Por Pedro Nascimento Araujo
Que falta faz um rábula! Filho de
uma negra com um branco, Luís Gama foi vendido aos 10 anos como escravo por seu
próprio pai para honrar algumas dívidas, conseguiu fugir e estudar
clandestinamente, tornando-se um rábula, nome dado aos que exerciam a advocacia
sem diploma de educação formal, e conseguiu libertar mais de 500 escravos. Sem
carteirinha da OAB, sem carimbo do MEC, contra todo o aparato de um país que
seria o último da América e um dos últimos do mundo a acabar com a escravidão.
Um mulato, em um local e em uma época na qual mulatos na elite, como Machado de
Assis, recusavam ser chamados mulatos. Um rábula, em um local e em uma época na
qual os apreços aos rococós jurídicos conseguiam ser maiores do que hoje,
ensejando o depreciativo apodo “Becas” aos bacharéis de Direito. Um homem de
valor e de valores, de princípios, de fibra e dotado de uma quixotesca força de
vontade, lutou contra todas as circunstâncias e derrotou não moinhos de ventos,
mas monstros de verdade, materializados sob a forma do escravagismo.
É difícil precisar o estrago
perene que o escravagismo, mesmo após sua extinção, deixa em uma sociedade.
Grandes homens e mulheres famosos, de Abraham Lincoln a Joaquim Nabuco,
passando pela Rainha Vitória, sem cujos canhões atacando portos brasileiros o
Brasil não teria parado de comprar escravos na África, concorreram para que a
existência da escravidão cessasse. Grandes homens e mulheres anônimos, também:
afinal, foi graças à pressão social de cidadãos anônimos que Rainha Vitória
usou a Marinha Real para acabar com o tráfico interatlântico de escravos, no
que constituiu uma verdadeira ação avant la lettre de R2P – na sigla em inglês,
significa Responsabilidade de Proteger e é um conceito que preconiza que,
quando um país usa de sua soberania para cometer graves violações de Direitos
Humanos em seu território, a comunidade internacional pode, em caráter
provisório e de forma subsidiária, mitigar a soberania do país em tela e agir,
inclusive pelo uso da força, para fazer cessar tais violações: se não fosse
essa então fortemente protestada violação da soberania do Império do Brasil a
partir de 1850, que forçou o governo a aprovar a Lei Eusébio de Queiróz no
esforço de manter a aparência de controle sobre os destinos da nação, a
escravidão teria durado muito mais. Também foi graças à pressão social de
cidadãos anônimos que a Princesa Imperial Regente Isabel Cristina,
abolicionista convicta como sua família (são famosos diversos episódios, por
exemplo: ela ter pedido, como presente de casamento, a libertação de 10
escravos que a atendiam, a acolhida e a assistência que seus filhos davam a
escravos fugidios no Palácio Imperial em Petrópolis ou ainda a campanha em que
doou e arrecadou fundos para pagar as alforrias de todos os escravos
petropolitanos), pôde proclamar a Lei Áurea em 13 de Maio de 1888, que a tornou
famoso seu epíteto “A Redentora”. E essas pressões sociais de cidadãos somente
são possíveis quando há pessoas como o rábula Luís Gama. Mais de um século após
o 13 de Maio, que a Corte sabia ser um monumental tiro no pé em sua
sobrevivência, como se confirmaria no ano seguinte, no golpe do 15 de Novembro,
tornado viável pelos apoios dos “Republicanos de 14 de Maio”, mas que, ainda
assim, foi sinceramente festejado (segundo José Murillo de Carvalho, Pedro II,
muito doente em Milão, ao saber da Lei Áurea, teria exclamado “Demos graças a
Deus por este grande povo!” e chorado copiosamente) é importante relembrar o
papel do rábula porque, no Brasil, há, desde a semana passada, escravos
importados, novamente, nos servindo. São os primeiros 400 de um total de 4 mil
cubanos, pobres cubanos. Denotativamente e conotativamente, pobres cubanos.
O rábula atuou diretamente na
libertação de mais de 500 escravos, conforme havíamos dito. O número é
sensacional sob qualquer ângulo, mas o mais interessante foi o método por ele
adotado. Ele não usou a humilhante Lei Eusébio de Queiróz, mas a lei de 1831
que proibia o tráfico transatlântico de escravos e que deu fama à expressão
“para inglês ver”: pressionados desde a vinda da Família Real pelos britânicos
a acabar com a prática, os portugueses primeiro e os brasileiros depois
sistematicamente ignoravam o assunto, não importando quantos acordos assinassem
se comprometendo a acabar com tráfico. Apesar de tudo, não havia cinismo no
mundo capaz de, uma vez sendo invocada uma lei brasileira perante um tribunal
brasileiro, fazer um juiz falar – e juízes falam por escrito, via autos – que
tal lei não deveria ser levada à sério. Com esse ardil, o rábula apresentava os
documentos as contas e provava que havia escravos que chegaram ao Brasil após a
lei que proibiu a prática em 1831 e, portanto, eram ilegais e precisavam ser libertados.
Funcionou bem, como dissemos e como provam os mais de 500 cativos que ganharam
a liberdade, mas o rábula entrou para a história mais marcadamente por um
episódio ocorrido em 1870. Em um país cada no qual o medo do haitianismo
(referência à revolta dos escravos ocorrida em 1792 na então colônia francesa
do Haiti, que já havia sido aumentado pela Revolta dos Malês de 1835, que, na
verdade, pregava a liberdade dos escravos muçulmanos – nenhuma palavra foi dita
sobre os demais escravos – e a morte dos senhores de escravos católicos, na
prática, brancos) era atávico, o rábula, ao defender um escravo que havia
matado seu proprietário, declarou que aquele era inocente porque agia em
legítima defesa. Em outras palavras, a tese do rábula que apavorou os escravagistas
era direta: o cativo que matar seu senhor estará agindo em legítima defesa. À
época, às vistas dos escravagistas, era como se ele propusesse uma guerra civil
– ou seja, uma versão brasileira do haitianismo – com todas as letras. O rábula
foi ameaçado de morte e hostilizado inúmeras vezes, mas a escravidão durou mais
que sua vida – ele morreria de causas naturais em 1882.
Obviamente, a escravidão somente
subsistiu tanto porque era extremamente lucrativa, apesar dos riscos
envolvidos. Como em toda atividade abjeta, amoral ou criminosa, na escravidão a
margem era elevadíssima: segundo pesquisa de Emília Viotti da Costa, o tráfico
negreiro operava com uma margem bruta de 2.000%, mais que suficiente para
bancar eventuais confiscos britânicos, mortes de cativos no processo, custos
alfandegários (ainda segundo Viotti da Costa, as receitas do tráfico interno de
escravos chegava a representar mais da metade da arrecadação de algumas
províncias), propinas, representações, representantes legislativos etc. Não
muito diferente do tráfico de drogas atualmente. Ou da exploração escravista
dos médicos cubanos, onde há todos os elementos que configuram escravidão sob
qualquer ótica, conforme veremos adiante – noves fora tanto o mérito de o
governo de Dilma Rousseff vir negociado o envio dos servos cubanos com o
governo dos Irmãos Castro desde o final de 2012, muito antes, portanto, de
comunicar tal intenção àquele a quem deve obediência: o povo brasileiro, quanto
os níveis de capacitação que podem ter profissionais formados em um país cuja
tecnologia médica está, literalmente, congelada há mais de meio século.
Se o rábula estivesse vivo, ele
alegaria que a condição dos médicos cubanos é análoga à da escravidão que
combateu por alguns motivos. O mais premente é a condição de privação de
liberdade, típica de escravidão: como as brasileiras traficadas para bordeis
europeus, os cubanos terão os passaportes confiscados e não poderão sair dos
alojamentos – os quais não escolherão, pois serão determinados pela ditadura dos
Irmãos Castro e neles residirão apenas cubanos – sem autorização e sem
supervisão; não terão, em suma, o direito de ir e vir, basilar em nossa
constituição e que aplica-se a todos no território nacional. Outro argumento
bom para o rábula seria a apropriação do rendimento do trabalho pelos seus
senhores, nominalmente os Irmãos Castro: dos R$ 10 mil que o governo brasileiro
vai pagar, as estimativas acerca de quanto ficará com eles variam de R$ 100
(mais pessimista, baseada no que os médicos cubanos de facto aferem em Cuba) a
R$ 500 (mais otimista, baseada em declarações de autoridades cubanas) – ou
seja, de acordo com as contas de Viotti da Costa, na versão mais otimista, os
Irmãos Castro igualam a margem bruta dos traficantes de escravos brasileiros do
Século XIX e lucram 2.000%; na mais pessimista, os Irmãos Castro quintuplicam
tal valor e lucram 10.000%, fazendo com que os traficantes de escravos
brasileiros do Século XIX pareçam franciscanos observando estritos votos de
pobreza. Na prática, nossos impostos, coletados do trabalho dos cidadãos de um
governo democrático, financiam diretamente a exploração do trabalho dos
cidadãos de um governo totalitário. Não há como ser pior para o Brasil.
Obviamente, a lista de
atrocidades cometidas contra os cubanos enviados ao Brasil é imensa, e inclui
desde a proibição de trazer familiares – que não vale para os estrangeiros de
outros países – até a declaração prévia e expressa do governo brasileiro de que
não avaliará pedidos de refúgio ou de asilo feitos pelos cubanos, ao arrepio
tanto daquilo que determina a constituição brasileira quanto daquilo que
determina a lei internacional. Para os cubanos no Brasil, a lei brasileira vale
menos que a lei dos Irmãos Castro: por exemplo, será solenemente ignorado o
Artigo 4º X, que determina que as relações internacionais do país serão regidas
pelo princípio da concessão do asilo político. Para os cubanos no Brasil, a lei
internacional vale menos que a lei dos Irmãos Castro: por exemplo, será
solenemente ignorado que o Brasil é signatário do Estatuto dos Refugiados de
1951. No Brasil, a lei dos Irmãos Castro vale mais – nossa soberania e nosso
respeito aos Direitos Humanos não valem menos.
O rábula deve estar se
contorcendo em seu túmulo. Em seus dias, ele testemunhou um caso de submissão
das leis brasileiras às leis de outro país, quando os ingleses começaram a
abrir fogo contra o tráfico negreiro transatlântico feito por brasileiros. Em
seus dias, o Brasil, defensor da escravidão, estava errado e o Reino Unido,
defensor da abolição, estava certo. Hoje, o Brasil está certo e Cuba está
errada. Aqui, há uma democracia que garante direitos civis e políticos a todos
– e, desde a redemocratização até esse triste episódio dos médicos cubanos, o
país vinha sendo, paulatinamente, reconhecido internacionalmente por seus
esforços em prol da defesa dos Direitos Humanos, tanto por meio de adesão aos
regimes internacionais de Direitos Humanos quanto por meio de participação em
fóruns internacionais de promoção dos Direitos Humanos. A escolha infeliz do
governo de Dilma Rousseff de suprir a falta de condições médicas nos rincões do
Brasil com a importação de mão de obra análoga à escravidão é lamentável sob
todos os aspectos, sem contar que soa igual ao argumento que os escravagistas
usavam para defender a importação de mão de obra cativa africana para as
lavouras brasileiras durante séculos. Como foi dito no início desse texto, não
é possível precisar o estrago perene que o escravagismo, mesmo após sua
extinção, deixa em uma sociedade. A marca da escravidão é um trauma forte, como
ficou evidenciado pela hostilização que os médicos cubanos sofreram por parte
de médicos brasileiros – na chegada a algumas cidades, foram xingados e
chamados “escravos”. Foi uma estupidez da parte desses médicos: escravos, por
definição, não são senhores de seus atos. Assim, se os médicos cubanos são
explorados como escravos, não o fazem por opção, mas sim porque há governos
como o de Dilma Rousseff que fazem com que a exploração compense – e muito:
lucro de 2.000% a 10.000% para os Irmãos Castro, devidamente coletados dos
nossos bolsos via impostos e roubados dos bolsos dos médicos cubanos.
Infelizmente, se estivesse vivo, Luís Gama não poderia fazer suas famosas
defesas dos neocativos cubanos: hoje, apenas os Becas devidamente registrados
podem fazê-lo – e não há porque esperar que as grandes entidades sindicais,
patronais ou classe o façam. É um grande retrocesso. Mais um, na verdade.
Parece impossível, mas, nesse aspecto, o Brasil atual consegue ser pior que
aquele anterior ao 13 de Maio: naquela época, ao menos, um rábula como o
ex-escravo Luís Gama poderia defender os ainda escravos; hoje, nem isso. Que
falta faz um rábula!
Pedro Nascimento Araujo é
economista.
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