Há poucos dias, a Chefe de Estado
da Alemanha declarou abertamente que ninguém mais pode mais ter como fato
inquebrantável que os Estados Unidos da América farão a defesa da União
Europeia indefinidamente. Noves fora o fato de a Alemanha falar em nome da
União Europeia e ninguém aparentemente se incomodar muito com isso, o fato é
que Frau Merkel tem razão – e por um paradoxo: quanto mais a União
Europeia se consolida, menos faz sentido para Washington gastar seus recursos
para defender uma região que vem perdendo importância estratégica no mundo há
um século. Pode parecer uma surpresa para muitos (e, a bem da verdade, foi um
fato de pouca repercussão mundial), mas a União Europeia está em vias de criar
uma força de defesa única. O plano não surgiu por causa da eleição de Donald
Trump ou da saída do Reino Unido da União Europeia, mas certamente não teria a
celeridade, a importância e a magnitude que acabou de ganhar se não fosse por
esses dois fatores. Com a Alemanha à frente, a Europa quer retomar a
importância perdida (ou, ao menos, reduzir o atraso) no campo militar. Um
século e duas guerras mundiais perdidas depois e sem que um tiro sequer fosse
disparado, a Europa atual é a Alemanha expandida – e as Forças Armadas
Europeias serão a Bundeswher expandida como o euro é o Deustch
Mark expandido.
A Europa já foi o motor do mundo
– e que motor! Aliás, é correto dizer que o que hoje entendemos como mundo é a
Europa expandida. Instituições europeias estão na base de países tão distintos
quanto Coreia do Norte (ditadura comunista) e Nova Zelândia (democracia
capitalista). O que entendemos como mundo tem origem europeia: Estados Unidos
da América são um país europeu fora da Europa, Japão é um país europeu fora da
Europa – e mesmo ditaduras como China ou Arábia Saudita operam segundo moldes
europeus em certa medida. Se é certo dizer que o mundo é a Europa expandida,
também é certo dizer que a Alemanha é a Prússia expandida (é certo: até hoje,
as cores da seleção alemã serem as cores da Casa de Hohenzollern e o Chefe de
Estado da Alemanha usar o título de Chanceler, como o príncipe Bismarck usava –
e noves fora que a Família Real da Alemanha, ainda que sem trono, é a Família
Real da Prússia, com a numeração dos potentados seguindo a contagem prussiana
de antes da unificação), que a União Europeia é a Alemanha expandida (também é
certo: o euro é controlado a partir de Frankfurt, centro financeiro da
Alemanha, e só tem o respaldo que tem porque, entre outras coisas, pode até
hoje ser totalmente convertido em marcos alemães por qualquer um que assim o
deseje – a moeda alemã não deixou de existir e tem câmbio fixo com o euro) e,
em breve, será correto dizer que as Forças Armadas da União Europeia são as
Forças Armadas da Alemanha expandidas. Senão, vejamos.
A Europa já chegou a ter 20% da
população mundial, mas hoje esse número caiu pela metade – e continua caindo. É
um continente em processo de envelhecimento acelerado: o alemão médio está
muito próximo de meio século de vida. É um continente que vem perdendo
relevância econômica desde a eclosão das Guerras Mundiais, mas cuja importância
relativa (é importante frisar que a análise é sempre em termos relativos, uma
vez que a Europa progrediu sobremaneira desde então) só fez encolher depois que
os canhões pararam de cuspir fogo em 1945 e, principalmente, depois que a queda
do Muro de Berlim anunciou ao mundo em 1989 o colapso do Império Soviético e a
perspectiva de paz nas fronteiras com o fim da Guerra Fria. A Alemanha então
fez uma brilhante (e expedita) reunificação e, por meio da União Europeia, foi
assumindo seu papel de paymaster da Europa. Como na velha piada, a
Alemanha é grande demais para a Europa e pequena demais para o mundo, mas uma
Europa que é uma Alemanha expandida é grande demais para o mundo: maior PIB do
planeta, terceira maior população. Um colosso de pés de barro, baseado eu uma
unificação frouxa e, principalmente, sem forças armadas próprias dignas desse
nome, a Europa é um urso com dentes de leite e unhas cortadas. É nesse ponto
que entram dois fatores exógenos: Brexit e Trump. Para os partidários da
unificação europeia completa (o que obviamente inclui forças armadas), foi o
melhor dos mundos. Antes que se prossiga, um dado para reforçar que a Alemanha
é realmente muito grande para a Europa: em 2016, o país teve um saldo na
balança de pagamentos de astronômicos 300 bilhões de dólares, algo que nem
Estados Unidos, China ou Japão (as três economias maiores do que a alemã no
mundo) conseguiram – e essa torrente de dólares só não levou à esperada
apreciação da moeda local (que enfraqueceria as exportações) porque a moeda
local simplesmente não mais existe e os demais parceiros deficitários dos
alemães no euro acabaram compensando e contribuindo involuntariamente via
câmbio para tornar os germânicos mais ricos. Todos na União Europeia sabem que
os teutônicos serão opaymaster da unificação e da modernização das forças
de defesa europeias – principalmente os próprios alemães. E sabem tanto que já
vinham se preparando para isso há anos, em duas frentes: no Framework
Nations Concept (no escopo da OTAN) e nas Forças Armadas da União
Europeia.
Comecemos pelo Framework
Nations Concept. Trata-se de um conceito da OTAN que estimula o treinamento e a
atuação conjunta de forças nacionais e foi apresentado pela Alemanha em 2013.
Surgiu em boa hora, porque pouco depois a Rússia retomava seu histórico vício
expansionista, anexando manu militari a Crimeia em 2014 e tentando
redesenhar o mapa da Europa pela primeira vez após 1945 – até o momento, não há
aceitação internacional da mudança de soberania da península, mas demandou da
OTAN ações para sair da dificuldade de mobilização inerente a uma colcha de
retalhos formada por tropas de vários países que nunca treinaram juntas. Com
base no Framework Nations Concept, a Alemanha começou a oferecer a países
menores uma colaboração militar que, na prática, significa incorporar essas
forças à Bundeswher por meio de um acordo no qual a Alemanha
literalmente paga por equipamento e junta os militares desses países às suas
próprias tropas. Um detalhe relevante é que as tropas são lideradas sempre por
militares de ambos os países e seu uso em ações militares depende da vontade
conjunta da Alemanha e do outro país, uma garantia de que ninguém estará na
prática simplesmente fornecendo soldados para a Bundeswher. Atualmente,
Romênia, Tchéquia e Holanda já têm batalhões em conjunto com a Alemanha e há
outras nações dispostas a, por vontade própria, fazer parte da Bundeswher,
força que era temida por todos os vizinhos e que, de fato, chegou a ocupar
alguns desses países – curiosamente, a língua usada nesses batalhões
binacionais alemães é o inglês, embora nenhum deles tenha o inglês como idioma
principal. Sob o Framework Nations Concept, a Bundeswher vem-se
reestruturando para ser a base de uma força de defesa europeia de facto desde
2013. Com o Brexit e a chegada de Trump à Casa Branca, as Forças Armadas da
União Europeia passaram a ser realidade, com prazo definido – e, quando a hora
chegar, a Bundeswher estará pronta para ser a espinha dorsal dela.
O ano é 2020. A data foi definida
há uma semana, quando a União Europeia formalizou a criação de um fundo
específico para a criação das Forças Armadas da União Europeia. A data de 2020
não é à-toa: é exatamente no ano após o a consolidação do Brexit. A razão é
óbvia: o Reino Unido nunca aceitou a ideia das Forças Armadas da União Europeia
– e tem suas razões, uma vez que seria uma força predominantemente continental
e sob comando franco-germânico, o que o escantearia per se, e,
principalmente, porque haveria gritantes sobreposições com a OTAN, aonde a
chamada relação especial entre Londres e Washington garantia
proeminência para os insulares. Com britânicos fora do caminho, a Europa
(leia-se a Alemanha) começa a se preparar para ser protagonista
independentemente da OTAN e para falar grosso na aliança atlântica, se assim o
desejar – é sempre bom lembrar que a outra potência continental (embora em
constante decadência militar há dois séculos, a França ainda é um ator
relevante) tem relações conflituosas com a OTAN, a ponto de ter ficado voluntariamente
fora do comando militar da aliança de defesa coletiva ocidental de 1966 (De
Gaulle) a 2009 (Sarkozy). O ano é 2020 e o valor do orçamento é de seis bilhões
de euro por ano, dos quais ½ bilhão será exclusivo para financiamento
de pesquisas militares e 5½ bilhões serão para compra de equipamento – cada
país pagará por seus militares, ao menos no primeiro momento. É muito dinheiro,
mas ainda não é suficiente para se montar uma das maiores forças armadas do
mundo. Ainda.
O apelo é gigantesco, não só pelo
lado político (como apenas países possuem forças armadas, a criação das Forças
Armadas da União Europeia são um indicativo poderosíssimo de que a União
Europeia é apenas uma etapa rumo aos tão sonhados Estados Unidos da Europa),
como também pelo lado econômico: ao invés de cada país ter suas armas e suas
estruturas de treinamento, logística, comando e comunicação, todos terão as
mesmas armas e dividirão estruturas integradas de treinamento, logística,
comando e comunicação, levando a ganhos de escala fenomenais e, principalmente,
retroalimentando o processo de concentrar todos os recursos militares europeus
nas Forças Armadas da União Europeia, em detrimento das forças nacionais e da
OTAN. Principalmente por conta do segundo fator: Donald Trump. O fato de o dono
do combover mais famoso do mundo ter prometido em campanha fazer seus
parceiros europeus na OTAN pagarem mais pela proteção americana – que, de fato,
existe e, de fato também, é majoritariamente custeada pelos impostos americanos
– e, dadas as demonstrações do topetudo de que ele cumpre suas promessas, por
mais insanas que sejam, leva os europeus à mais elementar das conclusões: se
for para pagar mais pela estrutura de defesa americana, que paguemos pelas
nossa própria estrutura de defesa europeia. Simples assim. É um péssimo negócio
para a indústria armamentista americana (o infame complexo industrial-militar a
que Eisenhower sempre se referia), que apoiou Trump e agora percebe que o
americano está em vias de fechar-lhe as portas do mercado europeu e transformar
em irrelevante o sempre cativo mercado da OTAN. A União Europeia já fez sua
escolha: com Trump pressionando por mais gastos de um lado e sem Londres
vetando a criação das Forças Armadas da União Europeia de outro, todos se
voltam para uma revivida Bundeswher para liderar e a Alemanha para
bancar a defesa europeia. Com a expansão da Bundeswher, a extensão da
Prússia vai transformando a Europa em sua extensão, graças à vontade dos demais
países, sob aplausos entusiasmados e sem disparar um tiro sequer.
Pedro Nascimento Araujo é economista.
nascimentoaraujo@hotmail.com
Comentários
Postar um comentário