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Make Zhong Guo Great Again. Por Pedro Nascimento Araujo


O nome não poderia ser mais indicativo das ambições: Nova Rota da Seda. Há um nada sutil desejo de evocar um mítico passado de grandeza e centralidade. Aliás, o próprio nome do país é um indicativo desse complexo de grandeza: em chinês, China é Zhong Guo (中国) – literalmente, Reino do Meio. Fisicamente meio do mundo, na concepção original – ou, ao menos, do mundo conhecido há mais de dois milênios, quando Zhong Guo estabeleceu-se como primeira potência mundial. Desde então, muita água passou sob a ponte e Zhong Guo virou um nome esquecido no mundo. Agora, os chineses parecem dispostos a recolocar a China (ou melhor, Zhong Guo) no centro do mapa-múndi com um plano extremamente ambicioso: a Nova Rota da Seda. O sucesso ou o fracasso de Beijing nesse projeto será o fator principal a definir o papel que a China exercerá de fato no século atual. Primeiramente, é preciso dizer que a Nova Rota da Seda ou OBOR (One Belt One Road, como o projeto é oficialmente chamado) é uma aposta sem precedentes para a China moderna, mas não sem precedentes para o mundo – inclusive para Zhong Guo. O conceito de infraestrutura internacional conectada convergindo para um centro dinâmico está na base, por exemplo, do controle romano sobre a Eurásia há dois milênios. Até hoje a expressão “todas as estradas levam a Roma” é utilizada, e não à toa: ainda há estradas e pontes romanas em funcionamento como foram concebidas, embora a maioria tenha sofrido mudanças com o tempo e virado grandes ferrovias ou rodovias. Roma era o centro do mundo. Em Zhong Guo, algo semelhante ocorreu, tendo Xi’an como epicentro (as fabulosas esculturas do exército de terracota dão testemunho da importância chinesa), mas um isolamento autoimposto no início da Dinastia Ming (Século XV) levaria o país que teve hegemonia sobre terra e mar (a esquadra do almirante Zheng He foi ao Oriente Médio e ao Chifre da África com uma frota que faziam as expedições de Colombo e Vasco da Gama parecerem brincadeira de criança) a perder importância até ser literalmente loteado pelas potências europeias – Shanghai, centro financeiro da China atual, teve, após as Guerras do Ópio, mais áreas sob administração de diferentes países estrangeiros concomitantemente do que Berlim e Viena após 1945. Curiosidade: o Brasil, embora não controlasse uma área específica China, tinha extraterritorialidade para seus cidadãos na época, por ser parte de um dos 14 países com esse direito (além do Brasil, eram 11 europeus, os Estados Unidos e o Japão) O resto da história é conhecido: guerras civis, caos, pobreza, ópio, violência, Mao Zedong, genocídios – até Deng Xiaoping impor as reformas do capitalismo de estado em 1979. Após quase quatro décadas de crescimento vertiginoso (com capitais majoritariamente americanos, é bom que se diga), Zhong Guo faz sua aposta de voltar a fazer jus ao seu nome com a Nova Rota da Seda – simbolicamente, representa voltar ao ápice de Zhong Guo, ocorrido pouco antes de o isolacionismo conduzir ao nadir no Século XIX: como diria Donald Trump, Make Zhong Guo Great Again!

A Rota da Seda foi a principal interligação econômica da Ásia e também ligava a Ásia central com sua ponta mais ocidental, a Europa. Exatamente porque não tinham como entrar Rota da Seda, comandada pelos poucos, grandes, fortes e avançados reinos asiáticos, os muitos, pequenos, fracos e atrasados reinos europeus empreenderam a busca pela alternativa marítima para comerciar com a Ásia, com base nas ideias ou de um planeta esférico (Colombo) ou de circum-navegação do continente africano (Vasco da Gama, o Conde da Vidigueira). Conseguiram, ficaram poderosos e voltaram à China para partilhá-la séculos depois, como se sabe. Todavia, diferentemente das estradas romanas, a Rota da Seda não foi uma invenção chinesa para fazer convergir os fluxos do mundo para sua capital. Enquanto os romanos criaram uma complexa infraestrutura logístico-administrativa voltada para aumentar o poder de Roma, a Rota da Seda simplesmente estava lá e não era controlada por Zhong Guo; os chineses eram seus maiores usuários, mas não seus controladores – o que faz toda a diferença. Beijing tanto sabe disso que, desta vez, pretende não repetir os mesmos erros: a China quer construir e controlar a infraestrutura da OBOR. Uma excelente ideia – no Século XIX, como certamente o foram a Bagdadbahn e outras delirantes iniciativas de projeção de poder da época. O próprio anúncio da Nova Rota da Seda foi um exemplo de livro-texto sobre demonstração de força: nada menos do que 110 países mandaram representantes. Como o mundo tem 193 nações segundo a ONU, obviamente nem todos os presentes poderiam fazer parte da Rota da Seda. Pouco importa; ou melhor, importa demais: para Beijing, esse comparecimento foi visto como um sinal de que o mundo se interessa pelo que a China faz, que Zhong Guo está de volta, que os comunistas conseguiram seu Make Zhong Guo Great Again particular. Sim, porque, mesmo sendo (melhor ainda: por causa disso) um projeto do Século XIX, o OBOR é colossal. Mais do que isso, o OBOR tenta criar um mediterrâneo chinês, como os romanos tiveram o deles (no próprio Mar Mediterrâneo), os ingleses tiveram o deles (no mundo inteiro) e os americanos tiveram (no hemisfério americano) e têm (no mundo inteiro). Como a Nova Rota da Seda, parece ter chegado a vez dos chineses. Mas não é tão simples assim.

Para que o OBOR funcione a contento, as maiores rotas marítimas do mundo, que passam por áreas altamente disputadas na Ásia, precisarão ser patrulhadas. Ocorre que quem patrulha os mares atualmente é Washington e, por isso, um aumento na presença de belonaves chinesas é visto como uma tentativa de corrida armamentista; por outro lado, um aumento na presença de belonaves chinesas patrulhando o OBOR, uma iniciativa chinesa apoiada por uma centena de nações, é simplesmente consequência natural – e cria o mediterrâneo chinês. Mais do que isso, o estabelecimento de infraestrutura terrestres (ferrovias, comunicações, energia, portos, rodovias etc.) com capitais chineses simplesmente liga umbilicalmente todo o entorno à China, em uma relação mãe-filho, com Beijing sendo a mãe, claro – criando, portanto, um cordon sanitaire de países dependentes ao redor da China. Os termos são oitocentistas de propósito; se soa anacrônico falar em mediterrâneos ou em cordons sanitaires em pleno Século XXI, é exatamente porque foi para isso que a Nova Rota da Seda foi criada: para recolocar Zhong Guo no centro do mundo. A um custo de até cinco trilhões de dólares (literalmente, metade do PIB da China, o segundo maior do mundo), diante de reservas internacionais de três trilhões – que estão encolhendo e dos quais “apenas” um trilhão é o saldo líquido, segundo estimativas internacionais. Resumindo, para poder bancar o OROB, Zhong Guo precisaria se endividar irresponsavelmente, internamente e externamente – e nem vamos mencionar a ausência de um plano claro, com objetivos definidos tecnicamente, algo impensável em um país que se move por decisões de uma elite política mais interessada em sobreviver e que precisa tanto parecer forte (internamente e externamente) quanto entregar prosperidade para manter a aquiescência silenciosa ao seu autoritarismo intrínseco de recordista mundial de assassinato de compatriotas, com literalmente dezenas de milhões de chineses mortos desde que ascendeu ao poder há quase sete décadas. No Século XXI, fazer geopolítica do Século XIX com financiamento do Século XIV pode não ser uma boa ideia.

Por fim, há uma questão premente: a China talvez jamais poderá dispor de cinco trilhões de dólares para brincar de superpotência porque há riscos consideráveis de sua economia entrar em colapso em breve. A mais do que conhecida bolha imobiliária na China pode vir a ser estourada a qualquer momento, ao invés de ser desinflada controladamente, como deseja Beijing; afinal, caso ocorra a ruptura ab-rupta da bolha, o mais provável é que Zhong Guo país entre em processo de estagnação econômica prolongada, repetindo o Japão desde o estouro da bolha imobiliária naquele país nos anos 1990 – naquela época, se tinha como certo (como se tem agora) que a ascendente potência industrial asiática (naqueles dias, o Japão) ultrapassaria os Estados Unidos da América para ser a principal economia do mundo. Todavia, ainda que a desinflação controlada logre êxito e a economia da China sobreviva incólume ao fim da galopante especulação imobiliária, o crescimento econômico chinês vem caindo paulatinamente, em que pesem as toneladas de estímulos estatais – e em nada ajuda a ampla desconfiança internacional diante da absoluta opacidade dos métodos de aferição dos dados oficiais sobre o desempenho econômico. Pior ainda, nesta semana a China sofreu um importantíssimo rebaixamento de uma agência internacional de classificação de risco: levando em conta basicamente tais fatores, a Moody’s não apenas rebaixou o país, como ainda manteve um viés de baixa. E eis um ponto crucial a ser considerado em qualquer análise acerca do OBOR: trata-se de um plano geopolítico demais e econômico de menos. Analistas açodadamente o compararam ao Plano Marshall, mas isso é incorreto; afinal, quando Washington elaborou o Plano Marshall, sabia exatamente quanto gastaria (orçamento aprovado pelo Congresso) e em que gastaria: aquele dinheiro serviria para bancar a reconstrução da capacidade industrial e da infraestrutura de países que, afinal, já eram desenvolvidos (afinal, aBagdadbahn foi obra do II Reich) e, com a capacidade produtora restaurada, retomariam a prosperidade e o comércio com os Estados Unidos para fortalecer o chamado mundo livre junto com os americanos, a quem caberia ainda prover proteção militar – e, com isso, o Plano Marshall ainda tinha os atrativo de retirar grande parte dos pesados custos de defesa dos orçamentos dos países aliados ao Tio Sam. As vantagens geopolíticas do Plano Marshall eram, portanto, umbilicalmente ligadas às vantagens financeiras do Plano Marshall. No caso do OBOR, a geopolítica parece perigosamente preceder a análise técnico-financeira, meio caminho andado para o fracasso. Some-se a isso a situação no mínimo incerta acerca do futuro financeiro chinês e temos três quartos do caminho percorrido. Make Zhong Guo Great Again é um desafio e tanto, mas o açodamento dos líderes do Partido Comunista da China para torná-la grande demais rápido demais e com zelo financeiro de menos, sacrificando a economia em prol da geopolítica, pode transformá-la no oposto exato do que desejam: a gênese de mais uma queda espetacular de Zhong Guo.

Pedro Nascimento Araujo é economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com

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