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A expansão da Bundeswehr. Pedro Nascimento Araujo


Há poucos dias, a Chefe de Estado da Alemanha declarou abertamente que ninguém mais pode mais ter como fato inquebrantável que os Estados Unidos da América farão a defesa da União Europeia indefinidamente. Noves fora o fato de a Alemanha falar em nome da União Europeia e ninguém aparentemente se incomodar muito com isso, o fato é que Frau Merkel tem razão – e por um paradoxo: quanto mais a União Europeia se consolida, menos faz sentido para Washington gastar seus recursos para defender uma região que vem perdendo importância estratégica no mundo há um século. Pode parecer uma surpresa para muitos (e, a bem da verdade, foi um fato de pouca repercussão mundial), mas a União Europeia está em vias de criar uma força de defesa única. O plano não surgiu por causa da eleição de Donald Trump ou da saída do Reino Unido da União Europeia, mas certamente não teria a celeridade, a importância e a magnitude que acabou de ganhar se não fosse por esses dois fatores. Com a Alemanha à frente, a Europa quer retomar a importância perdida (ou, ao menos, reduzir o atraso) no campo militar. Um século e duas guerras mundiais perdidas depois e sem que um tiro sequer fosse disparado, a Europa atual é a Alemanha expandida – e as Forças Armadas Europeias serão a Bundeswher expandida como o euro é o Deustch Mark expandido.

A Europa já foi o motor do mundo – e que motor! Aliás, é correto dizer que o que hoje entendemos como mundo é a Europa expandida. Instituições europeias estão na base de países tão distintos quanto Coreia do Norte (ditadura comunista) e Nova Zelândia (democracia capitalista). O que entendemos como mundo tem origem europeia: Estados Unidos da América são um país europeu fora da Europa, Japão é um país europeu fora da Europa – e mesmo ditaduras como China ou Arábia Saudita operam segundo moldes europeus em certa medida. Se é certo dizer que o mundo é a Europa expandida, também é certo dizer que a Alemanha é a Prússia expandida (é certo: até hoje, as cores da seleção alemã serem as cores da Casa de Hohenzollern e o Chefe de Estado da Alemanha usar o título de Chanceler, como o príncipe Bismarck usava – e noves fora que a Família Real da Alemanha, ainda que sem trono, é a Família Real da Prússia, com a numeração dos potentados seguindo a contagem prussiana de antes da unificação), que a União Europeia é a Alemanha expandida (também é certo: o euro é controlado a partir de Frankfurt, centro financeiro da Alemanha, e só tem o respaldo que tem porque, entre outras coisas, pode até hoje ser totalmente convertido em marcos alemães por qualquer um que assim o deseje – a moeda alemã não deixou de existir e tem câmbio fixo com o euro) e, em breve, será correto dizer que as Forças Armadas da União Europeia são as Forças Armadas da Alemanha expandidas. Senão, vejamos.

A Europa já chegou a ter 20% da população mundial, mas hoje esse número caiu pela metade – e continua caindo. É um continente em processo de envelhecimento acelerado: o alemão médio está muito próximo de meio século de vida. É um continente que vem perdendo relevância econômica desde a eclosão das Guerras Mundiais, mas cuja importância relativa (é importante frisar que a análise é sempre em termos relativos, uma vez que a Europa progrediu sobremaneira desde então) só fez encolher depois que os canhões pararam de cuspir fogo em 1945 e, principalmente, depois que a queda do Muro de Berlim anunciou ao mundo em 1989 o colapso do Império Soviético e a perspectiva de paz nas fronteiras com o fim da Guerra Fria. A Alemanha então fez uma brilhante (e expedita) reunificação e, por meio da União Europeia, foi assumindo seu papel de paymaster da Europa. Como na velha piada, a Alemanha é grande demais para a Europa e pequena demais para o mundo, mas uma Europa que é uma Alemanha expandida é grande demais para o mundo: maior PIB do planeta, terceira maior população. Um colosso de pés de barro, baseado eu uma unificação frouxa e, principalmente, sem forças armadas próprias dignas desse nome, a Europa é um urso com dentes de leite e unhas cortadas. É nesse ponto que entram dois fatores exógenos: Brexit e Trump. Para os partidários da unificação europeia completa (o que obviamente inclui forças armadas), foi o melhor dos mundos. Antes que se prossiga, um dado para reforçar que a Alemanha é realmente muito grande para a Europa: em 2016, o país teve um saldo na balança de pagamentos de astronômicos 300 bilhões de dólares, algo que nem Estados Unidos, China ou Japão (as três economias maiores do que a alemã no mundo) conseguiram – e essa torrente de dólares só não levou à esperada apreciação da moeda local (que enfraqueceria as exportações) porque a moeda local simplesmente não mais existe e os demais parceiros deficitários dos alemães no euro acabaram compensando e contribuindo involuntariamente via câmbio para tornar os germânicos mais ricos. Todos na União Europeia sabem que os teutônicos serão opaymaster da unificação e da modernização das forças de defesa europeias – principalmente os próprios alemães. E sabem tanto que já vinham se preparando para isso há anos, em duas frentes: no Framework Nations Concept (no escopo da OTAN) e nas Forças Armadas da União Europeia.

Comecemos pelo Framework Nations Concept. Trata-se de um conceito da OTAN que estimula o treinamento e a atuação conjunta de forças nacionais e foi apresentado pela Alemanha em 2013. Surgiu em boa hora, porque pouco depois a Rússia retomava seu histórico vício expansionista, anexando manu militari a Crimeia em 2014 e tentando redesenhar o mapa da Europa pela primeira vez após 1945 – até o momento, não há aceitação internacional da mudança de soberania da península, mas demandou da OTAN ações para sair da dificuldade de mobilização inerente a uma colcha de retalhos formada por tropas de vários países que nunca treinaram juntas. Com base no Framework Nations Concept, a Alemanha começou a oferecer a países menores uma colaboração militar que, na prática, significa incorporar essas forças à Bundeswher por meio de um acordo no qual a Alemanha literalmente paga por equipamento e junta os militares desses países às suas próprias tropas. Um detalhe relevante é que as tropas são lideradas sempre por militares de ambos os países e seu uso em ações militares depende da vontade conjunta da Alemanha e do outro país, uma garantia de que ninguém estará na prática simplesmente fornecendo soldados para a Bundeswher. Atualmente, Romênia, Tchéquia e Holanda já têm batalhões em conjunto com a Alemanha e há outras nações dispostas a, por vontade própria, fazer parte da Bundeswher, força que era temida por todos os vizinhos e que, de fato, chegou a ocupar alguns desses países – curiosamente, a língua usada nesses batalhões binacionais alemães é o inglês, embora nenhum deles tenha o inglês como idioma principal. Sob o Framework Nations Concept, a Bundeswher vem-se reestruturando para ser a base de uma força de defesa europeia de facto desde 2013. Com o Brexit e a chegada de Trump à Casa Branca, as Forças Armadas da União Europeia passaram a ser realidade, com prazo definido – e, quando a hora chegar, a Bundeswher estará pronta para ser a espinha dorsal dela.

O ano é 2020. A data foi definida há uma semana, quando a União Europeia formalizou a criação de um fundo específico para a criação das Forças Armadas da União Europeia. A data de 2020 não é à-toa: é exatamente no ano após o a consolidação do Brexit. A razão é óbvia: o Reino Unido nunca aceitou a ideia das Forças Armadas da União Europeia – e tem suas razões, uma vez que seria uma força predominantemente continental e sob comando franco-germânico, o que o escantearia per se, e, principalmente, porque haveria gritantes sobreposições com a OTAN, aonde a chamada relação especial entre Londres e Washington garantia proeminência para os insulares. Com britânicos fora do caminho, a Europa (leia-se a Alemanha) começa a se preparar para ser protagonista independentemente da OTAN e para falar grosso na aliança atlântica, se assim o desejar – é sempre bom lembrar que a outra potência continental (embora em constante decadência militar há dois séculos, a França ainda é um ator relevante) tem relações conflituosas com a OTAN, a ponto de ter ficado voluntariamente fora do comando militar da aliança de defesa coletiva ocidental de 1966 (De Gaulle) a 2009 (Sarkozy). O ano é 2020 e o valor do orçamento é de seis bilhões de euro por ano, dos quais ½ bilhão será exclusivo para financiamento de pesquisas militares e 5½ bilhões serão para compra de equipamento – cada país pagará por seus militares, ao menos no primeiro momento. É muito dinheiro, mas ainda não é suficiente para se montar uma das maiores forças armadas do mundo. Ainda.

O apelo é gigantesco, não só pelo lado político (como apenas países possuem forças armadas, a criação das Forças Armadas da União Europeia são um indicativo poderosíssimo de que a União Europeia é apenas uma etapa rumo aos tão sonhados Estados Unidos da Europa), como também pelo lado econômico: ao invés de cada país ter suas armas e suas estruturas de treinamento, logística, comando e comunicação, todos terão as mesmas armas e dividirão estruturas integradas de treinamento, logística, comando e comunicação, levando a ganhos de escala fenomenais e, principalmente, retroalimentando o processo de concentrar todos os recursos militares europeus nas Forças Armadas da União Europeia, em detrimento das forças nacionais e da OTAN. Principalmente por conta do segundo fator: Donald Trump. O fato de o dono do combover mais famoso do mundo ter prometido em campanha fazer seus parceiros europeus na OTAN pagarem mais pela proteção americana – que, de fato, existe e, de fato também, é majoritariamente custeada pelos impostos americanos – e, dadas as demonstrações do topetudo de que ele cumpre suas promessas, por mais insanas que sejam, leva os europeus à mais elementar das conclusões: se for para pagar mais pela estrutura de defesa americana, que paguemos pelas nossa própria estrutura de defesa europeia. Simples assim. É um péssimo negócio para a indústria armamentista americana (o infame complexo industrial-militar a que Eisenhower sempre se referia), que apoiou Trump e agora percebe que o americano está em vias de fechar-lhe as portas do mercado europeu e transformar em irrelevante o sempre cativo mercado da OTAN. A União Europeia já fez sua escolha: com Trump pressionando por mais gastos de um lado e sem Londres vetando a criação das Forças Armadas da União Europeia de outro, todos se voltam para uma revivida Bundeswher para liderar e a Alemanha para bancar a defesa europeia. Com a expansão da Bundeswher, a extensão da Prússia vai transformando a Europa em sua extensão, graças à vontade dos demais países, sob aplausos entusiasmados e sem disparar um tiro sequer.

Pedro Nascimento Araujo é economista.

nascimentoaraujo@hotmail.com

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