João Doria Júnior talvez não
tenha percebido de imediato, mas ele penhorou todo seu futuro político em uma
única ação: ao anunciar que acabará com a Cracolândia até o final de 2018, ele
fez uma promessa perigosíssima. Para quem não é de São Paulo ou não costuma
frequentar o Centro da maior cidade da América do Sul, o nome Cracolândia só é
evocado quando alguma situação pouco usual tem o infame local como epicentro:
em 2014, quando Loemy Marques, uma ex-modelo, foi localizada morando no local e
virou carniça para alimentar programas sensacionalistas, ou há uma semana,
quando uma operação policial desnudou o mito de que seria um local pacífico e
dado ao auto-isolamento para pobres-diabos definharem até a morte longe das
vistas da sociedade. Para quem é obrigado a frequentar os arredores daquele
local, é fácil divisar a Cracolândia: trata-se de uma terra de ninguém em pleno
centro da capital de facto do maior país do subcontinente. É um lugar
com ruas interditadas para o tráfego de veículos e aonde o fluxo (como
é chamado o frenesi de venda e consumo de drogas a céu aberto, com circulação
de até mil pessoas por dia, que se afastam uma vez por dia para dar passagem a
caminhões da prefeitura que lavam as ruas com potentes jatos de água e cujos
vícios são bancados em grande parte pelo escambo de fruto de furtos) não para e
há lonas fazendo as vezes de barracas no meio do asfalto, pessoas dormindo em
barracos, construções abandonadas servindo de depósito ou moradia e mau odor
nauseante que se pode perceber de longe; em suma, um cartão-postal da
degradação humana causada pelas drogas – uma paisagem e um odor inesquecíveis
para quem passa próximo do local pela primeira vez. Mas a Cracolândia não é só
miséria humana: lá também se fazem grandes negócios; na verdade, estima-se que
o Primeiro Comando da Capital (o famigerado PCC, principal facção criminosa do
Brasil) venda lá 100 quilos de crack por mês – o que significa um faturamento
de mais de 100 milhões de reais por mês. Como se vê, João Doria Júnior apostou
tudo contra a banca: se ele realmente conseguir acabar com a Cracolândia,
bancando a promessa do governador Geraldo Alckmin, seu mentor político,
conseguirá se cacifar ainda mais para disputar o Palácio do Planalto em 2018.
A Cracolândia é um epicentro de
criminalidade e insalubridade, de violação de direitos humanos, de abusos e
violências contra menores, mulheres e minorias, de corrupção de agentes
públicos e de tudo o mais de ruim que se possa vir a listar. Não há como se
defender a existência de um local como tal: os efeitos deletérios da existência
da Cracolândia para a sociedade simplesmente superam em muito os efeitos
deletérios para a saúde individual de cada usuário de drogas. Para usar um
termo caro aos economistas: as externalidades negativas do consumo coletivo de
drogas na Cracolândia são muito maiores do que a soma das externalidades
negativas dos consumos individuais de drogas – em outras palavras, o conjunto
de viciados concentrados na Cracolândia faz mais mal à sociedade como um todo
do que os viciados isoladamente. Por isso, acabar com a Cracolândia e dispersar
os usuários para que cada um possa ou destruir sua vida individualmente ou se
recuperar deveria ser uma obrigação dos governos. Uma boa comparação é dada
pelas favelas do Rio de Janeiro: se fosse ou removidas ou transformadas em
bairros (leia-se passarem a ser locais integrados à cidade, sem quaisquer
dificuldades de acesso), o consumo de drogas provavelmente não se reduziria em
um iota sequer, mas certamente a violência cairia sensivelmente na cidade como
um todo pelo simples fato de não mais haver os portos seguros para bandidos os
bandidos se refugiarem após cometer crimes – e isso para não falar em como os
batalhões e delegacias deixariam de ser fonte de renda para policiais corruptos
indicados por políticos idem. Ao dispersar o fluxo pela cidade de São
Paulo, o fim da Cracolândia reintegraria uma das mais belas regiões da cidade à
pujante metrópole. Falta a São Paulo – como, de resto, falta a virtualmente
todas as grandes cidades brasileiras – uma restauração do Centro e sua
incorporação à vida urbana como algo além de destino preferencial de trabalho
pendular; aliás, é correto reconhecer que o Rio de Janeiro fez um notável
progresso nesse sentido durante os mandatos de Eduardo Paes, mas a crise
financeira aparentemente sem fim que assola o governo estadual arrisca botar
tudo a perder pela galopante insegurança pública. De qualquer modo, se cumprir
a promessa, João Doria Júnior entrará para a história como um prefeito que
deixou um legado realmente positivo para a cidade de São Paulo. E ele precisa
disso para concretizar seu nada secreto plano de disputar a presidência em
2018.
Conforme a Lava-Jato vai se
consolidando, mais provável é a vitória de um outsider em 2018. Na
verdade, já seria provável de qualquer maneira devido a um momento
internacional de valorização de não-políticos, cujo marco maior foi a vitória
de Donald Trump nas eleições americanas do final do ano passado e cuja
confirmação mais recente foi dada pela vitória de Emmanuel Macron nas eleições
francesas há uma semana. No Brasil, Doria é o novo na política, com o agravante
de um pano de fundo de derretimento em praça pública da imagem dos políticos
tradicionais em função de revelações seriais de maus feitos no âmbito da Lava-Jato.
Esse é o caso de nomes como Lula da Silva e Aécio Neves, aqueles que, em mundo
sem a Lava-Jato, seriam os principais antagonistas em 2018, mas também de
muitos outros nomes. O prognóstico para políticos com experiência já seria
péssimo normalmente, mas a Lava-Jato piorou ainda mais a situação. A última
esperança de nomes como Lula da Silva é que literalmente todos os principais
postulantes ao cargo de presidente estejam envolvidos em denúncias da
Lava-Jato, o que levaria a um nivelamento por baixo que, no limite, faria os
eleitores simplesmente desconsiderar a honestidade como uma qualidade a
diferenciar candidatos. A mera existência de Doria muda sobremaneira tal
cálculos. Apesar de ser prefeito da maior cidade do país, Doria continua se
apresentando como empresário, não como político, ainda que, na prática, seja um
– mas é um arrivista e, portanto, não tem qualquer envolvimento com a
Lava-Jato. Portanto, para os políticos tradicionais, Lula da Silva à frente,
seguido por Aécio Neves e demais pré-candidatos a 2018, o ideal é que Doria
fracasse. Por isso, todos estão de olho nele após a promessa de acabar com a
Cracolândia. Não é de se estranhar, inclusive, se houver instruções por parte
daqueles que controlam militantes profissionais ou possuem apaniguados em
cargos estratégicos a trabalharem para literalmente sabotarem a iniciativa.
Como Doria não está na Lava-Jato, o melhor meio para enfraquecê-lo é
pespegar-lhe uma pecha de incompetente. Doria flerta perigosamente com isso ao
assumir publicamente o compromisso de acabar com a Cracolândia até o final de
2018: se lograr êxito, nada mais fez do o que havia prometido; se fracassar,
entra enfraquecido na disputa por 2018. Se fosse político, não teria feito tão
arriscada promessa: trabalharia em silêncio, sem o aparato que agora
mobilizar-se-á contra ele, exibiria o resultado ao final do processo, e sairia
consagrado. Às vezes, ser um político é uma virtude: um político não apostaria
tudo em uma única rodada.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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