O nome não poderia ser mais
indicativo das ambições: Nova Rota da Seda. Há um nada sutil desejo de evocar
um mítico passado de grandeza e centralidade. Aliás, o próprio nome do país é
um indicativo desse complexo de grandeza: em chinês, China é Zhong Guo (中国) – literalmente, Reino do
Meio. Fisicamente meio do mundo, na concepção original – ou, ao menos, do mundo
conhecido há mais de dois milênios, quando Zhong Guo estabeleceu-se como
primeira potência mundial. Desde então, muita água passou sob a ponte e Zhong
Guo virou um nome esquecido no mundo. Agora, os chineses parecem dispostos a
recolocar a China (ou melhor, Zhong Guo) no centro do mapa-múndi com um plano
extremamente ambicioso: a Nova Rota da Seda. O sucesso ou o fracasso de Beijing
nesse projeto será o fator principal a definir o papel que a China exercerá de
fato no século atual. Primeiramente, é preciso dizer que a Nova Rota da Seda ou
OBOR (One Belt One Road, como o projeto é oficialmente chamado) é uma aposta
sem precedentes para a China moderna, mas não sem precedentes para o mundo –
inclusive para Zhong Guo. O conceito de infraestrutura internacional conectada
convergindo para um centro dinâmico está na base, por exemplo, do controle
romano sobre a Eurásia há dois milênios. Até hoje a expressão “todas as
estradas levam a Roma” é utilizada, e não à toa: ainda há estradas e pontes
romanas em funcionamento como foram concebidas, embora a maioria tenha sofrido
mudanças com o tempo e virado grandes ferrovias ou rodovias. Roma era o centro
do mundo. Em Zhong Guo, algo semelhante ocorreu, tendo Xi’an como epicentro (as
fabulosas esculturas do exército de terracota dão testemunho da importância
chinesa), mas um isolamento autoimposto no início da Dinastia Ming (Século XV)
levaria o país que teve hegemonia sobre terra e mar (a esquadra do almirante
Zheng He foi ao Oriente Médio e ao Chifre da África com uma frota que faziam as
expedições de Colombo e Vasco da Gama parecerem brincadeira de criança) a
perder importância até ser literalmente loteado pelas potências europeias –
Shanghai, centro financeiro da China atual, teve, após as Guerras do Ópio, mais
áreas sob administração de diferentes países estrangeiros concomitantemente do
que Berlim e Viena após 1945. Curiosidade: o Brasil, embora não controlasse uma
área específica China, tinha extraterritorialidade para seus cidadãos na época,
por ser parte de um dos 14 países com esse direito (além do Brasil, eram 11
europeus, os Estados Unidos e o Japão) O resto da história é conhecido: guerras
civis, caos, pobreza, ópio, violência, Mao Zedong, genocídios – até Deng
Xiaoping impor as reformas do capitalismo de estado em 1979. Após quase quatro
décadas de crescimento vertiginoso (com capitais majoritariamente americanos, é
bom que se diga), Zhong Guo faz sua aposta de voltar a fazer jus ao seu nome
com a Nova Rota da Seda – simbolicamente, representa voltar ao ápice de Zhong
Guo, ocorrido pouco antes de o isolacionismo conduzir ao nadir no Século XIX:
como diria Donald Trump, Make Zhong Guo Great Again!
A Rota da Seda foi a principal
interligação econômica da Ásia e também ligava a Ásia central com sua ponta
mais ocidental, a Europa. Exatamente porque não tinham como entrar Rota da
Seda, comandada pelos poucos, grandes, fortes e avançados reinos asiáticos, os
muitos, pequenos, fracos e atrasados reinos europeus empreenderam a busca pela
alternativa marítima para comerciar com a Ásia, com base nas ideias ou de um
planeta esférico (Colombo) ou de circum-navegação do continente africano (Vasco
da Gama, o Conde da Vidigueira). Conseguiram, ficaram poderosos e voltaram à
China para partilhá-la séculos depois, como se sabe. Todavia, diferentemente das
estradas romanas, a Rota da Seda não foi uma invenção chinesa para fazer
convergir os fluxos do mundo para sua capital. Enquanto os romanos criaram uma
complexa infraestrutura logístico-administrativa voltada para aumentar o poder
de Roma, a Rota da Seda simplesmente estava lá e não era controlada por Zhong
Guo; os chineses eram seus maiores usuários, mas não seus controladores – o que
faz toda a diferença. Beijing tanto sabe disso que, desta vez, pretende não
repetir os mesmos erros: a China quer construir e controlar a infraestrutura da
OBOR. Uma excelente ideia – no Século XIX, como certamente o foram a Bagdadbahn
e outras delirantes iniciativas de projeção de poder da época. O próprio
anúncio da Nova Rota da Seda foi um exemplo de livro-texto sobre demonstração
de força: nada menos do que 110 países mandaram representantes. Como o mundo
tem 193 nações segundo a ONU, obviamente nem todos os presentes poderiam fazer
parte da Rota da Seda. Pouco importa; ou melhor, importa demais: para Beijing,
esse comparecimento foi visto como um sinal de que o mundo se interessa pelo
que a China faz, que Zhong Guo está de volta, que os comunistas conseguiram seu Make
Zhong Guo Great Again particular. Sim, porque, mesmo sendo (melhor ainda:
por causa disso) um projeto do Século XIX, o OBOR é colossal. Mais do que isso,
o OBOR tenta criar um mediterrâneo chinês, como os romanos tiveram o deles (no
próprio Mar Mediterrâneo), os ingleses tiveram o deles (no mundo inteiro) e os
americanos tiveram (no hemisfério americano) e têm (no mundo inteiro). Como a
Nova Rota da Seda, parece ter chegado a vez dos chineses. Mas não é tão simples
assim.
Para que o OBOR funcione a
contento, as maiores rotas marítimas do mundo, que passam por áreas altamente
disputadas na Ásia, precisarão ser patrulhadas. Ocorre que quem patrulha os
mares atualmente é Washington e, por isso, um aumento na presença de belonaves
chinesas é visto como uma tentativa de corrida armamentista; por outro lado, um
aumento na presença de belonaves chinesas patrulhando o OBOR, uma iniciativa
chinesa apoiada por uma centena de nações, é simplesmente consequência natural
– e cria o mediterrâneo chinês. Mais do que isso, o estabelecimento de
infraestrutura terrestres (ferrovias, comunicações, energia, portos, rodovias
etc.) com capitais chineses simplesmente liga umbilicalmente todo o entorno à
China, em uma relação mãe-filho, com Beijing sendo a mãe, claro – criando,
portanto, um cordon sanitaire de países dependentes ao redor da
China. Os termos são oitocentistas de propósito; se soa anacrônico falar em
mediterrâneos ou em cordons sanitaires em pleno Século XXI, é
exatamente porque foi para isso que a Nova Rota da Seda foi criada: para
recolocar Zhong Guo no centro do mundo. A um custo de até cinco trilhões de
dólares (literalmente, metade do PIB da China, o segundo maior do mundo),
diante de reservas internacionais de três trilhões – que estão encolhendo e dos
quais “apenas” um trilhão é o saldo líquido, segundo estimativas
internacionais. Resumindo, para poder bancar o OROB, Zhong Guo precisaria se
endividar irresponsavelmente, internamente e externamente – e nem vamos
mencionar a ausência de um plano claro, com objetivos definidos tecnicamente,
algo impensável em um país que se move por decisões de uma elite política mais interessada
em sobreviver e que precisa tanto parecer forte (internamente e externamente)
quanto entregar prosperidade para manter a aquiescência silenciosa ao seu
autoritarismo intrínseco de recordista mundial de assassinato de compatriotas,
com literalmente dezenas de milhões de chineses mortos desde que ascendeu ao
poder há quase sete décadas. No Século XXI, fazer geopolítica do Século XIX com
financiamento do Século XIV pode não ser uma boa ideia.
Por fim, há uma questão premente:
a China talvez jamais poderá dispor de cinco trilhões de dólares para brincar
de superpotência porque há riscos consideráveis de sua economia entrar em
colapso em breve. A mais do que conhecida bolha imobiliária na China pode vir a
ser estourada a qualquer momento, ao invés de ser desinflada controladamente,
como deseja Beijing; afinal, caso ocorra a ruptura ab-rupta da bolha, o mais
provável é que Zhong Guo país entre em processo de estagnação econômica
prolongada, repetindo o Japão desde o estouro da bolha imobiliária naquele país
nos anos 1990 – naquela época, se tinha como certo (como se tem agora) que a
ascendente potência industrial asiática (naqueles dias, o Japão) ultrapassaria
os Estados Unidos da América para ser a principal economia do mundo. Todavia,
ainda que a desinflação controlada logre êxito e a economia da China sobreviva
incólume ao fim da galopante especulação imobiliária, o crescimento econômico
chinês vem caindo paulatinamente, em que pesem as toneladas de estímulos
estatais – e em nada ajuda a ampla desconfiança internacional diante da
absoluta opacidade dos métodos de aferição dos dados oficiais sobre o
desempenho econômico. Pior ainda, nesta semana a China sofreu um
importantíssimo rebaixamento de uma agência internacional de classificação de
risco: levando em conta basicamente tais fatores, a Moody’s não apenas rebaixou
o país, como ainda manteve um viés de baixa. E eis um ponto crucial a ser
considerado em qualquer análise acerca do OBOR: trata-se de um plano
geopolítico demais e econômico de menos. Analistas açodadamente o compararam ao
Plano Marshall, mas isso é incorreto; afinal, quando Washington elaborou o
Plano Marshall, sabia exatamente quanto gastaria (orçamento aprovado pelo
Congresso) e em que gastaria: aquele dinheiro serviria para bancar a reconstrução
da capacidade industrial e da infraestrutura de países que, afinal, já eram
desenvolvidos (afinal, aBagdadbahn foi obra do II Reich) e, com a
capacidade produtora restaurada, retomariam a prosperidade e o comércio com os
Estados Unidos para fortalecer o chamado mundo livre junto com os americanos, a
quem caberia ainda prover proteção militar – e, com isso, o Plano Marshall
ainda tinha os atrativo de retirar grande parte dos pesados custos de defesa
dos orçamentos dos países aliados ao Tio Sam. As vantagens geopolíticas do
Plano Marshall eram, portanto, umbilicalmente ligadas às vantagens financeiras
do Plano Marshall. No caso do OBOR, a geopolítica parece perigosamente preceder
a análise técnico-financeira, meio caminho andado para o fracasso. Some-se a
isso a situação no mínimo incerta acerca do futuro financeiro chinês e temos
três quartos do caminho percorrido. Make Zhong Guo Great Again é um
desafio e tanto, mas o açodamento dos líderes do Partido Comunista da China
para torná-la grande demais rápido demais e com zelo financeiro de menos,
sacrificando a economia em prol da geopolítica, pode transformá-la no oposto
exato do que desejam: a gênese de mais uma queda espetacular de Zhong Guo.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
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