Por Pedro Nascimento Araujo
A estrutura das peças de William
Shakespeare, um dos maiores dramaturgos de todos os tempos, é fato bastante
estudado. O bardo utilizava um roteiro infalível, em cinco etapas, que pode ser
replicado para qualquer peça: Apresentação, na qual os leitores conhecem as
personagens e seus conflitos; Escalada, na qual as reações das personagens aos
conflitos levam às complicações que exigirão definições; Inflexão, na qual as
personagens e as circunstâncias mudam, perfazendo as ações que serão o ponto
focal da peça. Solução, na qual os conflitos e suas complicações são
resolvidos, para o bem ou para o mal; e Conclusão, na qual se chega a um termo,
tanto progressista (em comédias, há o surgimento de uma nova ordem, geralmente
expressa por meio de casamentos ou de celebrações de paz) quanto reacionário
(em tragédias, a restauração da ordem social e moral é à custa de lutas, sacrifícios
e mortes). Para José Mariano Beltrame, o gaúcho artífice da melhor política de
segurança pública que o Rio de Janeiro já teve, sua obra dileta, a criação das
UPP (Unidades de Polícia Pacificadora), está entrando em um momento de Inflexão
shakespeariana. Nesse momento no qual sua política de segurança pública está
sendo deliberadamente atacadas por bandidos e por políticos, também está sendo
definido qual será a Conclusão.
A recente ousadia dos bandidos é
deliberadamente uma estratégia de enfraquecimento das UPP. Órfãos de uma fonte
de poder (e, por extensão lógica, de renda) absurda que a perda dos territórios
para as UPP causou, eles, acuados que estavam, se sentiram capazes de desafiar
Beltrame, o homem que, desde a retomada do Complexo do Alemão em 2011 no
episódio conhecido como “Fuga das Baratas”, era intocável. A fragilidade de
Beltrame tem nome e sobrenome: Sérgio Cabral, o incrível homem capaz de virar
um governante extremamente impopular sem fazer um governo extremamente ruim.
Com Cabral mais malhado que Judas em Sábado de Aleluia, ficou claro para os
adversários políticos de Cabral que a única coisa que poderia dar a vitória em
outubro ao atual vice-governador Pezão (que assumirá o cargo quando Cabral
renunciar no final deste mês) seria a continuidade do sucesso de Beltrame à
frente da segurança pública. Pronto: bastaria destruir a obra de Beltrame e o
Palácio das Laranjeiras estaria aberto para outro grupo político, com o então
governador Pezão ficando como responsável por deteriorar a segurança pública do
Rio de Janeiro. A Revista Época da semana passada mostrou como Anthony
Garotinho e Álvaro Lins comanda um grupo formado para infernizar Beltrame com
ações judiciais, enquanto a Revista Veja dessa semana mostra como Marcelo
Freixo comanda um grupo formado para infernizar Beltrame com manifestações de
rua violentas. Nesse contexto, os bandidos se sentem livres para também cutucar
o Secretário de Segurança com ações terroristas contra as UPP. São essas as
personagens e seus conflitos: a Apresentação shakespeariana está feita.
Ontem, a ação terrorista ocorreu
na Rocinha, mas o roteiro foi o mesmo das demais incursões recentes dos
bandidos no Complexo do Alemão: ataques diretos às UPP. O objetivo,
absolutamente terrorista, é assustar os policiais e a população. Os bandidos
sabem que não poderão retomar as favelas enquanto as UPP existirem – assim,
buscam simplesmente desacreditá-las para que Beltrame, o homem que as criou,
saia do caminho junto com Cabral e com Pezão. É uma ação que somente faz sentido
quando acompanhada das ações dos grupos como os de Garotinho e de Freixo: os
inúmeros processos contra Beltrame que Garotinho/Lins patrocinam somam-se às
inúmeras manifestações violentas contra Beltrame que Freixo patrocina e aos
inúmeros ataques terroristas contra as UPP que os bandidos patrocinam. É uma
combinação explosiva: Sérgio Cabral sangra em praça pública, o que estimula os
ataques a Beltrame como forma de impedir que Pezão chegue a outubro com
condições de vencer. Conscientemente ou não, Anthony Garotinho e Marcelo Freixo
acabam ajudando e sendo ajudados pelos bandidos. A marcha da insanidade contra
a pacificação que Beltrame conseguiu a duras penas e que beneficia a todos no
Rio de Janeiro prossegue sem que ninguém além dos bandidos perceba o mal que
está sendo insuflado para a sociedade, pouco importa se em nome do ganho
político (Garotinho) ou da afirmação da ideologia (Freixo). Eis a Escalada
shakespeariana que Beltrame enfrenta hodiernamente: ataques terroristas
turbinados pelas atuações irresponsáveis de Anthony Garotinho e de Marcelo
Freixo, homens que, em busca da realização de seus interesses pessoais, estão
sendo usados por bandidos que querem recolocar toda a população de um estado
sob seu jugo de terror.
Chegamos, portanto, ao momento da
Inflexão shakespeariana: ou Beltrame decide enfrentar seus adversários para
manter a pacificação e torna-la política supragovernamental – ou seja, mesmo
que Anthony Garotinho ou Marcelo Freixo venha a ser o novo governador, não
poderá muda-la – ou Beltrame sucumbe junto com Sérgio Cabral, os bandidos
retomam o território e, malgrado uma sensação de paz momentânea (afinal, após
retomarem o poder, os bandidos não serão tolos de provocar a reação da
sociedade e, até fincarem suas bases de forma irremovível, proibirão qualquer
ataque nas favelas e não deixarão a criminalidade crescer no entorno, fazendo
parecer que o problema era Beltrame), em poucos anos tudo voltará a ser como
era antes de Beltrame começar seu trabalho. Como se trata de vida real e não de
uma obra-prima de Shakespeare, a Inflexão está sendo escrita agora. O destino
da segurança no Rio de Janeiro está associado ao destino de Beltrame, não ao de
Cabral, que deveria patentear seu método para acabar com popularidade mesmo
fazendo um governo bom, nem ao de Pezão, que não tem histórico político como
governador – ele assumirá apenas após a renúncia de Cabral, anunciada para o
final desse mês. É uma situação crítica. Tornar supragovernamental a política
de segurança pública que Beltrame conseguiu implantar nesses anos de governo de
Sérgio Cabral é um desafio e tanto. Exigirá de Beltrame, na reta final do seu
trabalho, um esforço e uma dedicação talvez maiores que tudo o que ele fez até
agora. Se ele tiver a resolução de enfrentar os bandidos e os oportunistas
políticos, sem tergiversar, sem esmorecer e sem flexibilizar seus princípios,
seus valores e seus objetivos, a Solução shakespeariana será uma batalha épica,
mas conduzirá a uma Conclusão shakespeariana feliz e progressista, marcada pelo
surgimento de uma nova ordem, expressa por meio da paz. Se, por outro lado, ele
ceder uma polegada sequer, a Solução também será uma batalha épica, mas levará
a uma Conclusão triste e reacionária, com a restauração da ordem social e moral
que vigia antes de sua chegada à Secretaria de Segurança Pública do Estado do
Rio de Janeiro – em outras palavras, ao reino de terror dos bandidos.
Certamente, o gaúcho José Mariano Beltrame nunca se imaginou no papel de um
herói de William Shakespeare, mas a vida o levou a uma típica situação de
Inflexão shakespeariana – e sem sequer poder considerar a possibilidade de
esperar por uma solução Deus Ex Machina no final; afinal, Beltrame está vivendo
uma Inflexão shakespeariana não nos palcos, mas na vida real.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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