Por Pedro Nascimento Araujo
A decisão do plenário do Supremo
Tribunal Federal (STF) de aceitar os embargos infringentes do Mensalão, como é
popularmente conhecida a Ação Penal 470, na prática, abre a possibilidade de
desclassificar alguns crimes – especificamente, os crimes do chamado Núcleo
Político do Mensalão: José Dirceu, José Genoíno, João Paulo Cunha e Delúbio
Soares. Dependendo do resultado do novo julgamento dos crimes para os quais os
embargos infringentes têm o condão de provocar, o Núcleo Político do Mensalão
poderá não mais ficar preso em regime fechado, mas apenas em semiaberto – ou
seja, esses réus passarão as noites na cadeia. Evidentemente, não cabe avaliar
juridicamente a decisão do órgão que existe para decidir juridicamente. Mas,
para um povo que esperava que, pela primeira vez na memória nacional
republicana, pessoas poderosas como José Dirceu – que, é bom lembrar,
provavelmente estaria ocupando a Presidência da República não fosse o Mensalão
ter vindo a público – fossem para a cadeia por seus crimes, a decisão de
efetuar um novo julgamento para alguns desses crimes tem gosto de fel. Porém,
uma análise não passional indica outro resultado. Se pensamos que o copo do STF
estaria meio cheio caso o Núcleo Político do Mensalão estivesse apenas
aguardando a expedição dos mandados de prisão, é porque também pensamos que o
copo do STF está meio vazio porque ainda haverá novos julgamentos para alguns
crimes – mas, em ambos os casos, não podemos nos esquecer que, até a Ação Penal
470, vulgo Mensalão, este proverbial copo estava totalmente vazio; por isso,
sem ironia nenhuma, saber que o copo está meio vazio é progresso. Perceber que,
além disso, ele pode ter começado um inexorável processo de enchimento, é mais
difícil nesse momento. Todavia, com um pouco de distanciamento, percebe-se que
é exatamente isso o que está ocorrendo.
Até o Mensalão, o histórico de
condenações de pessoas do calibre do Núcleo Político do Mensalão é patético.
Poderosos não serem presos no Brasil era quase um fato da vida, como o dia
suceder a noite. Nas raras vezes em que foram detidos, isso ocorria por prisão
em flagrante: gerava muitas fotos impactantes (talvez o exemplo mais
emblemático tenha sido Jáder Barbalho escondendo as algemas) e nenhuma
condenação, com liberdade em horas por conta de um habeas corpus habilmente
solicitado. Provas falhas e peças jurídicas ineficientes eram a garantia de
impunidade: muito barulho por nada. E o copo continuava vazio. No Mensalão,
não. As provas foram contundentes. O trabalho do Ministério Público foi
exemplar. O julgamento, comandado por Joaquim Barbosa, foi uma gratíssima
surpresa: a aceitação da tese do domínio do fato por parte da Suprema Corte
levou à condenação do Núcleo Político do Mensalão. Foi um momento de inflexão –
pela primeira vez, políticos corruptos não tinham mais a garantia de que,
simplesmente porque não produziram provas físicas da corrupção, estariam livres
de imputabilidade. Demorou, mas chegou à corrupção o que já havia para
homicídios: assim como o assassino não consegue se livrar do julgamento
simplesmente porque sumiu com o corpo, desde o Mensalão o corrupto não consegue
se livrar do julgamento simplesmente porque não assinou um recibo no qual
discriminava “pagamento de propina” e assinava embaixo. É preciso olhar além do
resultado imediato – olhando à frente, o que temos ainda é um copo meio vazio,
mas que deve se encher cada vez mais rápido.
Mudanças sociais são processos
lentos. Não raro, certos comportamentos e crenças simplesmente vão se tornando
arcaicos e inaceitáveis conforme as sociedades evoluem – ou, mais
pragmaticamente, conforme gerações mais novas vão substituindo gerações mais
antigas. A Teoria da Evolução de Charles Darwin não foi aceita imediatamente;
todavia, conforme seus detratores morriam, sua aceitação foi crescendo até se
tornar hegemônica – para os mais jovens, que nasceram com um modelo mental
diferente, não havia nada de herético na sobrevivência do mais apto. Na
verdade, assim ocorreu com quase tudo, do mais profundo ao mais banal: do fim
da escravidão às conquistas dos direitos civis dos homossexuais, das restrições
ao tabagismo em locais fechados à Lei da Ficha Limpa. E assim está ocorrendo
com a aplicação da lei para os corruptos de alta estirpe: a condenação do
Núcleo Político do Mensalão, ainda que José Dirceu, José Genoíno, João Paulo
Cunha e Delúbio Soares consigam escapar da prisão em regime fechado para
“apenas” dormir na cadeia, não há mais como voltar no processo que foi
iniciado. Independentemente do resultado dos novos julgamentos decorrentes da
aceitação dos embargos infringentes, os julgamentos para os quais não há
embargos infringentes já estão finalizados. O Núcleo Político do Mensalão foi
condenado à cadeia – fato insofismável. Se eles ficarão presos durante as
noites ou durante as 24 horas, importa menos que saber que José Dirceu, José
Genoíno, João Paulo Cunha e Delúbio Soares foram condenados à cadeia por
corrupção. Com base nisso, é possível esperar que o processo de condenação de
corruptos seja paulatinamente aprimorado, porque a sociedade brasileira vai
exigir cada vez mais eficiência da justiça. Assim como os defensores do
Criacionismo foram morrendo e a Teoria da Evolução prevaleceu, os defensores da
impunidade também entrarão em extinção. É inexorável: as brechas serão
fechadas, mais cedo ou mais tarde – esperamos que mais cedo – e, cada vez mais,
políticos corruptos como José Dirceu, José Genoíno, João Paulo Cunha e Delúbio
Soares serão condenados e presos. Daqui a alguns anos, o Mensalão será lembrado
como o marco inicial de uma memorável inflexão na impunidade brasileira. Com o
tempo, o gosto de fel passará e os corruptos não mais passarão impunes pela
justiça. Pode demorar, mas ocorrerá. É inexorável.
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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