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Emas não enterram a cabeça no chão. Por Pedro Nascimento Araujo


É uma imagem recorrente no imaginário popular: o avestruz enterrando a cabeça na areia. Embora sugestões de que a avantajada ave o faça quando quer-se esconder (o que conferiria um ar de inocência infantil ao se contrastar um corpanzil totalmente visível com uma pequena cabeça escondida), a verdade é que o macho da ave não-voadora faz isso várias vezes ao dia para auxiliar no processo de incubação. Esclarecimento biológico feito, é necessário dizer que o avestruz é animal africano, adaptado aos desertos de lá – daí os ovos enterrados na areia fofa para controle de temperatura. Aqui, na América do Sul, a ave de maior porte é a ema, que chega a pesar 30 kg (o avestruz pesa até 150 kg). A ema faz ninho com folhas sobre a relva e não enterra a cabeça no chão. Todavia, na América do Sul, o conjunto dos países está agindo como avestruzes diante do que ocorre na Venezuela. Deveriam agir como emas diante do governo de Nicolás Maduro. A Venezuela é uma ditadura em consolidação e continuamos fingindo que nada de anormal está acontecendo em um país adjacente ao nosso. Haja cabeça enterrada no chão para não ver.

A Argentina é o mais conhecido caso de país sul-americano que já foi primeiro mundo e hoje é terceiro. Por outro lado, o Chile é o caso mais premente de país que já foi terceiro mundo e hoje está caminhando para o primeiro, apesar de alguns retrocessos pontuais durante a segunda temporada de Michelle Bachelet à frente de la Moneda. Há ainda o Brasil, que claudica desde a Independência e notadamente convive com sístoles e diástoles desde o Golpe da República. Mas, acima de tudo, há a Venezuela, o incrível país que quase foi primeiro mundo e agora se afunda dramaticamente no terceiro. Parece mentira, mas a Venezuela já foi um dos país mais com o maior PIB per capita da América do Sul – e, hoje, mais de 80% das residências vive abaixo da linha de pobreza. Soa inacreditável, mas o bolívar (dinheiro local que a hiperinflação fez valer mais pelo valor físico do papel-moeda em si do que pelo valor fiduciário nele pintado: hoje, bolívares servem apenas para falsificação) já foi uma das moedas consideradas reserva de valor no mundo, como o franco suíço, por exemplo. Até 1983, quando a Crise da Dívida Externa, que já havia derrubado gigantes ibero-americanos como Brasil e México, atingiu o país, o bolívar era literalmente moeda de reserva internacional conversível – e, obviamente, a Venezuela era considerada um país estável e sério. Depois da crise dos anos 1980, o descalabro só fez crescer. A decadência econômica e a instabilidade política viraram regra. Então veio o coronel Hugo Chávez. E tudo o que era ruim piorou. A Venezuela surfou na onda do chamado Superciclo das Commodities nos anos 2000. O país caribenho tem reservas de petróleo entre as mais volumosas do mundo, mas é óleo pesado, caro de produzir e que necessita de muito processamento – em oposição, os sauditas possuem óleo leve e cuja produção é baratíssima. Porém, com o preço do barril de petróleo batendo recordes sucessivos, até mesmo o socialismo funciona – ainda que apenas em quanto durar a bonança. Dito e feito. Chávez fez de seus dias à frente do Palácio Miraflores a base para a cubanização da Venezuela. Isso implicava duas coisas: estatização da economia e supressão da democracia, não necessariamente nessa ordem. Não era segredo que Chávez pretendia fazer de si mesmo um segundo Fidel Castro. Um câncer o mataria antes, mas é mister reconhecer que Chávez deixou boa parte do trabalho já feita para Nicolás Maduro: economia em frangalhos e destruição da democracia. Enquanto isso, quando governos simpáticos aos mesmos princípios estavam no poder em Buenos Aires e Brasília, observava-se silêncio obsequioso em relação ao desmonte da democracia venezuelana – e a ruína econômica foi premiada com uma rasteira no Paraguay para permitir a entrada de Caracas no Mercosul. O avestruz nem se dava ao trabalho de esconder a cabeça nessa época. O Superciclo das Commodities acabou e, com o fim do almoço grátis, Argentina e Brasil voltaram a ser comandados por governos que valorizam a ortodoxia econômica e a democracia no ano passado. O corolário foi o isolamento político de Maduro que, diante de uma economia em negativo (desde 2015, quando a inflação foi de 181% e a recessão bateu em 5,7%, que não há dados oficiais, mas estimativas falam em inflação de até 800% e recessão de até 19% - números que nem países em processo de destruição por guerra civil como a Síria têm), recorreu ao endurecimento político. A Venezuela, sem medo de errar no diagnóstico, é uma ditadura em consolidação, embaixo de nossos narizes.

Nicolás Maduro é um desastre tão vasto quanto seu ridículo bigode, mas não criou a desgraça sozinho. Se hoje mais de 80% das residências é oficialmente pobre, esse número já era próximo de 50% quando Cháves o ungiu seu sucessor, no final de 2013. É fácil pintar Nicolás Maduro como um Marcelo Caetano ibero-americanos, mas a situação é pior. Caetano assumiu sabendo que poderia presidir o desmanche da ditadura do Estado Novo que Salazar havia iniciado quase quatro décadas antes, ao passo que Maduro assumiu para consolidar o bolivarianismo de Chávez ainda não havia institucionalizado completamente. E é exatamente a institucionalização da ditadura, a consolidação do regime que estamos assistindo. Aliás, as constantes referências a de Simón Bolívar por parte de Hugo Chávez deixaram bem claro desde o início que a democracia não era um valor inegociável – quando presidiu a Grande Colômbia, Bolívar deixou claro que democracia era apenas discurso e, na prática, foi um pioneiro dos caudilhos que chegam ao poder pelo voto e rapidamente se transformam em ditadores, uma figura tristemente comum na política ibero-americana. Prosseguindo, aos poucos Chávez foi, ao melhor estilo Bolívar, distorcendo as leis para se perpetuar como o novo Castro. Armou suas milícias (os infames colectivos, embriões de FARC bancados pelo Palácio Miraflores) com 500 mil rifles. Tentou impedir a oposição de tomar posse na Assembleia Nacional – e conseguiu impugnar três congressistas, impedindo assim a aprovação de emendas constitucionais. Controla o Poder Judiciário e, com isso, impediu que seu recall, convocado de acordo com a constituição do país, seja realizado pelos eleitores antes do final de seu mandato, previsto para acabar no fim de 2018. Controlando o Poder Judiciário, mantém presos políticos, não realizou as eleições regionais marcadas para 2016 e não deve realizar as eleições municipais marcadas para este ano, o que coloca em dúvida a própria realização da eleição presidencial de 2018. E, por fim, Nicolás Maduro simplesmente tentou fechar o Poder Legislativo e repassar suas funções para o submisso Poder Judiciário – mas teve de recuar, ao menos momentaneamente: até para os padrões de Maduro, seria uma ditadura escancarada demais e os protestos populares que se seguiram estavam indubitavelmente levando o país à beira de uma guerra civil. A democracia venezuelana ainda está tecnicamente viva, mas só com o auxílio de aparelhos ligados 24 horas.

É verdade que Argentina e Brasil têm sido mais enérgicos com a Venezuela desde que Michel Temer e Mauricio Macri passaram a ocupar respectivamente o Palácio do Planalto e a Casa Rosada. A cumplicidade bovina com que Cristina Férnandez e Dilma Rousseff (ou, antes delas, Néstor Kirchner e Lula da Silva) recompensar os arroubos autoritaristas de Nicolás Maduro (e, antes dele, os de Hugo Chávez) já é parte do passado. A Venezuela não mais tem na UNASUL sua frente avançada de propaganda – a invocação da cláusula democrática do Protocolo de Georgetown de 2010 (curiosamente, patrocinada por Hugo Chávez após uma confusão no Equador de seu aliado Rafael Correa) já está em estudos. E, principalmente, a retirada do país caribenho do Mercosul (conquanto em momento tenha chegado a ser integrada totalmente ao bloco) parece não ser mais do que mera questão de formalidades jurídicas temporais. Além disso, a cláusula democrática do Mercosul (Protocolo de Ushuaia de 1998) pode ser acionada, permitindo inclusive o fechamento de fronteiras. E, na Organização dos Estados Americanos (OEA, entidade fundada em 1948 e que reúne todos os países das Américas), após o secretário-geral Luis Almagro anunciar que levaria a possibilidade de evocar a Carta Democrática Americana (curiosidade: assinada em Lima no fatídico 11 de Setembro de 2001) para o plenário contra a Venezuela, o país simplesmente antecipou-se e anunciou sua saída do Pacto de Bogotá – publicamente, Almagro não fala mais em manter a democracia na Venezuela, mas sim em redemocratizar o país, tomando como fait accompli que a Venezuela não é mais uma democracia. Esse é o tamanho do isolamento que Nicolás Maduro tem hoje, mas ainda é pouco. Argentina, Brasil, Paraguay e Uruguay devem passar a agir como Almagro e reconhecer o óbvio: a Venezuela é uma ditadura e a redemocratização precisa ser buscada. Mercosul e Unasul, capitaneados por Brasil e Argentina, deveriam invocar logo suas respectivas cláusulas democráticas e isolar completamente a Venezuela. Se Caracas quiser sair de ambas, que saia e só retorne quando se redemocratizar. A presença do governo ditatorial de Nicolás Maduro é tóxica para o Hemisfério Ocidental e deslegitima a atuação das organizações internacionais em tela. Faz mal ao Brasil e aos seus parceiros defensores da democracia e dos direitos humanos. A história ibero-americana nos recomenda jamais tergiversar com protoditadores – especialmente quando eles vão se sentindo cada vez mais à vontade. Lutamos demais para termos nossas democracias. É, portanto, nosso imperativo moral inarredável defendê-las em todo o nosso hemisfério. Não podemos nos dar ao luxo de adotar quaisquer ações que nos façam parecer com avestruzes enterrando a cabeça no chão perante tiranetes de plantão; aqui é América do Sul e aqui há emas, não avestruzes – e emas não enterram a cabeça no chão.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

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