Por Pedro Nascimento Araujo
Nas últimas semanas, a situação
se deteriorou profundamente na Venezuela e o povo da Ucrânia [aparentemente]
conseguiu atingir seu intento de não voltar a ser vassalo do suserano de
plantão em Moscou (cereja do bolo: Yanukovich conseguiu a proeza de ser apeado
do poder pela segunda vez em uma década por uma revolta popular decorrente de
sua ligação com os russos); ainda assim, dois corais merecem destaque por um
motivo bem óbvio: as diferenças dentre eles – enquanto o coral regido por
Carlos Fecher foi notícia por entoar o hino da Internacional Socialista, o
regido por Eduardo Fernandes foi notícia por entoar Beijinho no Ombro, sucesso
do Gaiola das Popozudas, grupo de funk carioca liderado por Valesca Popozuda.
O hino da Internacional
Socialista, cantado pelo coral Nheeengarecoporanga de Petrópolis regido por
Carlos Fecher, é um libelo político. Embora tenha sido escrita no Século XIX e
tenha sido o hino da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) até
meados do Século XX, a Internacional (como o hino, tradicionalmente cantado com
o punho esquerdo cerrado para cima, é mais conhecido), ao contrário do que se
poderia imaginar, tem uma bela letra. Fala em “não mais deveres sem direitos” e
“não mais direitos sem deveres”, critica os privilégios que os governos dão
para os ricos e clama por “uma terra sem amos”, ecoando a consolidação do fim
da servidão. Mas não apenas regimes totalitários e genocidas como o de Stálin a
adotaram – partidos historicamente favoráveis à democracia como o Partido
Social Democrata da Alemanha a têm como hino. Como sói ser em um país livre, as
pessoas podem cantar o que quiserem, quando quiserem e aonde quiserem, não
deveria haver nada de mais em o coral de Fecher cantar a Internacional.
Infelizmente, não é o caso: a Internacional foi entoada em um evento da
Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro, que se propõe a iluminar os
abusos de direitos humanos cometidos durante o período da ditadura
civil-militar de 1964 a
1895 – tanto por parte do governo que queria manter uma ditadura militar no
Brasil quanto por parte dos grupos armados que pretendiam estabelecer uma
ditadura comunista no Brasil.
Carlos Fecher regeu a
Internacional em uma cerimônia da Comissão Estadual da Verdade do Estado do Rio
de Janeiro que contava com a presença de Maria do Rosário, titular da pasta de
Direitos Humanos do Governo Federal, além de próceres da Comissão da Verdade do
Estado do Rio de Janeiro. Ou seja, o ato em questão ideologiza um trabalho que
deveria ser, por definição, apartidário e livre de contaminações ideológicas:
evidentemente, não há verdade que possa ser apurada de forma independente
quando há o uso de lentes ideológicas. Todavia, mais de uma semana após o coral
Nheeengarecoporanga cantar a Internacional com os punhos esquerdos cerrados
erguidos, se verifica que nada foi dito nem pela ministra Maria do Rosário e
nem por nenhum outro expoente da Comissão da Verdade do Estado do Rio de
Janeiro tanto sobre a inadequação do ato do Nheeengarecoporanga quanto sobre a
necessidade de impedir que os trabalhos sejam eivados de ideologização, fica-se
com a certeza de que, para Maria do Rosário e para os demais, tudo é natural.
Em outras palavras, fica-se com a certeza de que a Comissão da Verdade do
Estado do Rio de Janeiro não quer a verdade e a reconciliação e o aprendizado
que dela deveriam advir, como ensinou Nelson Mandela por meio da Comissão da
Verdade e Reconciliação da África do Sul, mas apenas revanchismo – quando não
um ainda mais mesquinho oportunismo eleitoreiro. Carlos Fecher ainda gritou, ao
final e entre aplausos dos presentes: “Venceremos!”. Infelizmente para a
promoção dos direitos humanos no Estado do Rio de Janeiro, mais que dignidade,
isenção e autoridade, a Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro perdeu
respeito em Petrópolis no dia 11-Fev-2014.
Se, em Petrópolis, a escancarada
ideologização da Comissão da Verdade do Estado do Rio de Janeiro causava
espanto exibindo punhos cerrados, no Largo de São Francisco, sede da
tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), o
CoralUSP, regido por Eduardo Fernandes, conseguiu exatamente o oposto: arrancou
aplausos e risos frouxos da plateia do sisudo Salão Nobre da USP ao cantar
Beijinho no Ombro, um funk carioca do Gaiola das Popozudas. Naturalmente, a
letra não pretende ser um hino como a Internacional; afinal, versos como “O meu
sensor de periguete explodiu / Pegue a sua inveja e vá pra [CENSURADO]!” não
são exatamente inspiradores, mas Beijinho no Ombro faz muito sucesso – e são
bastante comuns letras bem mais explícitas no gênero e mesmo no próprio
repertório do Gaiola das Popozudas. Há algumas versões do CoralUSP cantando
Beijinho no Ombro disponíveis na internet – em todas, é possível perceber que,
além de apresentar a técnica vocal apurada característica, a performance do
CoralUSP foi divertidíssima: algumas cantoras iam para a frente do coral
repetindo passos do funk carioca – as partes nas quais elas tapam as
bocas nas horas de cantar os palavrões são particularmente impagáveis. A
plateia, que esperava por uma apresentação de um coral sem nada de diferente,
ganhou a noite e cantou junto, aplaudindo feericamente o tempo inteiro. Não se
tratou de algo inédito, nem no Brasil nem no mundo: há exemplos como os milhões
de visualizações obtidos pela Marching 110, a banda da Ohio University que tocou e dançou
Gangnam Style (hit mundial do sul-coreano Psy) no intervalo de um jogo de
futebol americano em 2012, que atestaram o incremento na popularidade que um
pouco de irreverência pode acrescentar a uma formação musical clássica. Assim,
o CoralUSP acrescentou bom humor à sua apresentação no Salão Nobre da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo cantando Beijinho no Ombro e ganhou
respeito no dia 20-Jan-2014.
Obviamente, não se busca, aqui,
comparar obras e contextos diferentes: enquanto a Internacional é obra séria de
pessoas sérias com objetivos sérios e que inspira pessoas no mundo inteiro há
mais de um século, Beijinho no Ombro é apenas uma brincadeira que não
influenciará ninguém e apenas divertirá os brasileiros durante um verão. O que
se pretende é apontar o quão distintas foram as maneiras por meio das quais, em
duas semanas, dois corais ganharam notoriedade nacional: o Nheeengarecoporanga,
por meio dos punhos cerrados e da apologia da confrontação e o CoralUSP, por
meio da irreverência e da simpatia. Ao final das contas, tanto literalmente
(visualizações) quanto figuradamente (saiu engrandecido), a criatividade dos
brasileiros é preferível ao rancor internacional. O bom humor venceu. Beijinho
no ombro, Internacional!
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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