitores: é nessa
sopa comum que Lula da Silva tem possibilidade (ainda que baixa dado o seu
estupendo grau de rejeição) de trocar a cadeia pelo Palácio do Planalto. É um
plano arriscado e cheio de furos, explicado apenas pelo desespero. Assim,
podemos esperar declarações e atitudes ainda mais danosas de Lula da Silva a
uma biografia que, outrora gloriosa, vem sendo, paulatinamente e por mérito e
obra exclusiva dele, dilapidada a olhos vistos. Lula continuará sendo a lula do
Lula. Mais cedo ou mais tarde, o caçador que nele habita vencerá a presa que
nele habita e uma declaração ou uma atitude será a proverbial gota de água que
fará o copo transbordar – quando isso começar a acontecer, não haverá volta.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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