Luís Inácio Lula da Silva, em
seus inúmeros delírios de grandeza, gostava de exaltar-se dizendo que seu
governo era inédito, mesmo que não fosse. Obviamente, é exagero dizer que nunca
na história deste país se viu um homem público ser descontruído de forma tão
veloz e avassaladora quanto Lula da Silva – mas certamente não é exagero dizer
que Lula da Silva foi o presidente mais arrogante que este país já teve. E,
agora, está pagando o preço pelas escolhas erradas que fez ao longo da vida.
Ele tentou criar uma aura de mito de si mesmo, mas falhou; afinal, mitos surgem
de narrativas mitológicas. Mitos não são pessoas: mitos são arquétipos, ideias,
construções cuidadosamente entalhadas ao longo de muito tempo e por muitas
pessoas. Mitos são tão fortes que suscitam fé. Isso vale para todas as
religiões: se um cristão nada mais é do que alguém que acredita na ressurreição
de Cristo (“E, se Cristo não foi ressuscitado, logo é vã a nossa pregação, e
também é vã a vossa fé” – 1Cor 15,14), a mesma ressurreição não passa de
mitologia para quem, por exemplo, professa a fé maometana ou é ateu. Mitos,
portanto, fazem narrativas acerca da própria humanidade, com virtudes, erros,
desejos, realizações. Mitos, quando não são deidades, são meta-humanos – no
mínimo. Por isso, não aceito a ideia de que pessoas vivas possam ser comparadas
a mitos. Assim, não trataremos acerca do derretimento público da bem-construída
imagem de benfeitor desinteressado que Luís Inácio Lula da Silva vem
enfrentando como se mito fosse. Trataremos como o que é: a destruição de uma
imagem que jamais correspondeu à realidade. Estamos falando de um jogo de
enganação que chega ao fim. Para Lula da Silva, as letras que formam Game Over
já começam a aparecer na tela.
Luís Inácio Lula da Silva tem uma
trajetória bastante familiar a milhões de brasileiros: o retirante nordestino
que abandonou sua terra para tentar a sorte nas grandes cidades. São pessoas
que nada mais têm do que uma capacidade incrível de trabalhar, que acreditam
que apenas o trabalho duro e honesto, forjado na fé católica dos homens do
sertão, é capaz de dignificar alguém. Em sua encarnação como retirante que foi
trabalhar e se formar técnico (torneiro-mecânico), Lula da Silva foi um desses
bravos brasileiros, cujo pendor pelo trabalho duro e honesto encaixa-se
facilmente em uma descrição de por Max Webber. São pessoas que, em apenas uma
geração, deixam uma situação de miséria e permitem que seus filhos, graças aos
incansáveis e honestos esforços dos pais, possam ascender ao meio da pirâmide
social. Tomado como um grupo, porque obviamente há exceções, os retirantes são
pessoas admiráveis – e, por ter sido um deles, esse reconhecimento sempre deve
ser dado ao Lula da Silva que saiu de Garanhuns e virou torneiro-mecânico em
São Paulo. Esse Lula da Silva, no entanto, desapareceu quando entrou para o
sindicalismo. A partir daquele momento, surgiria a figura pública de Lula da
Silva. Nada mais dos valores que fizeram dele um brasileiro que nos dá orgulho.
A julgar pelo que falou Emílio Odebrecht, surgiu ainda nos anos 1970 o homem
afeito a mercês e sinecuras que hodiernamente reconhecemos em Lula da Silva. Os
sinais de que essa seria a personalidade dominante estavam claros. E alguns
argutos observadores deram-se conta disso rapidamente.
Golbery do Couto e Silva tinha a
merecida alcunha de Bruxo. Era uma inteligência rara, reconhecido como
brilhante mesmo por seus inúmeros inimigos: você poderia concordar ou discordar
dele, mas não poderia ignorar o que ele dizia porque sempre tinha fundamento.
Considerado o pai da geopolítica brasileira, o Bruxo esteve à frente do temido
Serviço Nacional de Informações (SNI, órgão de inteligência do Regime Militar)
e, nessa função, conheceu Lula da Silva em sua encarnação de líder sindical. A
verdadeira extensão da relação entre o Regime Militar (representado pelo
general Golbery do Couto e Silva) e o sindicalismo (representado por Luís
Inácio Lula da Silva) talvez jamais venha a ser conhecida, mas sabe-se hoje que
existia – e que, não havendo corrupção, foi bastante positiva: ao criar uma
relação menos tensa com o governo, Lula da Silva contribuiu para evitar
potenciais banhos de sangue. Mas, a se julgar pelo depoimento de Emílio
Odebrecht, o gosto de Lula da Silva pela vida fácil financiada com dinheiro dos
outros não passaria despercebido por Golbery naqueles anos embrionários da
carreira política que levaria o ex-retirante ao Palácio do Planalto: o Bruxo
disse ao empreiteiro para não temer as greves comandadas por Lula da Silva
porque ele não passaria de um bon vivant; portanto, seria fácil cooptá-lo.
Dito e feito. O Bruxo não seria o único a notar esse pendor de Lula da Silva
por, digamos, autoindulgências. Na campanha presidencial de 1989, ficou famosa
a referência de Fernando Collor de Mello a “aparelhagens ultramodernas e
sofisticadas de som” de Lula da Silva no último debate entre ambos – aliás,
Collor foi além e disse que Lula da Silva não trabalhava desde 1978 e morava em
um apartamento gratuito de 350 metros quadrados em Brasília. Não eram casos
isolados. Até hoje, reside em uma cobertura que não está em nome dele e pela
qual a justiça não encontrou provas de pagamento de aluguel por anos. Ulysses
Guimarães e outros argutos observadores em Brasília repetiram o diagnóstico de
que Lula da Silva gosta muito de mordomias bancadas por empresários com
interesses inconfessáveis na carreira política dele. Difícil acreditar que tal
homem tenha sido antes um valoroso retirante.
O fato incontornável de que a
imagem que Lula da Silva construiu para o mundo está desbotando velozmente é
estarrecedor. Não bastasse uma grande propensão a viver com o chapéu alheio,
histórias cada vez mais escabrosas foram aparecendo com o passar dos anos.
Antes de entrar na corrupção propriamente dita, alguns casos escabrosos viriam
à tona. Primeiro, um certo pendor para circular com amantes fixas. Ainda na
campanha de 1989, outro fato explorado por Collor de Mello para desestabilizar
Lula da Silva foi a suposta existência de uma amante de nome Deca, psicanalista
em Brasília e frequentadora do tal apartamento de 350 metros quadrados –
pessoas ligadas a Collor fizeram chegar a Lula da Silva que seu adversário
teria fotos dos dois em uma pasta que Collor tinha nas mãos durante todo o
debate. Houve também o célebre caso de Rosemary Noronha, tão íntima que até
dormiria com ele no avião presidencial quando Marisa Letícia não estava
presente – e depois se tornaria conhecida por negócios escusos. Casas e
despesas pagas por empresários, com destaque para seu compadre Roberto Teixeira
precederam as relações com as empreiteiras. Conforme os depoimentos em juízo
vão-se sucedendo, a situação fica pior. Na verdade, é patético. Há uma espécie
de roteiro da humilhação: Lula da Silva sempre começa negando tudo e vai
mudando o discurso na exata medida do que vai sendo comprovado, até não ter
mais como negar e simplesmente não tocar mais no assunto. Pegue-se o caso da
Odebrecht. Agora que não há mais como Lula da Silva negar que foi beneficiado,
o discurso mudou. Antes, quando ele ainda dizia que não havia viva alma mais
honesta do que ele no país, o discurso era de que ninguém seria capaz de provar
que ele aferiu alguma vantagem na relação com empreiteiras. Depois, de que nada
do que recebeu era ilegal, já que havia ficado claro que ele recebeu vantagens.
A até há pouco, o discurso era de que ninguém poderia acusá-lo de pedir, uma
vez que ficou claro que ele recebeu vantagens ilegais. Com os depoimentos em
que várias pessoas afirmam perante a justiça que ele pediu, finalmente fez-se o
silêncio e agora Lula da Silva não fala mais sobre o assunto, limitando-se a
reclamar de “perseguição”.
Digressão relevante: é bem
verdade que tática semelhante vem sendo seguida por Dilma Rousseff; todavia,
ela aparentemente já está em Game Over, porque nem o PT liga para o que Dilma
Rousseff defende ou deixa de defender – e eis a dolorosa e insofismável prova
reside no fato de que o PT sempre faz publicamente a defesa de Lula da Silva e
a condenação do governo de Michel Temer, mas nunca faz publicamente a defesa de
Dilma Rousseff e, mais sintomático, jamais considerou defender a restituição de
Dilma Rousseff ao cargo de presidente da República; na verdade, nem mesmo
cogitou por um momento sequer tê-la como sua candidata em 2018, ainda que Lula
da Silva esteja preso no momento do pleito, deixando claro que o Game Over de
Dilma Rousseff foi selado pelo PT irreversivelmente, há muito e sem dó.
Digressão encerrada, o que resta de Lula da Silva é uma triste ausência total
de coerência no discurso. Isso é o fim para quem construiu toda uma vida
pública de sucesso inegável baseando-se em sua própria capacidade de levar as
pessoas enxergar em si a encarnação de um dos maiores arquétipos brasileiro de
virtude: o retirante nordestino que, com sua capacidade de trabalho e sua
honestidade, consegue reverter incontáveis gerações de miséria e marginalidade
social em apenas duas gerações. Lula da Silva era inspiração. Seu próprio fazia
seus eleitores acreditarem nele, acreditarem que era possível uma pessoa que
veio de muito baixo vencer trabalhando duro e sendo honesta. Lula da Silva era
a concretização do sonho brasileiro. Até que se embrenhou pelo sindicalismo e
passou a viver de sinecuras e mercês. Deu no que deu: suas falcatruas foram
reveladas e seu discurso se perdeu. Com sua imagem cada vez mais associada aos
inacreditáveis esquemas de corrupção, será preso e verá seu nome encolher na
história – cada vez mais seu período no Palácio do Planalto será lembrado mais
pelas quadrilhas que foram lá instaladas com seu beneplácito e para seu
benefício do que por qualquer outra coisa. Triste fim para um homem que, se não
foi um mito porque, por definição, simplesmente homem algum jamais poderia
sê-lo, certamente foi uma grande fonte de inspiração que fez os brasileiros
sonharem com uma vida melhor, mais digna, alicerçada em trabalho duro e
honesto, como ensina a fé que move milhões de brasileiros que sofrem nas
agruras dos sertões deste país – e que, paulatinamente, vêm descobrindo que seu
grande exemplo é uma farsa ambulante. Pena, porque o Brasil não tem modelos de
inspiração desde D Pedro II. Lula da Silva foi quem mais chegou
perto, mas se provou uma fraude. E agora o fim é iminente. Game Over.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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