Por Pedro Nascimento Araujo
Morto aos 85 anos após anos de
coma decorrente de um AVC em 2006, Ariel Sharon foi uma pessoa sui generis –
ele viveu pelos menos duas vidas simultaneamente: foi o Açougueiro de Beirute e
o artífice do Acordo do Rio Wye, o incitador da II Intifada e o Premier que
retirou unilateralmente Israel de Gaza, inclusive despejando milhares de
colonos israelense manu militari. Morto, este judeu praticante de vida pendular
terá agora de prestar contas a Javé. Obviamente, nós, os vivos, jamais saberemos
o veredicto divino para Ariel Sharon: por ter vivido duas vidas, ele tem plenas
condições de ir tanto para o Céu quanto para o Inferno, embora este não seja
codificado pela Torá. Parafraseando o ex-presidente Lula da Silva, que citou
Raul Seixas ao se definir politicamente, Ariel Sharon parece ter sido uma
metamorfose ambulante. Todavia, apenas parece. Sua vida múltipla faz mais
sentido que parece, e suas ações revelam um homem extraordinário que soube
aliar pragmatismo e ideologia, sem nunca perder de vista o direito à existência
que Israel sempre teve negado por seus vizinhos árabes. Mais que isso, Ariel
Sharon teve uma característica única dos estadistas e outra dos populistas: ao
longo de sua trajetória, ele abriu mão do aplauso fácil (na verdade, de sua
popularidade e mesmo de sua sobrevivência política) para fazer o que julgava
certo – apenas para, em seguida, oscilar para o outro lado e recomeçar. Mais
que uma metamorfose ambulante ou um pêndulo ora calibrado ora errante, Ariel
Sharon foi uma rarae avis.
Israel é um país fabuloso: com
diminutos território (semelhante ao Estado do Rio de Janeiro) e população
(apenas 6 milhões de pessoas, semelhante à cidade do Rio de Janeiro), Israel é
um dos países mais avançados do mundo, uma democracia onde ditaduras são a
regra e um estado com liberdades religiosas onde sectarismo é a regra. Os
indicadores são de país desenvolvido e os produtos desse pequeno lugar
(notadamente, nas áreas de tecnologia da informação e militar) são referências
mundiais. Sempre às voltas com vizinhos belicosos, foi atacado em todas as
guerras das quais participou desde que a ONU anunciou sua fundação: até hoje, o
Hezbollah e o Hamas têm em seus estatutos a missão de “varrer Israel do mapa”.
Nesse terreno pantanoso, no qual a preocupação com a segurança se traduz em
preocupação com a sobrevivência, Ariel Sharon construiu sua primeira vida. O
filho de judeus russos, nascido próximo de Tel Aviv em 1928 na Palestina
Britânica surgida do Acordo Sykes-Picot, o bastante jovem Sharon foi um dos
comandantes da Guerra de Independência de Israel em 1948 – em 1953, Ben-Gurion
escolheria o jovem de 24 anos para comandar uma unidade de elite (Unidade 101).
Sua carreira militar foi profícua em vitórias e em massacres. Ainda
em 1953, a
Unidade 101 foi responsável por um ataque na Jordânia (Qibya) que matou 69
pessoas e ajudou a precipitar a Guerra de Suéz (1956), na qual também
participou, assim como a Guerra dos 6 Dias (1967) e a Guerra do YOm Kippur
(1973), na qual teve destaque ao invadir o Egito e impedir o 3º Exército de
Nasser de invadir Israel na maior batalha de tanques desde Kursk (II Guerra
Mundial). Antes, em 1970, o mesmo homem que em sua segunda vida viria a retirar
Israel de Gaza sufocou um levante com a morte de 100 militantes da OLP (além da
prisão de mais 700), provocando um exílio de 160 mil pessoas e criando as
colônias de ocupação judaica que ele próprio viria a destruir em 2005. Na
reserva desde o final da Guerra do Yom Kippur, Ariel Sharon iniciou sua
carreira política, onde sua atuação pendular conseguiu ser ainda mais
controversa e dúbia que durante sua vida militar.
Não que ex-comandantes militares
na política seja uma novidade, ainda mais quando vitoriosos – a lista vai de
George Washington a Eurico Gaspar Dutra, passando por Charles De Gaulle e
muitos outros. Em Israel, esse aspecto é particularmente forte por conta das
constantes agressões que o país sofre desde antes de ser independente.
Considerado um Falcão (ou seja, um linha-dura), Sharon, então no comando do
Ministério da Defesa, lançou em 1982
a Operação Paz para a Galileia (I Guerra do Líbano),
onde 4,3 mil refugiados palestinos foram mortos em Beirute nos campos de Sabra
e Shatila. Após julgamento em Israel no qual foi chamado “Açougueiro de
Beirute” e considerado culpado direto pelo massacre, Sharon foi proibido pela
justiça israelense de ocupar novamente o cargo. Como continuou na política
graças à popularidade com setores conservadores de Israel, Sharon acabou sendo
Chanceler em 1998, quando sua oscilação apareceu novamente: ele deixou seus
correligionários em choque ao assinar o Acordo do Rio Wye, por meio do qual
Israel abria mão de 13% da Cisjordânia em favor dos palestinos. Em 2000, em
mais um movimento do seu pêndulo político, Sharon fez um afago aos nacionalistas
ao visitar o Monte do Templo (Esplanada das Mesquitas para os muçulmanos) para
“levar uma mensagem de paz”, segundo seus dizeres. A presença ostensiva (além
da cobertura da imprensa, havia literalmente mil policiais armados que fizeram
sua segurança) do Açougueiro de Beirute em um local sagrado também para os
muçulmanos foi o estopim da II Intifada. Com o caos instalado, foi eleito
Premier em 2001 na última eleição direta para o cargo em Israel. De novo, sua
atuação foi pendular: em 2002, em resposta a atentados suicidas, ocupou cidades
israelenses e, em 2004, deixou o mundo perplexo ao anunciar suas intenções de
retirar todas as tropas da Faixa de Gaza e de destruir as 22 colônias
israelenses na região unilateralmente. Seu próprio partido, o Likud, votou
contra a ação de seu Premier. Em 2005, Sharon usou as Forças de Defesa de
Israel para retirar os moradores das 22 colônias em Gaza – as imagens de
soldados israelenses retirando judeus à força de suas casas rodaram o mundo – e
era impossível não se lembrar de que apenas 25 homens o mesmo Sharon havia
deslocado 160 mil refugiados palestinos para que os judeus pudessem ocupar o
território na mesma Gaza. Daquele momento em diante, o Grande Israel, desejo
dos ultranacionalistas de recompor as fronteiras bíblicas do estado judaico,
foi inviabilizado para sempre – e apenas um homem seria capaz de fazer isso: o
Açougueiro de Beirute. Ao retirar Israel unilateralmente de Gaza, Ariel Sharon
foi defenestrado pelo Likud, que o considerou um traidor da mais alta estirpe.
Ariel Sharon não se fez de rogado: no mesmo ano, criou o Kadima (“Avanço”),
partido com o qual Ehud Omert seria Premier após o AVC que o incapacitaria em
2006 e precipitaria sua decadência física, fazendo com que o pêndulo Ariel
Sharon parasse de oscilar e culminando com sua morte em 2013. A metamorfose
ambulante não mais é: a hora de prestar contas a Javé chegou. Seria
interessante saber qual fase do pêndulo teve maior peso ao final das contas.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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