“Precisamos falar sobre o Kevin”
é um livro ficcional de 2003, escrito por Lionel Shriver, escritora americana
radicada em Londres – e, em 2011, foi adaptado para o cinema em um filme
dirigido por Lynne Ramsay. O enredo é simples e atroz: Eva Khatchadourian conta
a história de seu filho Kevin, desde antes do nascimento do garoto até um
encontro com ele na cadeia, a três dias da maioridade (algo possível no Reino
Unido), onde cumpria pena por um massacre de 11 pessoas perpetrado em sua
escola pouco antes de ele completar 16 anos (antes de sair de casa para cometer
a chacina, Kevin ainda matou o pai e a irmã). Eva relembra a infância e a
adolescência de Kevin e, em pelo que se lê, fica bem evidente que Kevin sempre
foi um psicopata pronto para perpetrar atrocidades de grande porte tão logo
tivesse a chance; afinal, quando se olha em retrospecto, nada surpreende e tudo
é bastante evidente, mas nem por isso deixa de ser surpreendente. A lição: a
tragédia ocorreu porque nada foi feito pelos pais, muito porque o pai
minimizava os, digamos, incidentes envolvendo Kevin (alguns graves, como
queimar o olho da irmã menor com soda cáustica), muito porque a mãe era omissa
e não lhe tinha qualquer simpatia desde sempre, e muito porque Kevin manipulava
o pai ao mostrar-se um filho exemplar diante dele enquanto desenvolvia rusgas
cada vez maiores com a mãe às escondidas. Resumindo, uma parte fraca (Eva, mãe
do Kevin) e uma parte iludida (Franklin, pai do Kevin) foram facilmente
manipuladas por uma parte egocêntrica (Kevin). O resultado é uma tragédia
anunciada. A razão de começar mencionando “Precisamos falar sobre o Kevin” é
simples: trazendo da ficção para a realidade e trazendo do Reino Unido para o
Brasil, troquemos Eva por governo, Franklin por sociedade e Kevin por grupos
organizados de pressão e teremos uma bela analogia com a reforma da
previdência. Precisamos falar sobre a reforma da previdência e escolher o que
queremos – antes que seja tarde demais: há um déficit de 162 bilhões de reais
em 2016, ou 2½% do PIB. O valor é mais do que o dobro do que tivemos em 2014 (R$
69 bilhões) basicamente porque, de 2014 para cá, a recessão comeu 7,85% do PIB,
o que levou a arrecadação a cair 12,5% (de R$ 410 bilhões para R$ 364 bilhões),
enquanto os benefícios pagos viram um aumento real de 7,8% (de R$ 478 bilhões
para R$ 516 bilhões) – tudo o que foi apresentado aqui está em valores de
dezembro de 2016. A partir daqui, nada mais de números. Há um déficit com
tendência estrutural de alta, que foi piorado pela situação conjuntural. O
ponto é esse: mesmo que não houvesse corrupção, recessão ou qualquer outro
desvio, haverá déficit crescente – cada vez mais. Precisamos falar sobre a
reforma da previdência, nosso Kevin. Precisamos falar sobre governo fraco,
oposição iludida e grupos de pressão egocêntricos. Precisamos decidir o que fazer
com o Kevin, antes que o Kevin decida o que fazer conosco, como já vem
acontecendo.
A primeira coisa a se ter em
mente é que há apenas uma decisão crucial a se tomar diante do que se fazer com
o Kevin: decidir se queremos ou não que o governo continue crescentemente
direcionando dinheiro da sociedade para pagar pelas aposentadorias. É somente
após se tomar essa decisão que podemos prosseguir para as discussões acerca ou
de como fazer a sociedade não pagar pelo sustento dos seus aposentados ou de
como fazer a sociedade pagar pelo sustento dos seus aposentados. Decidir se
queremos que o governo continue a usar nossos impostos para bancar nossos
aposentados é a questão crucial, é o famoso “o que” que precede o “como” (no
caso, o “como” é maneira de se continuar pagando ou de se parar de pagar). Como
o governo é fraco como Eva (mãe do Kevin), a ordem de prevalência não vem sendo
seguida – e o resultado não poderia ser outro: estamos à mercê dos grupos de
interesse (Kevin), que vêm impondo suas agendas de tratamentos especiais ao
conjunto da sociedade sem que sequer tenhamos decidido se queremos ao menos
bancar coletivamente as aposentadorias comuns dos nossos aposentados, quem dirá
as aposentadorias especiais. Nesse ponto, Eva (governo) ser fraca é a chave de
tudo: caberia ao governo dar o tom da discussão – primeiro, ver se a sociedade
quer que continue a meter as mãos em seus bolsos para tirar meio trilhão de
reais por ano (em uma conta que cresce não apenas mesmo quando o país encolhe,
mas que crescerá invariavelmente em função da demografia, como veremos adiante)
para custear seus aposentados ou se a sociedade prefere que saia do processo.
Sem esse norte, e com o iludido do pai do Franklin (sociedade) sendo manipulado
pelos grupos de pressão (Kevin), o resultado não poderia ser outro: pulamos a
parte estratégica e estamos travando disputas na parte operacional. Por tibieza
do governo, fomos parar no terreno que o Kevin domina: protestos, lobbies e
pressões por interesses particulares são bem-sucedidos. Não é uma boa ideia.
Nós, o povo, também temos culpa.
E não é pequena. Somos iludidos como o Franklin: muitos de nós realmente
acreditaram que não há déficit na previdência. É compreensível; afinal, muita
gente acredita que é possível se manter saudável mesmo sendo sedentário, obeso,
fumante, estressado e hipertenso, sem mudar um hábito sequer. Ocorre que a
previdência, assim como a saúde, não é questão de fé, mas sim de fatos. Por
isso, ainda que a pessoa descrita acima não sinta qualquer desconforto, isso jamais
pode significar que ela está saudável: seu organismo apenas está queimando suas
reservas (ou seja, sua vida futura) para compensar os abusos do presente. A
conta lisérgica que chega ao superávit previdenciário é simples: basta
desconsiderar a previdência do funcionalismo (como se o governo brasileiro
arrecadasse o recurso para pagá-los exclusivamente metendo as mãos nos bolsos
de pagadores de impostos de outros países), considerar que todo o dinheiro que
não foi arrecadado foi arrecadado, e, por fim, somar ao saldo o dinheiro que
foi drenado de outras áreas do orçamento exatamente para cobrir o déficit: se,
após tudo isso, a conta ainda estivesse no negativo, a matemática teria de ser
reinventada. Enfim, cada um tem o sagrado direito de viver como quiser. Se nós,
o povo, queremos ser como o sujeito descrito no começo do parágrafo no que
tange à previdência, OK. Escolha nossa – mas uma escolha cônscia: não adianta
acharmos que usar nossas reservas para bancar a previdência não terá
consequências. Terá. E serão gravíssimas: uma conta impagável que fadará as
próximas gerações à penúria. Invariavelmente, o governo brasileiro vai à
bancarrota – não sem antes inviabilizar qualquer tipo de geração de riqueza na
sua vã tentativa de honrar os galopantes custos previdenciários.
Metaforicamente, reformar a
previdência é como praticar exercícios, manter o peso, não fumar, evitar o
estresse e controlar a pressão arterial: não tem apelo algum, mas é a única
coisa que funciona no longo prazo. Uma reforma definitiva seria como uma
completa guinada no estilo de vida: identificaria e eliminaria quaisquer
distinções e privilégios e migraria para o sistema de capitalização (em que
cada um recebe em proporção ao que contribuiu), ao invés do atual sistema de
repartição (em que cada geração trabalha para sustentar a velhice da geração
anterior). Uma reforma definitiva levaria em conta uma verdade insofismável: a
demografia exige. O Brasil já não mais tem aquela pirâmide etária típica de
países subdesenvolvidos, com base larga (muito jovens) e topo baixo e estreito
(poucos velhos). Atualmente, assemelha-se mais a um retângulo, com uma base
cada vez mais fina para um topo cada vez maior e mais largo. Em números: se, há
uns 50 anos, cada mulher brasileira tinha em média 6 filhos, esse número não
chega a dois nos dias atuais. Assim, temos cada vez menos crianças. Como ainda
não envelhecemos, estamos em um período de ouro, que acontece apenas uma vez na
história de cada sociedade – o chamado bônus demográfico. Hoje, cada brasileiro
em idade ativa é responsável por sustentar outro meio brasileiro, contra um na
época dos seis filhos. E vai voltar a ser assim em poucas décadas – nosso bônus
demográfico tem em torno de mais uma década pela frente. Se um casal com seis
filhos penava para pagar o sustento de duas crianças há 50 anos, hoje esse
mesmo casal com um filho vai ser responsável por pagar os impostos que
garantirão o sustento de quatro idosos (pais e mães de cada um), algo muito
mais caro – especialmente se as pessoas continuares se aposentando cedo e com
provimentos integrais. Nosso retrato será feio em poucas décadas se nada
fizermos. O Brasil será um país habitado por velhos que serão divididos em duas
categorias: aqueles cujos grupos de pressão (Kevin) conseguiram manter seus
privilégios (progressivamente minguados) e os demais, que não possuem
privilégios. Sairemos do bônus geográfico em algum a partir de 2035 – e
sairemos velhos e com uma despesa impagável para os poucos brasileiros que
estiverem em idade produtiva. Quando uma geração sufoca a outra,
independentemente de a causa ser justa, tem-se uma receita infalível para
ressentimentos e clivagens violentas – ou seja, tem-se um desastre anunciado.
Algo precisa ser feito, gostemos ou não. O curioso é que todos os governos (até
mesmo o anódino período sob comando de Dilma Rousseff) falaram em reformar a
previdência, o que evidencia que nossos representantes (e, portanto, nós) mas
nenhum conseguiu fazer a completa. Não seria agora. Kevin continua manipulando
uma sociedade e um governo fraco, especialmente quando tem como pano de fundo a
maior recessão da história brasileira.
Kevin vencerá mais uma vez e não
será dessa vez que privilégios e distorções serão eliminados em uma reforma da
previdência. Os grupos de pressão, que Kevin representa, conseguiram preservar
muitos dos privilégios e distorções que originalmente seriam extintos. Por sua
vez, Franklin continua acreditando que Kevin age para o bem geral quando, na
verdade, Kevin está agindo como um Robin Hood às avessas. Ser iludido e
manipulado é a saga de Franklin, que representa a nós, o povo. E Eva, que
representa o governo, está mais fraca do que nunca, incapaz de fazer frente às
crescentes investidas de Kevin contra si. Eva percebe que Kevin está agindo
para beneficiar-se em detrimento dos demais, mas não age porque prefere
omitir-se; ademais, está isolada, sem o apoio do eternamente iludido Franklin.
Franklin e Eva precisam conversar sobre o Kevin, mas não conversam. Enquanto
isso, Kevin segue sua progressão, importando-se apenas consigo mesmo, sem se
importar com os efeitos sobre demais. Simplesmente porque o Kevin é assim:
enxerga apenas seu próprio umbigo e é capaz de tudo para satisfazer seus
anseios que, em sua visão de psicopata, simplesmente nada têm de errado.
Precisamos conversar sobre o Kevin e agir, antes que seja tarde demais.
Acabamos de desperdiçar mais uma oportunidade.
Pedro Nascimento Araujo
nascimentoaraujo@hotmail.com
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